Até que ponto as fantasias de uma menina são inocentes? Katelijne, de 12 anos, vive com os pais e cinco irmãos homens numa fazenda em Zeeland, uma província costeira da Holanda. Questionadora, ela não se satisfaz com a rotina de afazeres domésticos e rígidos costumes religiosos. Para sua família, de protestantes ortodoxos, o único o da vida é servir a Deus e buscar a virtude, na esperança da salvação. Quando seu irmão é obrigado a se casar após engravidar a namorada, ela decide fazer confetes de papel para animar a cerimônia, mas nada sai como planejado. O enredo, simples e fragmentado em 12 episódios quase autônomos, é um pretexto para uma reflexão sobre as contradições do universo rural e religioso da pequena Zeeland.
Romance de estréia de Franca Treur, 32 anos, Confetes na Eira, foi um fenômeno no mercado editorial holandês, com 150 mil exemplares vendidos. Graduada em Teoria Literária pela Universidade de Leiden, Franca vive atualmente em Amsterdam. O livro será lançado no Brasil pela Editora Livros de Safra, e Franca Treur é uma das principais atrações da FLIPOÇOS, festa literária que acontece em Poços de Caldas, de 28 de abril a 6 de maio.
- Explique o título do seu romance, Confetes na Eira’.
FRANCA TREUR: A eira era o espaço, nos galpões do passado, onde a colheita de trigo era armazenada durante o verão. No inverno, os trabalhadores batiam o trigo com pedaços de pau, até que os grãos caíssem. Esse processo é chamado de debulha. Atualmente, isso é feito diretamente no campo, por máquinas. Algumas fazendas antiquadas ainda têm uma eira, mas ela é utilizada para outras atividades, como festas e cerimônias de casamento.
No meu romance existe uma tensão constante entre a gravidade da tradição e a liberdade “esclarecida” trazida pela modernização. O confete simboliza essa liberdade. Talvez por isso o livro tenha sido ignorado por publicações ligadas a igrejas conservadoras. Na Bíblia, a eira aparece como uma metáfora para o Juízo Final. No dia em que todos forem julgados, os vivos e os mortos, o joio será separado do trigo. A palha deve ir para o inferno, o trigo para o céu. A avó de Katelijne é a única personagem a usar esta metáfora, porque ela resiste fortemente à nova era.
Nos confetes se escrevem letras, que podem formar palavras novas. Quando sopra uma rajada de vento vindo do passado, as letras se transformam em outras palavras. Palavras não são para sempre.
- Até que ponto a personagem Katelijne é autobiográfica? A sua adolescência foi parecida com a dela?
FRANCA: Katelijne é meio diferente dos outros, como eu costumava me sentir. Eu sempre senti inveja dos meus três irmãos, porque era com eles que as coisas aconteciam. Eles eram levados mais a sério pelo meu pai, que os matriculou no ginásio e mais tarde no curso de agricultura. Eu morava fora da aldeia, que era onde tudo acontecia. Uma das diversões dos meus colegas era esgueirar-se nos jardins de outras casas para ver televisão través das janelas. Eu lia muito quando era adolescente. E, assim como Katelijne, tenho uma forte tendência a me colocar em situações de desafio. Sinto a necessidade de provar que posso conseguir algo. A imprensa holandesa mostrou grande interesse no aspecto autobiográfico do livro. Mas, para mim, este é o elemento menos importante do romance. Por isso fiquei um pouco desapontada, porque isso significa que as pessoas tendem a ler o livro muito superficialmente.
- A religião é um elemento importante em ‘Confetes na Eira’. Fale sobre a sua relação pessoal com a religião, a fé e a noção de pecado.
FRANCA: Quando eu era mais jovem, era religiosa. Minha família era “bevindelijk-gereformeerd” (membros da Igreja Reformada), o que significa que você acredita em um Deus rigoroso, que não deixa passar pecado algum. Para eles, desde que Adão e Eva comeram a maçã, nenhum ser humano tem a chance de chegar ao céu. Por causa da queda original, todos os homens e mulheres se tornaram culpados aos olhos de Deus. Mas um percentual muito pequeno de seres humanos é escolhido diretamente por Ele, para serem salvos. Jesus pagou por seus pecados morrendo na cruz. Então a grande questão é: você é um daqueles poucos escolhidos? Ir à igreja e ler a Bíblia não é suficiente. Não há nenhuma maneira, nada que se possa fazer para merecer o Céu. Somente a misericórdia de Deus pode salvá-lo. Essa misericórdia não pode ser conquistada, mas você deve sempre viver de acordo com as leis de Deus e não cometer pecados, isso é o que Deus pede de você. Acredito que este modo de viver é terrível, porque as pessoas estão constantemente com medo do Inferno e são forçadas a ouvir as pregações mais chatas durante a maior parte de suas vidas.
A definição de pecado pode ser ampla. Isso significa que até mesmo pensando “que professor estúpido!” ou “que criança horrível!” se está cometendo um pecado. Ou mesmo “eu quero tanto uma bicicleta nova!”, porque o desejo é também um pecado. Boa sorte tentando não desejar algo agora! Atualmente eu já não penso em termos de pecado ou culpa. Se algo está errado, depende do contexto. Tento viver de forma responsável, para não sofrer as as conseqüências de decisões erradas que eu tomar. Muitas pessoas na política ou em posições de responsabilidade cometem erros graves, mas nunca assumem a responsabilidade de enfrentar as consequências. Ao contrário, tentam passar a mensagem de que são “boas pessoas”, através da mídia. Então eu penso: a questão não é simplesmente ser uma boa pessoa, você tem que assumir a responsabilidade pelas conseqüências de uma decisão errada. Você ganha muito quando assume essa atitude responsável.
- Como sua família reagiu ao romance Confetes na Eira?
FRANCA: A família Minderhoud do romance é muitas vezes confundida com a família Treur da vida real, e muitos membros da minha família julgaram reconhecer a si próprios ou a seus parentes no livro. Eu escrevo de uma maneira realista e detalhada. Talvez por isso as pessoas imaginem que tudo é verdade, projetando na minha família mesmo aquilo que é completamente ficcional. Por exemplo, há um trecho do livro em que encontram penicilina no leite da fazenda. Para um agricultor esse é o pior pesadelo, é uma mancha na sua reputação. Isso nunca aconteceu com a minha família de verdade, mas meus pais ficaram preocupados, achando que as pessoas iam acreditar que aconteceu em sua fazenda.
Outra questão difícil foi que meus pais de repente ficaram sob os holofotes, algo que eles odeiam. Eles me culparam por isso, no começo, mas aos poucos entenderam. E, no ambiente religioso em que eles vivem, é considerado uma desgraça quando uma filha deixa de frequentar a igreja. Eles ainda estão se acostumado com isso.
- Fale sobre a estrutura do romance, com 12 histórias relativamente autônomas. Quais foram seus modelos e fontes de inspiração? Foi fácil encontrar sua “voz”?
FRANCA: Parecem ser histórias soltas, mas elas estão constantemente se sobrepondo e entrelaçando. Por exemplo, a história sobre a morte do avô volta a aparecer no capítulo final, quando a avó se preocupa com ele. Ela teme que ele tenha ido para o inferno. A morte do avô é uma consequência indireta da imaginação e da fabulação de Katelijne, embora tenha acontecido por acidente. E, no último capítulo, ela inventa para sua avó uma história, para confortá-la. Ela aprendeu o poder das palavras.
Meus escritores favoritos são Margaret Atwood, Jeanette Winterson e Elfriede Jelinek, porque eles continuam a pesquisar as possibilidades da linguagem escrita. Milan Kundera, por sua introspecção e personagens humanos. E Etgar Keret, por sua originalidade.
- Poderíamos dizer que o tema principal do romance é o poder da imaginação?
FRANCA: Para mim, o romance é sobre o poder de contar histórias e o papel da criatividade num ambiente conservador, quase autoritário. Eu poderia ter descrito uma sociedade comunista, mas me sentia muito mais capaz de descrever a comunidade agrícola protestante de Zeeland, já que eu cresci lá. Na escola, em casa e na igreja, a protagonista Katelijne, de 12 anos, é constantemente informada de uma verdade soberana: que Deus criou e orienta o mundo. E que nós vivemos para servi-Lo. Mas, como ela tem seus próprios planos, Catherine passa o tempo lendo livros e inventando histórias.
Mas histórias que não estão na Bíblia representam uma ameaça, porque podem questionar a infalibilidade da Sagrada Escritura. Então, toda vez que Katelijne inventa uma história, algo dá errado no mundo conservador em que ela vive. Seu avô morre, seu irmão é obrigado a se casar, seu pai dela não conseguir completar 30 anos produzindo leite de primeira classe. Esse mundo não tolera bem as suas expressões artísticas. Porque, no fundo, é isso que a arte faz, ela subverte a ordem geral e provoca questões difíceis.
As pessoas precisam de histórias para dar sentido à vida. Ao criar histórias sobre a própria experiência de vida, você se sente melhor, sente que está indo para algum lugar. Se você só acredita na história coletiva, oficial, como os protestantes muito severos, você se submete à autoridade do outro. Para mim, esta não é uma forma autêntica de viver. Somente saindo da história coletiva você pode ser um indivíduo.
- Você esperava um sucesso tão grande, considerando que ‘Confetes na Eira’ não segue a fórmula dos best-sellers?
FRANCA: Na verdade eu esperava sim. Eu trabalhei muito duro e fiquei feliz com o resultado. Mas isso não queria dizer muito. Outras pessoas tinham que enxergar a mesma coisa. Eu sabia que haveria interesse na comunidade religiosa onde cresci. Eu estava certa, a publicação do livro desencadeou umediatamente um debate inflamado. O fato de eu não escrever de uma forma hostil alimentou ainda mais a discussão sobre o livro. Muitos leitores religiosos foram surpreendidos de forma positiva, porque eles esperavam agressões e não havia nenhuma. Mas outros membros da comunidade religiosa ficaram chateados, dizendo que eu era um ‘coração mau’.
Os críticos literários foram rápidos em analisar o livro, que foi unanimemente elogiado e indicado para diversos prêmios. Devido ao aspecto autobiográfico, programas de televisão também ficaram interessados, e com a cobertura da TV as coisas aconteceram muito rápido. Além disso, eu passei muito tempo viajando por todo o país, fazendo leituras. Descobri que havia muitas pessoas que reconheceram algo de si em Katelijne. Não mais do que 50 anos atrás, quase toda a Holanda ainda era muito religiosa. A representação da vida agrária também tocou uma corda sensível nos leitores. As pessoas olham para trás com um sentimento de nostalgia em relação ao tempo em que a vida era simples e ”pura”. Ficar sentado em frente a uma tela não é exatamente uma vida verdadeira.
- No Brasil a Holanda costuma ser vista como uma sociedade muito livre, sem qualquer repressão moral. Seu romance mostra que não é bem assim…
FRANCA: [Risos] Bem, acho que depende de onde você vive. Atualmente eu moro em Amsterdam, e aqui existem poucos protestantes ortodoxos. Mas no campo existe uma espécie de “cinturão da Bíblia”, que vai de Zeeland até depois dos grandes rios. Eles dizem que, quanto mais forte é a correnteza, mais forte é a fé em Deus. Em Zeeland a maior parte da população é muito conservadora. Quando vou visitar minha família lá agora, sou uma espécie de estranha no ninho. Especialmente nas festas de aniversário, quando a família inteira se reúne, com minhas primas todas casadas e grávidas. Eu não sou casada, não tenho casa própria, sequer tenho um carro, então aos olhos deles eu não sou lá um grande sucesso.
- Você acha que a família e o casamento são instituições em crise?
FRANCA: Eu não sei o que é certo ou errado. Posso dizer que para mim é uma coisa boa que os modelos antigos estejam mudando. Passei 18 anos da minha vida em uma família e acho que isso já foi bastante para o resto da minha vida. A vida em família não me agrada muito.
- Quais são seus planos agora?
FRANCA: Comecei a escrever meu segundo romance, que não se passará em Zeeland. Vou falar dos ideais em nosso mundo moderno. Será que eles ainda existem?
- O fato de ser tão bonita afetou a reação ao seu romance?
FRANCA: [Risos].
FLIPOÇOS VAI HOMENAGEAR ANTONIO CANDIDO
Já em sua sétima edição, a FLIPOÇOS – Feira Nacional do Livro de Poços de Caldas deve receber, no Espaço Cultural Urca, 80 mil visitantes, o dobro do ano passado, de 28 de abril a 6 de maio. Com uma programação diversificada, o evento terá debates sobre literatura, quadrinhos, humor, espiritualidade, jornalismo e gastronomia, entre outros temas. Entre os autores que já confirmaram presença estão Ferreira Gullar, Luis Fernando Verissimo, Zuenir Ventura, Reinaldo Moraes, Veronica Stigger, Caco Galhardo, Paulo Caruso, Fernando Gabeira e Guilherme Fiuza. Pela primeira vez a FLIPOÇOS receberá uma escritora estrangeira – a holandesa Franca Treur, que vem ao Brasil lançar o romance Confetes na Eira. O escritor homegaeado será Antonio Candido.
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