Em 68 contos, a genialidade delicada de Vladimir Nabokov

dom, 28/07/13
por Luciano Trigo |
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Do ponto de vista estritamente literário, “Contos reunidos” (Alfaguara, 832 pgs. R$ 89), de Vladimir Nabokov, é o lançamento editorial mais importante do ano. São 68 contos, originalmente escritos em russo, francês e inglês, entre 1920 e 1951. Muitos deles são traduzidos pela primeira vez no Brasil, e a ordenação cronológica oferece uma visão panorâmica que permite ao leitor acompanhar as mudanças de ênfase, abordagem e estilo do autor. Mas em todos, da sátira política (“Fala-se russo”) à fábula fantástica (“O dragão”), do puro entretenimento (“A visita ao museu”) à exploração psicológica da vida interior (“Signos e símbolos”), o autor oferece retratos brilhantes das relações humanas, em seus aspectos por vezes inconfessáveis ou bizarros, em textos que a todo momento provocam um sorriso de satisfação, mesmo no leitor mais exigente. O livro reafirma Nabokov como um dos escritores mais importantes do século 20, diante de quem a produção ficcional contemporânea parece tímida e minúscula.

Em vida, o autor de “Lolita” publicou em livro 52 contos, reunidos em quatro volumes de 13 (as famosas “dúzias” de Nabokov). Pouco antes de morrer, selecionou mais oito para um quinto volume, que não chegou a ver. Coube a seu filho e tradutor Dmitri, autor do prefácio, fazer a seleção final dos 65 contos (cinco “dúzias”) que constavam na edição americana original dos “Contos reunidos”, aos quais foram acrescentados mais três, à medida que novos originais foram descobertos pelos pesquisadores. Em muitos é possível identificar sementes de tema ou estilo que seriam utilizados posteriormente em romances de Nabokov: é o caso da duplicação dos registros de espaço e tempo do conto “Terra incógnita”, que prenuncia a atmosfera de “Ada” e “Fogo pálido” – para mim seu melhor livro, que pode ser classificado como um romance policial estruturado na forma de análise de um poema, com um enredo invisível sendo costurado pelo jogo sonoro-vocabular da poesia. 

Os grandes temas não são tratados diretamente nos contos, mas aparecem como pano de fundo que afeta de forma decisiva a atmosfera e as circunstâncias de vida dos personagens: a nostalgia do país natal, a ascensão do totalitarismo, a desintegração dos laços com o passado, a necessidade de lidar com a perda e com o destino sempre implacável. Amante de enigmas e jogos de linguagem (que representam um desafio bem superado pela competente tradução de José Rubens Siqueira), Nabokov busca de forma obsessiva o vocabulário preciso e funcional, tratando as palavras com a mesma lupa com que estudava suas borboletas. Diferentes tratamentos da realidade e da imaginação interagem em uma prosa inteligente e erudita mas nunca vaidosa, elegante e poética mas nunca exibida. Essa diluição de fronteiras está presente por exemplo, no conto “A Veneziana”. Já “Símbolos e sigos”, no qual um casal de judeus idosos visita o filho com tendências suicidas numa instituição psiquiátrica, merece figurar em qualquer antologia do conto do século 20. Nenhuma palavra é casual, nem uma vírgula é dispensável: Nabokov é profundo mesmo quando aparentemente se limita a descrever um objeto; a cada parágrafo ele coloca em questão as próprias convenções da representação da realidade e os limites da ficção.

Nabokov nasceu em São Petersburgo, em 1899, numa família aristocrática que perdeu todos os seus bens com a Revolução, sendo forçada a fugir da Rússia em 1919, durante a guerra civil. Exilado, estudou literatura em Cambridge, na Inglaterra (onde seu pai foi assassinado em 1922),  e viveu em Berlim (1923 a 1937)  e Paris (1937-1940, quando escreveu seus primeiros contos, em russo, sob pseudônimo), antes de se radicar nos Estados Unidos, onde lecionou em Stanford, Cornell e Harvard. Seu primeiro livro escrito em inglês foi “A verdadeira vida de Sebastian Knight” (1941), em que já revelava as características que o distinguiriam como um dos maiores estilistas da língua inglesa. Mas foi com “Lolita” (1955), que descreve a paixão de um professor quarentão por sua enteada de 12 anos, que o escritor alcançou o reconhecimento e o sucesso comercial que lhe permitiram largar a atividade acadêmica  para se dedicar exclusivamente à literatura. Adaptado para o cinema por Stanley Kubkrick com roteiro do próprio Nabokov, “Lolita” foi acusado de pornográfico e indutor da pedofilia,  mas o escândalo não comprometeu os méritos literários do romance. Em 1961, o escritor mudou de país mais uma vez, passando a morar com a mulher Vera e o filho Dmitri em Montreux, na Suíça, até sua morte, em 1977.

Primeiro filme de Kurosawa, ‘A saga do judô’ é lançado em DVD

dom, 21/07/13
por Luciano Trigo |
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A história da rivalidade entre o jiu-jitsu e o judô no Japão no final do século 19 dá pano pra manga. Cheguei a pesquisar o assunto anos atrás e logo me vi perdido em um emaranhado de versões e pistas falsas, lacunas e contradições – e o enredo se complica ainda mais quando o jiu-jitsu chega ao Brasil, já no começo do século 20, pelas mãos da família Gracie. Nesse sentido, para o jornalista e para o historiador interessados em artes marciais, e não apenas para os cinéfilos, o lançamento em DVD do primeiro filme de Akira Kurosawa, “A Saga do Judô” (“Sugata Sanshiro”, 1943) e de sua continuação, lançada dois anos depois, é um acontecimento raro. Inéditos no Brasil, os dois filmes (lançados pela distribuidora Versátil, com bônus de 11 minutos de cenas excluídas) são reveladores de como o embate entre as duas lutas era percebido nos anos 40, em plena Segunda Guerra, por aquele que se tornaria um dos maiores cineastas do Japão, ao lado de Ozu e Mizoguchi. Se não chega a ser uma fonte primária, é um documento precioso.

Em 1882, décimo-quinto ano da Era Meiji, Sugata Sanshiro (o ator Susumoi Fujita), um jovem forte e perseverante, chega à cidade em busca de um mestre de jiu-jitsu na Escola de Shinmei, comandada por Monma Saburo. Após testemunhar um confronto entre os discípulos de Saburo e o mestre de judô Yano Shogoro, Sanshiro muda de lado. No embate entre a arte (“jitsu”) e o caminho (“dô”), Kurosawa toma, definitivamente, o partido do judô. Com uma estrutura simples, o longa-metragem combina uma série de desafios entre judocas e praticantes do jiu-jitsu (retratados quase como vilões) com uma história de amor – entre Sanshiro e Sayo, dilha de Murai Hansuke, mestre de jiu-jitsu e um aprendizado pessoal: à medida que se aprimora nas técnicas da luta, o protagonista Sanshiro mergulha também numa viagem de autoconhecimento e espiritualização.

Cena do filme "A saga do judô", de Akira Kurosawa (1943)

“A saga do judô” contém nas entrelinhas diversos ensinamentos budistas, mas a mensagem principal parece ser a de que o verdadeiro conhecimento interpõe muitos obstáculos. Em cenas simples domo a de uma flor iluminada pela lua, Kurosawa reflete sobre a descoberta do verdadeiro sentido da existência por parte do protagonista – o “despertar para a vida”, característico do Kensho, a “experiência da iluminação” zen-budista – e sobre as leis da natureza que regem o mundo. O sermão de Yano sobre o “caminho do Homem” e a sequência em que Sanshiro é persuadido a lutar após um momento de hesitação são típicos do cinema de Kurosawa. A segunda parte do filme, aliás, serviu como unstrumento de propaganda dos valores japoneses no final da Segunda Guerra.

Aos 33 anos, Kurosawa já tinha feito assistência de direção em cinco longas e era autor de dois roteiros – um deles premiado, mas inadequado para ser produzido em tempo de guerra, em função da suposta influência do cinema americano. Por ser um filme de época, considerado seguro pelas autoridades e falando de um tema popular, “A Saga do Judô”, baseado num romance de Tomita Tsuneo (filho de um lendário mestre judoca), foi a oportunidade que o jovem Akira teve de estrear como diretor e começar a desenvolver sua visão ultra-pessoal da linguagem cinematográfica. “Filmes de entretenimento eram mais ou menos a única coisa que nos era permitdo fazer nos idos de 1943”, declarou o cineasta em entrevista ao pesquisador Donald Richie.

Em ‘Rua da Padaria’, Bruna Beber faz da poesia uma janela para o passado

dom, 14/07/13
por Luciano Trigo |
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Com seu jeito distraído e quase avoado, a poeta Bruna Beber foi um dos destaques da FLIP deste ano, onde falou sobre seu novo livro, Rua da Padaria (Record, 68 pgs. R$ 24,90).  Com uma voz muito pessoal, Bruna faz dos poemas veículos para um retorno a situações da infância e da adolescência vividas na Baixada Fluminense, nos anos 90. São versos marcados pela ironia e pelo ceticismo, mas também por uma nostalgia sentimental e quase alegre, algo como aquilo que a gente sente quando folheia um álbum de fotografias de família. Apesar de tão próximo cronologicamente, o passado evocado parece muito distante – não pela ausência cotidiana da internet, da televisão a cabo e do celular, mas pela sensibilidade madura com que Bruna fixa na linguagem momentos de formação. O que importa não são os fatos, aliás banais, mas a vida interior que eles ajudaram a construir e formatar - o registro de histórias ouvidas, de frases soltas, das brincadeiras na rua, filtradas pela memória e pela imaginação. . Hoje com 29 anos e morando em São Paulo, Bruna Beber – também autora de ‘Rapapés e Apupos’, ‘A fila sem fim dos demônios descontentes’ e ‘Balés – fala nesta entrevista sobre o processo criativo de “Rua da padaria” e sobre o projeto de escrever um romance.

- Os poemas de “Rua da Padaria” são marcados por uma nostalgia que parece precoce para alguém que ainda não fez 30 anos. De onde veio esse impulso para resgatar a sua infância e as raízes? Foi algo planejado ou surgiu naturalmente?

BRUNA BEBER: Foi um planejamento a partir de algo que surgiu naturalmente. Minha infância foi muito marcante e profícua, e então decidi cantá-la, depois de recorrentemente me lembrar dela com muita paixão. Ainda sinto uma saudade alegre do tanto que brinquei e fui feliz. É mesmo a nostalgia de um passado recente. Vinte anos é muito e pouco tempo, não sei, o tempo é elástico. Mas, comecei a escrever na infância, e pequena tinha certa noção de que eu podia usar as palavras como quisesse, e era muito incentivada em casa.

- Queria que você falasse um pouco sobre o processo de criação de dois poemas do livro:

1) “O que dói primeiro”, que parece abertamente autobiográfico, na evocação das frases de parentes e da perda do irmão. É tudo verdade? Nesse sentido, escrever esse poema funcionou como uma autoterapia?

BRUNA: Sim, autobiográfico. A cultura oral sempre foi muito presente na minha família, minha avó cantava cantigas para mim, parlendas, e me contava histórias folclóricas como se fossem fatos. Então, nesse poema eu reconstituí minhas memórias orais, os versos desse poema são frases que cresci ouvindo, assim como outros versos do livro. Funcionou mais como abrir um baú de memórias sonoras – e a isso reúno a frase-anúncio da morte do meu irmão – do que como uma autoterapia.

todo urubu titia gritava
urubu urubu, sua casa
tá pegando fogo

todo estrondo na rua
papai dizia eita porra
aposto qué bujão de gás

todo avião vovó acenava
é seu tio! desquentrou preronáutica
num tenho mais sossego

temi e ainda temo toda espécie
inflamável lamentei tanto urubu
desabrigado desejei o fim
da força aérea brasileira

só custei a entender mamãe
e o que queria dizer com seu irmão
não vem mais brincar com você
papai do céu levou.

2) “Romance em 12 linhas”, que resume o roteiro anunciado de tantas histórias de amor, com uma ironia e melancolia que também estão presentes em outros poemas. Você é assim mesmo ou o “eu” da sua poesia é diferente da Bruna “real”?

BRUNA: Meus poemas não são todos autobiográficos, estou bastante longe de falar apenas de mim. Pelo simples fato de que acho muito mais interessante saber das histórias dos outros e contá-las para outros mais. Mas claro que eles misturam certas coisas que vivi com coisas que vi outras pessoas vivendo ou contando que viveram. Há nesse poema sim uma ironia melancólica, mas é também do nosso tempo essa transitoriedade amorosa, raivosa. Eu quis registrar essa infantilidade – ou fatalidade – tão comum – e muitas vezes inevitável – de viver as paixões.

quanto tempo falta pra gente se ver hoje
quanto tempo falta pra gente se ver logo
quanto tempo falta pra gente se ver todo dia
quanto tempo falta pra gente se ver pra sempre
quanto tempo falta pra gente se ver dia sim dia não
quanto tempo falta pra gente se ver às vezes
quanto tempo falta pra gente se ver cada vez menos
quanto tempo falta pra gente não querer se ver
quanto tempo falta pra gente não querer se ver nunca mais
quanto tempo falta pra gente se ver e fingir que não se viu
quanto tempo falta pra gente se ver e não se reconhecer
quanto tempo falta pra gente se ver e nem lembrar que um dia se conheceu

- Você nasceu em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, e morou em São João de Meriti, lugares de “periferia” que muitas pessoas devem achar improváveis para a poesia. Que momentos e circunstâncias da sua infância e adolescência levaram você para esse rumo?

BRUNA: Eu cresci achando o ambiente que me cercava muito peculiar, mesmo sem ter tido muitas experiências fora dele. Achava as pessoas muito interessantes, todos com muitas histórias surreais para contar, e eu ouvia sem hora. É assim a vida real, saborosa de ouvir, surreal, encantada. Talvez isso tenha me feito escritora.

- Você já disse que foi influenciada pelo funk, mas essa sua proximidade da cultura popular parece um pouco enganosa, porque seus poemas, apesar de econômicos na linguagem, são cheios de sutilezas. Isso traduziria um sentimento de desajuste, estranhamento ou não-pertencimento em relação à realidade que te cercava e te cerca – a Baixada na infância, a vida sem varanda em São Paulo hoje?

BRUNA: Eu disse em 2006 que fui influenciada pelo funk [risos], mas fui mesmo. O funk e o rap afinaram meu ouvido, me deram a noção da poesia popular cantada. Era o meu cordel. Não classifico o funk numa posição inferior, não sinto necessidade e nem vejo motivo de fazer separações culturais. Me interesso igualmente pelos dois extremos. Especialmente o funk do começo dos anos 90, melódico, sutil em seus arroubos e extremamente lírico. Também nunca tive uma sensação de não-pertencimento, nunca foi a estranha da rua, mas sempre tive uma vida intelectual inquieta, sabia que queria mais, sabia que o mundo era maior do que o meu bairro e queria vivê-lo. Eu queria ouvir, absorver e contar pros outros. Talvez para concluir que dá quase tudo no mesmo.

- Quando e por que você foi morar em São Paulo? Não se sente um pouco exilada morando aí? Como é sua rotina?

BRUNA: Me sinto exilada e gosto, mas também já tenho laços por aqui, seis anos se passaram. Vim para São Paulo para trabalhar, estava recém-formada no Rio e não conseguia emprego. Então saí da casa dos meus pais e vim morar na sala de uns amigos. Gosto muito de morar aqui, mas não é a minha cidade. O Rio também não. Não sei se a gente precisa sentir uma cidade como sua, uma varanda já me basta.

- Na FLIP você disse que já foi mais desencantada com as pessoas do que é hoje, mas que sempre foi encantada pelas palavras. A escrita foi uma forma de evasão?

BRUNA: A escrita surgiu naturalmente na minha vida e eu me lembro exatamente desse momento. Eu tinha sete anos e percebi que podia juntar palavras e brincar com elas. E quando consegui, parecia que alguém tinha aberto uma janela no meu corpo, uma luz muito forte, eu me enfeiticei. Foi um tipo de mandinga que eu fiz sem querer. Não escrevo para fugir, escrever é inescapável.

- Olhando retrospectivamente para os seus outros três livros, você acha que houve uma evolução? Sua “voz” foi mudando com o tempo ou continua a mesma?

BRUNA: De fato houve uma evolução e ainda bem, quero que minha escrita siga se transformando. Acho que minha voz também mudou um pouco, venho tentando apurar o ouvido.

- você se sente ligada a uma geração, no sentido de fazer parte de um movimento, ou de compartilhar temas, estilo, inquietações?

BRUNA: Não acho que exista uma geração, existem muitas pessoas escrevendo sem compromisso com estilos, escolas, temas e regrinhas comuns. Pelo menos é o que percebo da maioria. Existem as pessoas que eventualmente se organizam em grupos, mas isso é opcional, não preponderante, como já foi um dia em nossa literatura. O que nos une é a época em que estamos produzindo, e algumas afinidades estéticas. Não gosto de gerência nem de cartilhas, gosto do que é rico porque é diverso, e o momento atual é interessante porque é heterogêneo.

- Tendo publicado seus primeiros livros tão jovem, como você lida com o amadurecimento? Dá angústia deixar de ser uma revelação e se tornar uma poeta adulta entre outros poetas adultos?

BRUNA: O Arnaldo Antunes tem uma música que diz que a coisa mais moderna que existe é envelhecer. Eu sempre penso nisso e compartilho esse sentimento. Não sinto essa angústia a que você se refere, acho hoje mais saboroso do que há dez anos.

- Com que poetas, vivos ou mortos, você mais dialoga quando escreve?

BRUNA: Não sei dizer.

- Quais são seus planos agora?

BRUNA: Terminar ou recomeçar mais uma vez o romance que venho tentando escrever faz tempo.

Livro revela os bastidores do xadrez no tabuleiro da Guerra Fria

seg, 08/07/13
por Luciano Trigo |
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Desde a Revolução de 1917 – Lenin e Trotsky eram aficionados – até o desmonte da União Soviética, e particularmente durante a Guerra Fria, o jogo de xadrez foi uma poderosa arma de propaganda do regime comunista sediado em Moscou. A história desse entrelaçamento entre xadrez e política é o tema de “Rei Branco e Rainha Vermelha”, fascinante ensaio do jornalista britânico Daniel Johnson (Record, 420 pgs. R$ 49,90).

Ele próprio enxadrista, correspondente na Guerra Fria e historiador, Johnson começa sua narrativa retrocedendo até a atividade revolucionária na Europa do século 19, quando o tabuleiro era o território dos intelectuais radicais exilados, e as partidas ainda estavam confinadas aos salões dos cafés. Quando os bolcheviques se instalaram no Kremlin, Nikolai Krilenko, o criador do Exército Vermelho, persuadiu Lenin a  adotar o xadrez como um símbolo do poderio soviético. A partir daí, os jogadores passaram a ser obrigados a competir pelo Estado, sob ameaça de serem presos ou exilados.

Com o surgimento da União Soviética, o xadrez se transformou rapidamente em assunto de Estado: este não poupou investimentos para garantir a supremacia internacional no esporte, já que a superioridade incontestável nesse terreno refletia a autoimagem de um império cujo fundamento era o supostamente científico, lógico e racional materialismo dialético. Além disso, o xadrez era um dos raros espaços de livre exercício do intelecto: os jogadores mais fortes, como os melhores cientistas, desfrutavam de privilégios inacessíveis à maior parte da população – desde que, é claro, não entrassem em conflito com a doutrina marxista-leninista nem com a KGB.

Já os Estados Unidos se mostraram, ao longo das primeiras seis décadas do século 20, incapazes de desafiar a supremacia da escola russa: em 1945, em uma série de partidas disputadas pelo rádio, os  mestres soviéticos massacararam os americanos, para alegria de Stálin. Foi assim até que, no final dos anos 50/início dos 60, apareceu Bobby Fischer, um gênio solitário, ferrenho anticomunista (apesar de ser filho de um esquerdista) e declaradamente  antissemita (apesar de ter mãe judia). Fischer foi o exemplo mais radical da fronteira tênue que separa, no xadrez, a genialidade da loucura: ao longo da história, não foram poucos os enxadristas que transformaram o jogo numa perigosa obsessão, alienando-se inteiramente da vida fora das 64 casas do tabuleiro.

Fischer x Spassky, 1972

O clímax de “Rei branco e Rainha Vermelha” é, naturalmente, o célebre match pelo campeonato mundial disputado em 1972 em Reykjavic, na Islândia, cidade que ganhou uma importância simbólica para a Guerra Fria comparável à de Havana ou Berlim. Naquele ano o excêntrico e paranóico Bobby Fischer derrotou o então campeão mundial Boris Spassky de forma avassaladora. A saga do enxadrista americano, aliás, foi tema de diversos livros recentes, entre os quais “Bobby Fischer goes to war”, de David Edmonds e John Eidinow, ainda sem tradução no Brasil.

Para o americano, aquele confronto com Spassky representava a luta entre o bem e o mal, entre o “mundo livre” e a prisão do comunismo. E não apenas para ele: Richard Nixon e Henry Kissinger se empenharam pessoalmente em apoiar o enxadrista, num momento em que a perspectiva de uma guerra nuclear de “mútua destruição assegurada” era mais do que palpável. A vitória de Fischer rompeu a longa hegemonia soviética, mas apenas por um breve período: em 1975 o americano se recusou a defender seu título contra o desafiante russo Anatoly Karpov, perdendo a coroa. Até hoje, especulações sobre quem teria vencido aquele match alimentam discussões infinitas nos fóruns de discussão.

Karpov x Korchnoi, 1978

Igualmente importante foram os matches entre Anatoly Karpov e o dissidente Viktor Korchnoi, disputados em 1978 e 1981, em Baguio, nas Filipinas, e Merano, na Itália. O exército soviético usou todas as armas imagináveis para desestabilizar emocionalmente Korchnoi, incluindo o uso de um parapsicólogo de óculos escuros que olhava fixamente para o enxadrista durante as partidas, além de uma suposta artimanha para enviar mensagens ao campeão Karpov por meio dos sabores e cores do iogurte que ele consumia durante as partidas.  A equipe de Korchnoi, por sua vez, contava com dois mestres iogues. O iogurte venceu a ioga, e Karpov manteve o título – que só perderia para Garry Kasparov, após mais de uma década de domínio absoluto.

Johnson conclui o livro com uma análise do papel de Kasparov como campeão de uma nova era e seus confrontos extra-tabuleito com Vladimir Putin, que chegou a mandá-lo para a prisão. Se durante a Guerra Fria o xadrez foi uma forma de sublimar a destruição total de um conflito nuclear, no duelo entre Kasparov e Putin, a batalha de ideias voltou a se deslocar do tabuleiro para a arena política. Kasparov abandonou o xadrez, mas sua pretensão de se tornar um rival à altura de Putin, um ex-oficial da KGB,  não se realizou.

O interesse de “Rei Branco e Rainha Vermelha”, meticulosamente pesquisado, não se limita aos amantes e praticantes do xadrez. Pela forma como contextualiza os confrontos, combinando análise e anedotas de bastidores, Johnson aborda o jogo como um microcosmo onde se travam diversos debates sociais e culturais associados à ascensão e à queda do comunismo soviético: “Esta é a história de como o xadrez veio a desempenhar um papel único: ao mesmo tempo, um símbolo da Guerra Fria e sua antítese – a cultura da velha Europa que de algum modo havia sobrevivido. O xadrez joga luz sobre o processo pelo qual a civilização ocidental por fim triunfou sobre a mais grave ameaça que enfrentou. E a história do xadrez na Guerra Fria apresenta lições de como lidar com ameaças presentes ou futuras a essa civilização. Como diz a Rainha Branca a Alice em ‘Alice no país do espelho’: É uma pobre espécie de memória que só funciona para trás”, arremata o autor.