Livro e filme decifram Heleno, a estrela mais que solitária

sáb, 31/03/12
por Luciano Trigo |
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Há um momento do filme Heleno – O príncipe maldito em que o enfermeiro que cuida do craque em seus últimos dias, no sanatório em Barbacena, confessa nunca tê-lo visto jogar. Numa época em que não havia televisão, mesmo para seus contemporâneos, o ídolo do Botafogo – e precursor dos craques-problema de hoje – foi mais um mito que uma realidade. E a passagem dos anos tende a apagar a linha que separa realidade e mito. Nesse sentido, qualquer esforço para se recontar a história de Heleno tem que lidar com o desafio de recriar, mais que meramente reconstituir, a trajetória de um homem que foi muito mais que  um jogador de futebol, ao contrário do que diz um personagem do filme (Lá vai o homem que esqueceu que era apenas um jogador de futebol”). É este desafio que enfrentam o cineasta José Henrique Fonseca e também o jornalista Marcos Eduardo Neves, na biografia Nunca houve um homem como Heleno (Zahar, 328 pgs. R$44). Como escreveu Nelson Rodrigues, “Heleno de Freitas não é bem um jogador, mas um personagem do futebol. Não há no futebol brasileiro jogador mais romanesco.”

Assista ao trailer do filme Heleno – O príncipe maldito aqui.

Leia um trecho do livro Nunca houve um homem como Heleno aqui.

HelenoGalã e artilheiro, ídolo egocêntrico, Heleno deu vários azares na vida. Quando estava no auge da sua carreira, entre 1940 e 1947, a Segunda Guerra impediu a realização de duas Copas do Mundo, em 1942 e 1946, que teriam representado a sua consagração. Já na desastrosa Copa de 1950, a fama de encrenqueiro e a não tão boa forma – além da antipatia do técnico Flavio Costa – barraram sua convocação. No Botafogo, clube que defendeu com obsessão por tantos anos, fazendo 204 gols em 234 jogos com a camisa alvinegra, nunca foi campeão – só o foi pelo Vasco da Gama, em 1949. Na Argentina e na Colômbia, sua passagem pelo Boca Juniors e pelo Atletico Junior foi marcada por uma longa série derrotas formidáveis, a ponto de ele merecer uma crônica do então jovem jornalista Gabriel García Márquez, que escreveu:

“… Heleno de Freitas, como jogador de futebol, poderia apresentar-se muito bem, muito mal, ou simplesmente mostrar-se apenas como um embuste brasileiro, mas a verdade é que, mais que centroavente do time, ele era uma espécie de permanente oportunidade para se falar mal de alguém: um réu oficial.”

Cena do filme

Mas os maiores azares de Heleno foram certamente o vício da bebida e das drogas, que ele foi incapaz de controlar, e a sífilis, que, diagnosticada tardiamente, atingiu seu sistema nervoso e foi outra responsável pela ruína precoce do atleta, que morreu aos 39 anos solitário e louco, abandonado e pobre. Outro mal que vitimou Heleno foi a doença da celebridade. Amante da noite e da boemia,  dos Cadillacs e dos ternos bem cortados, das mulheres fáceis e dos prazeres rápidos, era um frequentados assíduo de boates como a Vogue, onde os parasitas habituais nessas situações lhe empurravam as bebidas mais caras e tentavam roubar um pouco do seu brilho.

A elegância natural e a vaidade, que o levava a pentear os cabelos com precisão geométrica e a frequentar os melhores alfaiates, lhe valeram o apelido de Gilda, a eterna personagem de Rita Hayworth. Outro aspecto importante de sua personalidade, que não deve ter ajudado muito na fase da decadência, era o complexo de superioridade: arrogante, Heleno desprezava seus pares, aos quais se sabia superior, no campo e fora dele. Numa época em que muitos jogadores eram analfabetos, Heleno era formado em Direito, escutava jazz e lia Dostoiévski. Livro e filme captam de forma convincente o temperamento conturbado do jogador, que continua despertando um sentimento de nostalgia mesmo em quem nunca o viu jogar.

 

 

1961: Livro revela bastidores do golpe que não deu certo

sáb, 24/03/12
por Luciano Trigo |
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Durante treze dias, em 1961, o Brasil viveu uma situação de guerra civil de fato, com mobilização de tropas e ordens de bombardeio aéreo. Em 1961 – O Golpe Derrotado (L&PM, 240 pgs. R$37), o jornalista Flávio Tavares conta como um movimento de mobilização e resistência popular paralisou e derrotou o golpe de Estado dos ministros do Exército, Marinha e Aeronáutica contra a posse de João Goulart na Presidência – e evitou a guerra­ civil. Na época repórter do jornal Última Hora, Tavares testemunhou e participou do Movimento da Legalidade junto a Leonel Brizola,­ então governador­ do Rio Grande do Sul. Da astúcia de emitir dinheiro próprio para enfrentar­ uma situação de guerra ao uso do rádio para desafiar­ as armas, o autor reconstitui em tom de reportagem detalhes pouco conhecidos desse episódio fundamental de nossa História. Revelando o lado humano e o perfil psicológico dos personagens envolvidos, ele mostra que já estavam sendo plantadas ali as sementes do o golpe militar de 1964. Já elogiado por José Saramago e Ernesto Sábato, Flávio Tavares também é autor de O dia em que Getúlio matou Allende (2004) e de Memórias do esquecimento (1999).

Leia um trecho do livro aqui.

- Se o golpe de 1961 contra a posse de Jango tivesse sido bem-sucedido, quais seriam as consequências para o país? Seriam menos funestas que as do Golpe de 64? Haveria eleições diretas para presidente a curto prazo? Ou os militares já tinham um projeto de ocupação duradoura do poder?

FLAVIO TAVARES: O golpe de Estado é sempre um delito, e se em 1961 tivesse sido vitorioso, não há dúvida de que teria sido ainda mais funesto que o de 1964. Por quê? Porque, entre 1961 e 1964, tivemos três anos de democracia plena, com a mobilização dos diferentes setores sociais, e o país estava aprendendo a ter consciência, a reivindicar e a formar cidadãos. Se o golpe dos três ministros militares houvesse triunfado em 1961, não teria levado adiante a democracia mas simplesmente a teria truncado de imediato. Eles já pensavam até no nome do novo presidente, a ser designado pelo Congresso, e que seria o coronel Juracy Magalhães, então governador da Bahia. Nenhum golpista gosta de povo, muito menos de eleição direta, com o povo elegendo seus governantes.

- Os militares que tentaram impedir a posse de Jango foram os mesmos que o derrubaram em 1964?

TAVARES: Mostro em meu livro como os derrotados em 1961 começaram a preparar a derrubada do presidente João Goulart já nos primeiros dias do seu governo. Menciono no livro documentos do escritório da CIA na Embaixada dos Estados Unidos – que funcionava no Rio, na época – sugerindo, 13 dias após a posse de Goulart, que se pensasse numa forma de derrubá-lo do poder, sob o pretexto de “ter vínculos com os comunistas”. Além dos três ministros militareS, o grande derrotado de 1961 foi o general Cordeiro de Farias, que não pôde sequer assumir o comando do Exército no Sul, para substituir os chefes que haviam se solidarizado com Leonel Brizola. Daí em diante, ele passa a ser o grande articulador do futuro golpe de 1964. O coronel Golbery do Couto de Silva foi o mentor intelectual do golpe de 1961 e, a partir da posse de João Goulart, fez a ligação dos militares golpistas com a direita civil e com a própria Embaixada dos Estados Unidos. Outro derrotado de 1961 foi o general Ulhoa Cintra, que chegou a minar pontes e estradas para impedir a passagem das tropas do Sul e passou a ser o  contato entre o adido militar da Embaixada dos Estados Unidos e os golpistas, tratando até do recebimento de armas para o golpe de 1964.

Jornal UH- Quais foram os momentos mais dramáticos da resistência ao golpe em 1961? O que evitou que acontecesse uma guerra civil?

TAVARES: O momento mais drámático da resistência ocorreu dois dias após a renúncia do presidente Jânio Quadros, quando os ministros militares mandaram que tropas do Exército atacassem o Palácio do Governo, em Porto Alegre, onde o governador Leonel Brizola estava entrincheirado, junto com milhares de civis. Todos recebemos armas para a defesa, e nós, os jornalistas, fomos os primeiros a nos colocar nas janelas do Palácio, junto às barricadas, prontos para nos defendermos do ataque de um adversário melhor preparado militarmente e que dispunha de tanques e canhões. Depois de uma longa espera, de horas, o Exército desistiu do ataque, logo que uma coluna de jipes armados, que faria a inspeção da área junto ao palácio, foi paralisada em plena rua por uma centena de populares. A guerra civil de fato começou, como demonstro no livro, e só não foi adiante porque a Cadeia de Rádio da Legalidade, transmitindo dos porões do Palácio em Porto Alegre, mobilizou a população de todo o Brasil na campanha contra o golpe de Estado. Depois disto, o Congresso amenizou a derrota dos ministros militares e implantou o parlamentarismo, podando os poderes do Presidente da república.

- É verdade que Jango estava com uma prostituta, na China, quando recebeu a notícia da renúncia de Jânio? Como surgiu essa informação?

TAVARES: Na China não, pois não havia prostitutas por lá, na época. Mas Jango voltava da China comunista e estava na cama com uma garota de programa no hotel em Cingapura, vindo da China, quando recebeu a notícia da renúncia de Jânio Quadros, que o transformava naturalmente em Presidente da República. Pela diferenca de fuso horário, em Cingapura era madrugada, quase raiando o outro dia, quando se oficializou a renúncia de Jânio Quadros à tarde, em Brasília. Dois membros da comitiva de Jango, os jornalistas Joao Etcheverry e Raul Ryff, contaram-me detalhes dessa madrugada em Cingapura e de como transmitiram a notícia a Jango Goulart.

- Quem seriam os políticos mais beneficiados e mais prejudicados se Jango não tivesse tomado posse? Como Carlos Lacerda e JK se comportaram durante o episódio?

TAVARES: Com um golpe de Estado, em verdade, ninguém se beneficia, ainda que os anti-janguistas acreditassem que poderiam talvez levar vantagens se Jango Goulart não assumisse. Juscelino Kubitscheck tinha deixado a Presidência apenas sete meses antes e ficou em cima do muro nos primeiros dois dias, mas depois definiu-se contra o golpe, ao perceber que a resistência iniciada no Sul se espalhava pelo Pais. O governador da Guanabara, Carlos Lacerda, líder civil da direita liberal, ficou a favor do golpe e começou a prender gente pelos quatro cantos do Rio de Janeiro, ocupou a sede da UNE e todos os grandes sindicatos, como o dos ferroviários e dos marítimos, em que os comunistas eram fortes, além de censurar a imprensa. Mas, depois, mesmo mantendo as prisões e a censura, percebeu o perigo do golpe de Estado e se manifestou pela posse de Jango, dando a palavra de ordem de “ser oposicão forte e, se preciso, derrubá-lo”.

Porto Alegre em 1961

- Dentro das Forças Armadas, havia militares que defendiam Jango?

TAVARES: Claro que sim. As Forças Armadas dividiram-se. O III Exército, a maior força terrestre do país, atuando no Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, oficialmente ficou com Brizola, a favor da posse de Goulart. No Rio, além disso, dezenas de altos oficiais, de coronel para cima, até generais, no Exército, Aeronáutica e Marinha. foram presos por se manifestarem a favor da posse de Goulart.

- Como esse episódio afetou a política internacional, e qual foi a reação dos Estados Unidos?

TAVARES: Os Estados Unidos foram surpreendidos, como todos, pela renúncia de Jânio Quadros e foram cautelosos. Mas na cautela demonstravam apoio ao golpe, pois não denunciaram a tentativa dos ministros militares, como haviam feito em outros golpes naqueles anos, como o do Peri, poucos meses antes. A Embaixada dos Estados Unidos no Brasil sugeriu que o Washington não se pronunciasse contra o golpe, que se calasse, não dizendo “sim” nem “não”. Os ministros militares golpistas diziam que Jango Goulart não podia tomar posse “por ser um pró-comunista”, caracterizando o golpe, assim, como resultado da Guerra Fria que dominava o mundo, e no qual os Estados Unidos eram um dos pólos.

- Como a imprensa se comportou? Hoje parece que todos os jornalistas eram legalistas em 1961…

TAVARES: Nos golpes de Estado, a primeira vítima é a liberdade, a começar pela liberdade de imprensa. Por isso, praticamente todos os jornalistas ficaram contra o golpe, contra o delito. A resistência no Rio Grande do Sul, que depois se espalhou pelo país, só se multiplicou pela ação dos jornalistas, primeiro pelos jornais, depois pela Cadeia de Rádio da Legalidade. No Sul, eu coordenei uma edição extra do antigo jornal Última Hora, que lançou na rua a luta contra o golpe. Se tiver que mencionar nomes, cito o jornalista Hamilton Chaves, secretário de Imprensa do governo gaúcho, que coordenou a Cadeia de Rádio da Legalidade, ouvida em todo o país e captada até no Caribe e na costa dos Estados Unidos, transmitindo em vários idiomas, até em árabe, tudo em trabalho voluntário. No Rio, cito o jornalista Samuel Wainer e, em São Paulo,  o jornalista Josimar Moreira, ambos da Última Hora, desde o primeiro minuto contra o golpe.  Prefiro não mencionar os que ficaram a favor do golpe.

Brizola em 1961- O Brizola de 1961 tinha a convicção de que um dia seria Presidente? Que avaliação você faz hoje do projeto político de Brizola?

TAVARES: Brizola não pensava nisso em 1961. Sua  reação contra o golpe foi natural, algo que não necessitava explicação alguma, pois significava apenas pedir o respeito à Lei e o cumprimento da Constituição.  Como ele se fez líder nacional naquele momento, creio que daí em diante, sim, ele pode ter começado a pensar na Presidência da República.  Em meu livro, dou testemunho do Brizola jovem, audaz e destemido, que teve a lucidez de se rebelar contra o golpe por intuir que o possível triunfo dos golpistas transformaria o Brasil numa republiqueta sem liberdade, submissa aos Estados unidos em todas as esferas, como vinha acontecendo no resto da América Latina. Falo do Brizola de 1961.

- A era dos golpes está definitivamente ultrapassada no Brasil? Como o senhor, que foi um preso político, analisa os debates em torno da Comissão da Verdade?

TAVARES: Sim, a era dos golpes está ultrapassada, por uma simples razão: hoje, os Estados Unidos já não têm interesse em instigar as Forças Armadas do Brasil e outras nações, pois os militares se desmoralizaram no poder por si próprios, onde quer que fosse. Hoje a Guerra Fria não surge como pretexto para golpes, e a dominacão estrangeira ocorre através das empresas multinacionais. Quanto à Comissão da Verdade, é evidente que temos de ser a favor. O passado não pode ser omitido e deve ser revelado, para que as maldades cometidas nunca mais se repitam. Isto ocorre até hoje na Alemanha, com relação ao nazismo. Nos outros países com ditaduras da América Latina, como Argentina, Chile e Uriguai, o passado vem sendo exumado e revelado a cada dia, pois é absurdo e criminoso ocultar a verdade.

- Então a ideia de uma anistia ampla e irrestrita deve ser revista? Não foi ela que garantiu uma transição suave da ditadura para a democracia no Brasil?

TAVARES: Creio que a Anistia não deve ser revista e abrange a todos, aos que resistiram à ditadura, como eu e tantos mais, e também aos que defenderam a ditadura e reprimiram as lutas pela liberdade. Foi a Lei de Anistia, sim, que assegurou a transição da ditadura para a democracia no Brasil e, ao funcionar como ponte, deve permanecer intacta. Mas a Comissão da Verdade não foi instituída para terminar com a Lei de Anistia. A Comissão da Verdade não é instrumento para punir ninguém, mas sim a ferramenta fundamental para nos devolver a História real e revelar o que houve no Brasil. Será a complementação da Lei de Anistia. Só com a verdade pode uma nação se desenvolver sem débito com o passado.

LEIA TAMBÉM:

Capa 21961 – O Brasil entre a ditadura e a guerra civil de Paulo Markun e Duda Hamilton (Benvirá, 368 pgs. R$43)

Segunda-feira, final de agosto de 1961. Jânio Quadros renunciara depois de apenas sete meses de governo, alegando que “forças terríveis” se levantavam contra ele. O vice-presidente, João Goulart, em viagem oficial à China, temia voltar ao país – não sabia se, ao chegar, seria empossado ou preso pelos militares contrários à sua posse. Enquanto isso, o então governador gaúcho Leonel Brizola exortava os brasileiros a resistir ao golpe que se avizinhava. A história desses dias tensos é contada aqui pelos jornalistas Paulo Markun e Duda Hamilton num trabalho detalhista e criterioso, essencial para entender um episódio crucial da história recente do país.

Filme a filme, a aventura criadora do cineasta Robert Bresson

sáb, 17/03/12
por Luciano Trigo |
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Bresson

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Em Bresson – O ato puro das metamorfoses (editora É Realizações, 370 pgs. R$69), o crítico Jean Sémolué sintetiza mais de cinco décadas de reflexões sobre a obra de Robert Bresson (1901-1999), a quem dedicou seu primeiro ensaio em 1957, publicado no número 75 da revista Cahiers du Cinéma.  Trata-se, portanto de um duplo balanço: da trajetória de Bresson e da evolução da própria relação entre o crítico e o cineasta francês, autor de uma obra enigmática e inventiva, que ainda hoje impressiona espectadores do mundo inteiro.

A filmografia de Robert Bresson é relativamente pequena, mas atravessa um longo período de tempo. Ele estreou com um média-metragem, Affaires Publiques, em 1934, e lançou seu último longa, O Dinheiro, em 1983. Ao todo foram 13 longas-metragens separados por intervalos – motivados em parte pela dificuldade em obter financiamentos para seus filmes tão pouco comerciais – nos quais Bresson amadurecia e aprofundava suas reflexões sobre o cinema. Escreveu, além disso, um livro pequeno mas fundamental, Notas sobre o Cinematógrafo, no qual ficam claras a sofisticação de seu pensamento e sua busca incansável por encontrar a essência da linguagem cinematográfica, autônoma em relação ao teatro, à literatura e às artes plásticas. Publicada em 1975, essa preciosa reunião de anotações e aforismos inspirou diretamente o movimento Dogma 95, dos dinamarqueses Lars Von Trier e Thomas Vintenberg.

Graduado em artes plásticas e filosofia, Robert Bresson tentou a carreira como pintor antes de se tornar roteirista. No início da Segunda Guerra, foi prisioneiro em um campo de concentração alemão, por mais de um ano, experiência que marcou profundamente a sua cinematografia. Outro fator indispensável para se entender Bresson é a sua formação católica, que explica o sentido espiritual latente em diversos de seus filmes. Mas Sémolué não tem qualquer pretensão biográfica em seu livro: sobre o homem Bresson ficamos sabendo apenas o necessário para entender o contexto de criação de sua obra (quase toda ela disponível em DVD), analisada, esta sim, em detalhes. Nela se revelam as obsesões temáticas do diretor: o acaso e o destino, o sofrimento e a culpa, a solidão e a dificuldade de comunicação que são traços inescapáveis da existência.

A amargura do cineasta atinge seu ápice em seu último filme, um ensaio em forma de ficção sobre o papel do dinheiro como mediador de todas as relações humanas – afetivas, familiares, sociais, jurídicas. Gosto mais da primeira metade da narrativa, que põe a nu a naturalidade com que convivemos com os pequenos delitos incorporados ao cotidiano, que da segunda, na qual o protagonista reage de forma extrema (e estranhamente fria) à conspiração de acontecimentos que transformou sua vida num inferno. Mas não há como negar que O Dinheiro é um filme vigoroso e ousado em sua proposta: cinema para adultos.

Segundo Jean-Luc Godard, Robert Bresson está para o cinema francês como Dostoiévski está para o romance russo e Mozart para a música alemã. Não é preciso dizer mais nada.

 

FILMOGRAFIA DE ROBERT BRESSON:

1943 - Anjos do Pecado (Les Anges du Péché)
A ordem das Irmãs de Betânia é uma instituição de freiras dedicada a cuidar de mulheres condenadas à prisão. Quando a jovem Anne-Marie chega, é encarregada da detenta Thérèse, que alega estar lá injustamente. Libertada, ela vai às ruas matar o homem que a incriminou e volta para a instituição em busca de refúgio. Anne-Marie tenta mudar Thérèse, mas acaba sendo expulsa da ordem.

1945: As Damas do Bois de Boulogne (Les Dames du Bois de Boulogne)

Damas do BoisDesejando se vingar do amante Jean, que a abandonou, Hélene, mulher da alta sociedade, pede a uma dançarina de cabaré que o seduza. Só que a vingança se transforma num escandaloso romance. Essa original história de amor, baseada no clássico de Denis Diderot Jacques o Fatalista, tem roteiro de Jean Cocteau. Com rigorosa direção de arte, recebeu elogios de André Bazin e François Truffaut.

1951: Diário de um Padre (Journal d’un curé de campagne)

DiárioUm jovem padre é nomeado pároco na pequena aldeia de Ambricourt. Com uma personalidade frágil e saúde debilitada, o padre tem dificuldades em se impor aos paroquianos, que o recebem com hostilidade. Busca então, conforto moral e espiritual com o pároco da cidadela vizinha. Na época, não teve boa aceitação de público e crítica. Adaptação seca e contida do romance de Georges Bernanos.

1956: Um Condenado à Morte Escapou (Un condamné à mort s’est échappé)
O filme conta a história real do ativista Andre Devigni, integrante da Resistência francesa durante a ocupação nazista. Quando ele é preso e jogado numa cela, passa suas noites em claro orquestrando um plano de fuga. Mas, no mesmo dia que ele recebe sua sentença de morte, ganha um novo colega de cela. Seria ele um espião da Gestapo?

1959: Pickpocket – O Batedor de Carteiras (Pickpocket)

PickpocketInspirando-se livremente no romance Crime e Castigo, de Dostoiévski, Bresson nos conta, com seu rigor característico, a trajetória de um batedor de carteiras chamado Michel, seus furtos e sua tentativa de mudar de vida. Pickpocket influenciou inúmeros cineastas e roteiristas, como Paul Schrader, que o considera uma “obra de arte absoluta”.

 

1962: O Processo de Joana D’Arc (Le Procès de Jeanne D’Arc)

Processo de JoanaBresson reconstitui, com seu rigor formal característico, a prisão, o julgamento e a execução de Joana D´Arc, baseando-se exclusivamente em documentos históricos. Ao lado do clássico A Paixão de Joana D´Arc, de Carl Dreyer, esta é a mais genial e fascinante versão cinematográfica do martírio da heroína francesa.

 

 

1966: A Grande Testemunha (Au Hasard Balthazar)

HasardA inusitada história de um burrico chamado Balthazar, desde o seu nascimento até se tornar adulto, utilizado para transportar cargas pesadas. Bresson conta também a história paralela de sua dona, quem lhe deu este nome e que sofre com as humilhações de seu amante.

 

 

 

1967: Mouchette – A Virgem Possuída (Mouchette)

MouchetteA história de uma menina do campo violentada por um caçador é o ponto de partida para o diretor colocar em evidência, de maneira implacável, a miséria e a crueldade humanas. Mouchette é uma garota solitária, que vive com seus pais numa casa modesta. Seu pai é alcoólatra, e sua mãe está perto de morrer. Premiado nos Festivais de Cannes e Veneza.

1969: Uma Mulher Suave (Une Femme Douce)

femme douceNeste primeiro filme de Bresson a cores, a história em flash-backs de uma jovem mulher e sua vida ao lado do marido. Os dois não poderiam ser mais diferentes: o calculismo e frieza do parceiro a leva à loucura, a um frustrado plano de matar o marido e, por fim, ao suicídio.

 

1971: Quatro Noites de um Sonhador (Quatre Nuits d’un Reveur)

ReveurJacques é um rapaz sonhador que, ao perambular pelas ruas de Paris, encontra Marthe, uma mulher que está prestes a se matar. Pensando que seu amante a abandonara, ela se volta para Jacques. Os dois se encontram nas duas noites seguintes e vãose apaixonando, até o namorado voltar na quarta noite.

 

 

1974: Lancelot do Lago (Lancelot du Lac)

A história dos cavaleiros do Rei Artur, contada com um tratamento realista. Mostrados como homens comuns, eles voltam de uma fracassada busca pelo Santo Graal, e a narrativa volta o foco para o relacionamento de Lancelot e Guinevere e o fim de Camelot.

1977: O Diabo Provavelmente (Le Diable Probablement)

diaboUm adolescente parisiense vaga pela cidade sem futuro aparente, rejeitando o claustrofóbico e superficial estilo de vida moderno. Quando sua família, amigos e psiquiatra não conseguem ajudá-lo, ele começa a se relacionar com duas mulheres e um hippie.

1983: O Dinheiro (L’Argent)

argentO jovem Yvon decide usar uma nota falsa de 500 francos, dando início a uma seqüência de acontecimentos surpreendentes. Com rigor formal, Bresson constroi um drama moral sobre a reificação das relações humanas no mundo contemporâneo. Inspirado num conto de Leon Tolstoi. Prêmio de melhor direção no Festival de Cannes.

 

LEIA TAMBÉM:

Capa 2O Processo de Joana D’Arc de Robert Bresson. Editora É Realizações, 144 pgs. R$39

“Ruas, praças, escolas, poemas e barcos recebem seu nome. Antes mesmo de aprender a história da França conhecemos a sua. Suas imagens lendárias estão por todos os lados. Numa, camponesa, noutra, capitã. Numa, sentada com suas ovelhas, escutando o que Deus lhe ordena. Noutra, obedecendo-lhe, montada em um cavalo, feita comandante na guerra. Estranha capitã, que preferia seu estandarte à sua espada. Robert Bresson foi o primeiro cineasta no mundo que a ouviu e que filmou suas palavras. Pois se, antes de Bresson, Dreyer tinha tornado a Paixão de Joana universal, o cinematógrafo ainda era mudo. Eis porque, depois de um simples rufar de tambores evocando as vitórias militares a que deveu sua prisão, aparece escrito na tela, no início do filme:

“Joana d’Arc morreu em 30 de maio de 1431. Não teve sepultura e não temos nenhum retrato dela. Mas temos algo melhor que um retrato: suas palavras perante os juízes de Rouen.”

Capa 3Notas sobre o Cinematógrafo de Robert Bresson. Iluminuras, 144 pgs. R$42

Notas sobre o cinematógrafo é uma preciosa coletânea de frases que o cineasta francês Robert Bresson foi fazendo ao longo das décadas em que se dedicou à produção de filmes seminais como Pickpocket, Um condenado à morte escapou a grande testemunha. Bresson pensava a imagem como pintura e o som, como uma partitura musical de ruídos, sempre com o máximo de rigor, com o firme propósito de vislumbrar instantes de eternidade nas ações mais prosaicas do cotidiano. Cinema, para Bresson, era sinônimo de revelação: uma espécie de decalque de um “real” que se manifesta se velando, nos religando à manifestação divina da própria vida. Era com essa convicção que Bresson, católico jansenista, preparava cuidadosamente os seus filmes, criando “leis de ferro” para o próprio processo de criação. Notas sobre o cinematógrafo é todo pontuado por essa visão epifânica da arte cinematográfica e tornou-se uma bíblia das especificidades dessa linguagem misteriosa que é a chamada sétima arte. Bresson influenciou várias gerações de realizadores, de Jean-Luc Godart a Lars Von Trier. Muitos mandamentos do Dogma 95, criado pelo cineasta dinamarquês, foram extraídos de Notas sobre o cinematógrafo. Para Godard, que o homenageou em um de seus filmes mais recentes, elogio ao amor, “Bresson é o cinema francês, como Dostoievski é o romance russo, e Mozart a música alemã”. ”Construa seu filme sobre o branco, sobre o silêncio e sobre a imobilidade”, é um dos ensinamentos de Bresson que podem ser ouvidos no filme de Godard.

Cinema por subtração, sempre movido por um minimalismo desesperado em busca da essência dos sons e das imagens em movimento. A ação nos filmes de Bresson se desenrola com muita freqüência nas bordas do quadro ou fora dele, numa tentativa de fazer com que cada espectador confeccione a narrativa na própria mente, levando assim o paroxismo as possibilidades sugestivas da linguagem cinematográfica. Como escreve Le Clézio no prefácio deste livro, as frases de Bresson são “cicatrizes, marcas de sofrimento, jóias preciosas (…) que brilham como estrelas, nos mostrando o árduo e simples caminho rumo à perfeição”.

Revelação da literatura holandesa, Franca Treur estará na FliPoços

sáb, 10/03/12
por Luciano Trigo |
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Até que ponto as fantasias de uma menina são inocentes? Katelijne, de 12 anos, vive com os pais e cinco irmãos homens numa fazenda em Zeeland, uma província costeira da Holanda. Questionadora, ela não se satisfaz com a rotina de afazeres domésticos e rígidos costumes religiosos. Para sua família, de protestantes ortodoxos, o único o da vida é servir a Deus e buscar a virtude, na esperança da salvação. Quando seu irmão é obrigado a se casar após engravidar a namorada, ela decide fazer confetes de papel para animar a cerimônia, mas nada sai como planejado. O enredo, simples e fragmentado em 12 episódios quase autônomos, é um pretexto para uma reflexão sobre as contradições do universo rural e religioso da pequena Zeeland.

Romance de estréia de Franca Treur, 32 anos, Confetes na Eira, foi um fenômeno no mercado editorial holandês, com 150 mil exemplares vendidos. Graduada em Teoria Literária pela Universidade de Leiden, Franca vive atualmente em Amsterdam. O livro será lançado no Brasil pela Editora Livros de Safra, e Franca Treur é uma das principais atrações da FLIPOÇOS, festa literária que acontece em Poços de Caldas, de 28 de abril a 6 de maio.

 

Franca Treur


- Explique o título do seu romance, Confetes na Eira’.

FRANCA TREUR: A eira era o espaço, nos galpões do passado, onde a colheita de trigo era  armazenada durante o verão. No inverno, os trabalhadores batiam o trigo com pedaços de pau, até que os grãos caíssem. Esse processo é chamado de debulha. Atualmente, isso é feito diretamente no campo, por máquinas. Algumas fazendas antiquadas ainda têm uma eira, mas ela é utilizada para outras atividades, como festas e cerimônias de casamento.

No meu romance existe uma tensão constante entre a gravidade da tradição e a liberdade “esclarecida” trazida pela modernização. O confete simboliza essa liberdade. Talvez por isso o livro tenha sido ignorado por publicações ligadas a igrejas conservadoras. Na Bíblia, a eira aparece como uma metáfora para o Juízo Final. No dia em que todos forem julgados, os vivos e os mortos, o joio será separado do trigo. A palha deve ir para o inferno, o trigo para o céu. A avó de Katelijne é a única personagem a usar esta metáfora, porque ela resiste fortemente à nova era.

Nos  confetes se escrevem letras, que podem formar palavras novas. Quando sopra uma rajada de vento vindo do passado, as letras se transformam em outras palavras. Palavras não são para sempre.

- Até que ponto a personagem Katelijne é autobiográfica? A sua adolescência foi parecida com a dela?

FRANCA: Katelijne é meio diferente dos outros, como eu costumava me sentir. Eu sempre senti inveja dos meus três irmãos, porque era com eles que as coisas aconteciam. Eles eram levados mais a sério pelo meu pai, que os matriculou no ginásio e mais tarde no curso de agricultura. Eu morava fora da aldeia, que era onde tudo acontecia. Uma das diversões dos meus colegas era esgueirar-se nos jardins de outras casas para ver televisão través das janelas. Eu lia muito quando era adolescente. E, assim como Katelijne, tenho uma forte tendência a me colocar em situações de desafio. Sinto a necessidade de provar que posso conseguir algo. A imprensa holandesa mostrou grande interesse no aspecto autobiográfico do livro. Mas, para mim, este é o elemento menos importante do romance. Por isso fiquei um pouco desapontada, porque isso significa que as pessoas tendem a ler o livro muito superficialmente.

- A religião é um elemento importante em ‘Confetes na Eira’. Fale sobre a sua relação pessoal com a religião, a fé e a noção de pecado.

FRANCA: Quando eu era mais jovem, era religiosa. Minha família era “bevindelijk-gereformeerd” (membros da Igreja Reformada), o que significa que você acredita em um Deus rigoroso, que não deixa passar pecado algum. Para eles, desde que Adão e Eva comeram a maçã, nenhum ser humano tem a chance de chegar ao céu. Por causa da queda original, todos os homens e mulheres se tornaram culpados aos olhos de Deus. Mas um percentual muito pequeno de seres humanos é escolhido diretamente por Ele, para serem salvos. Jesus pagou por seus pecados morrendo na cruz. Então a grande questão é: você é um daqueles poucos escolhidos? Ir à igreja e ler a Bíblia não é suficiente. Não há nenhuma maneira, nada que se possa fazer para merecer o Céu. Somente a misericórdia de Deus pode salvá-lo. Essa misericórdia não pode ser conquistada, mas você deve sempre viver de acordo com as leis de Deus e não cometer pecados, isso é o que Deus pede de você. Acredito que este modo de viver é terrível, porque as pessoas estão constantemente com medo do Inferno e são forçadas a ouvir as pregações mais chatas durante a maior parte de suas vidas.

A definição de pecado pode ser ampla. Isso significa que até mesmo pensando “que professor estúpido!” ou “que criança horrível!” se está cometendo um pecado. Ou mesmo “eu quero tanto uma bicicleta nova!”, porque o desejo é também um pecado. Boa sorte tentando não desejar algo agora! Atualmente eu já não penso em termos de pecado ou culpa. Se algo está errado, depende do contexto. Tento viver de forma responsável, para não sofrer as as conseqüências de decisões erradas que eu tomar. Muitas pessoas na política ou em posições de responsabilidade cometem erros graves, mas  nunca assumem a responsabilidade de enfrentar as consequências. Ao contrário, tentam passar a mensagem de que  são “boas pessoas”, através da mídia. Então eu penso: a questão não é simplesmente ser uma boa pessoa, você  tem que assumir a responsabilidade pelas conseqüências de uma decisão errada. Você ganha muito quando assume essa atitude responsável.

- Como sua família reagiu ao romance Confetes na Eira?

FRANCA: A família Minderhoud do romance é muitas vezes confundida com a família Treur da vida real, e muitos membros da minha família julgaram reconhecer a si próprios ou a seus parentes no livro. Eu escrevo de uma maneira realista e detalhada. Talvez por isso as pessoas imaginem que tudo é verdade, projetando na minha família mesmo aquilo que é completamente ficcional. Por exemplo, há um trecho do livro em que encontram penicilina no leite da fazenda. Para um agricultor esse é o pior pesadelo, é uma mancha na sua reputação. Isso nunca aconteceu com a minha família de verdade, mas meus pais ficaram preocupados, achando que as pessoas iam acreditar que aconteceu em sua fazenda.

Outra questão difícil foi que meus pais de repente ficaram sob os holofotes, algo que eles odeiam. Eles me culparam por isso, no começo, mas aos poucos entenderam. E, no ambiente religioso em que eles vivem, é considerado uma desgraça quando uma filha deixa de frequentar a igreja. Eles ainda estão se acostumado com isso.

- Fale sobre  a estrutura do romance, com 12 histórias relativamente autônomas. Quais foram seus modelos e fontes de inspiração? Foi fácil encontrar sua “voz”?

FRANCA: Parecem ser histórias soltas, mas elas estão constantemente se sobrepondo e entrelaçando. Por exemplo, a história sobre a morte do avô volta a aparecer no capítulo final, quando a avó se preocupa com ele. Ela teme que ele tenha ido para o inferno. A morte do avô é uma consequência indireta da imaginação e da fabulação de Katelijne, embora tenha acontecido por acidente. E, no último capítulo, ela inventa para sua avó uma história, para confortá-la. Ela aprendeu o poder das palavras.

Meus escritores favoritos são Margaret Atwood, Jeanette Winterson e Elfriede Jelinek, porque eles continuam a pesquisar as possibilidades da linguagem escrita. Milan Kundera, por sua introspecção e personagens humanos. E Etgar Keret, por sua originalidade.

- Poderíamos dizer que o tema principal do romance é o poder da imaginação?

FRANCA: Para mim, o romance é sobre o poder de contar histórias e o papel da criatividade num ambiente conservador, quase autoritário. Eu poderia ter descrito uma sociedade comunista, mas me sentia muito mais capaz de descrever a comunidade agrícola protestante de Zeeland, já que eu cresci lá. Na escola, em casa e na igreja, a protagonista Katelijne, de 12 anos, é constantemente informada de uma verdade soberana: que Deus criou e orienta o mundo. E que nós vivemos para servi-Lo. Mas, como ela tem seus próprios planos, Catherine passa o tempo lendo livros e inventando histórias.

Mas histórias que não estão na Bíblia representam uma ameaça, porque podem questionar a infalibilidade da Sagrada Escritura. Então, toda vez que Katelijne inventa uma história, algo dá errado no mundo conservador em que ela vive. Seu avô morre, seu irmão é obrigado a se casar, seu pai dela não conseguir completar 30 anos produzindo leite de primeira classe. Esse mundo não tolera bem as suas expressões artísticas. Porque, no fundo, é isso que a arte faz, ela subverte a ordem geral e provoca questões difíceis.

As pessoas precisam de histórias para dar sentido à vida. Ao criar histórias sobre a própria experiência de vida, você se sente melhor, sente que está indo para algum lugar. Se você só acredita na história coletiva, oficial, como os protestantes muito severos, você se submete à autoridade do outro. Para mim, esta não é uma forma autêntica de viver. Somente saindo da história coletiva você pode ser um indivíduo.

- Você esperava um sucesso tão grande, considerando que ‘Confetes na Eira’ não segue a fórmula dos best-sellers?

FRANCA: Na verdade eu esperava sim. Eu trabalhei muito duro e fiquei feliz com o resultado. Mas isso não queria dizer muito. Outras pessoas tinham que enxergar a mesma coisa. Eu sabia que haveria interesse na comunidade religiosa onde cresci. Eu estava certa, a publicação do livro desencadeou umediatamente um debate inflamado. O fato de eu não escrever de uma forma hostil alimentou ainda mais a discussão sobre o livro. Muitos leitores religiosos foram surpreendidos de forma positiva, porque eles esperavam agressões e não havia nenhuma. Mas outros membros da comunidade religiosa ficaram chateados, dizendo que eu era um ‘coração mau’.

Os críticos literários  foram rápidos em analisar o livro, que foi unanimemente elogiado e indicado para diversos prêmios. Devido ao aspecto autobiográfico, programas de televisão também ficaram interessados, e com a cobertura da TV as coisas aconteceram muito rápido. Além disso, eu passei muito tempo viajando por todo o país, fazendo leituras. Descobri que havia muitas pessoas que reconheceram algo de si em Katelijne. Não mais do que 50 anos atrás, quase toda a Holanda ainda era muito religiosa. A representação da vida agrária também tocou uma corda sensível nos leitores. As pessoas olham para trás com um sentimento de nostalgia em relação ao tempo em que a vida era simples e ”pura”. Ficar sentado em frente a uma tela não é exatamente uma vida verdadeira.

- No Brasil a Holanda costuma ser vista como uma sociedade muito livre, sem qualquer repressão moral. Seu romance mostra que não é bem assim…

FRANCA: [Risos] Bem, acho que depende de onde você vive. Atualmente eu moro em Amsterdam, e aqui existem poucos protestantes ortodoxos. Mas no campo existe uma espécie de “cinturão da Bíblia”, que vai de Zeeland até depois dos grandes rios. Eles dizem que, quanto mais forte é a correnteza, mais forte é a fé em Deus. Em Zeeland a maior parte da população é muito conservadora. Quando vou visitar minha família lá agora, sou uma espécie de estranha no ninho. Especialmente nas festas de aniversário, quando a família inteira se reúne, com minhas primas todas casadas e grávidas. Eu não sou casada, não tenho casa própria, sequer tenho um carro, então aos olhos deles eu não sou lá um grande sucesso.

- Você acha que a família e o casamento são instituições em crise?

FRANCA: Eu não sei o que é certo ou errado. Posso dizer que para mim é uma coisa boa que os modelos antigos estejam mudando. Passei 18 anos da minha vida em uma família e acho que isso já foi bastante para o resto da minha vida. A vida em família não me agrada muito.

- Quais são seus planos agora?

FRANCA: Comecei a escrever meu segundo romance, que não se passará em Zeeland. Vou falar dos ideais em nosso mundo moderno. Será que eles ainda existem?

- O fato de ser tão bonita afetou a reação ao seu romance?

FRANCA: [Risos].

 

FLIPOÇOS VAI HOMENAGEAR ANTONIO CANDIDO

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Já em sua sétima edição, a FLIPOÇOS – Feira Nacional do Livro de Poços de Caldas deve receber, no Espaço Cultural Urca, 80 mil visitantes, o dobro do ano passado, de 28 de abril a 6 de maio. Com uma programação diversificada, o evento terá debates sobre literatura, quadrinhos, humor, espiritualidade, jornalismo e gastronomia, entre outros temas. Entre os autores que já confirmaram presença estão Ferreira Gullar, Luis Fernando Verissimo, Zuenir Ventura, Reinaldo Moraes, Veronica Stigger, Caco Galhardo, Paulo Caruso, Fernando Gabeira e Guilherme Fiuza. Pela primeira vez a FLIPOÇOS receberá uma escritora estrangeira – a holandesa Franca Treur, que vem ao Brasil lançar o romance Confetes na Eira. O escritor homegaeado será Antonio Candido.

Saiba mais sobre a FLIPOÇOS aqui.

O ‘jornalismo mágico’ de Ryszard Kapuscinski

sáb, 03/03/12
por Luciano Trigo |
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CapaTanto quanto pela qualidade de seu texto, durante muito tempo o jornalista polonês Ryszard Kapuscinski (1932-2007) foi  admirado internacionalmente pela coragem com que se aventurava na cobertura de guerras, revoluções, golpes militares e outras situações de conflito em dezenas de países do Terceiro Mundo.  Nessas heróicas perambulações, ele teria sido condenado ao pelotão de fuzilamento quatro vezes, teria conhecido Che Guevara, teria enfrentado os maiores perigos, desconhecendo qualquer limite ou preocupação com sua segurança. Hoje se sabe que não foi bem assim. Uma biografia recentemente publicada – Kapuscinski Não-Ficção, de Artur Domoslawski, ainda inédita no Brasil – revelou que, se o polonês desconheceu algum limite, foi entre o jornalismo e a ficção. Reiteradamente, Kapu, como era chamado, inventou personagens e declarações em seus livros e reportagens, nunca encontrou o Che e, das quatro alardeadas condenações à morte, só há indícios convincentes de uma. Seu maior personagem foi na realidade ele mesmo: um ídolo com pés de barro. Por isso mesmo, sua obra foi classificada como ‘jornalismo mágico’, evocando o movimento literário latino-americano marcado pela fantasia de suas criações, o realismo mágico. O termo não foi cunhado por um colega invejoso, mas pelo respeitado Adam Hochschild, autor de um ensaio clássico sobre o Congo, O fantasma do Rei Leopoldo. Na biografia de Kapu, aliás, Domeslauski não se limita a apontar os casos de invenções e falsificaç��es históricas nos livros de Kapuscinski: ele revela que o jornalista prestou serviços ao serviço secreto de seu país, prejudicando colegas numa espécie de barganha para ter a liberdade de viajar (com subsídio do governo comunista) e escrever seus livros e reportagens ao redor do mundo.

KapuDe Kapuscinski acaba de ser lançado O Xá dos Xás (Companhia das Letras, 200 pgs. R$39), relato supostamente jornalístico sobre os últimos dias do Xá Reza Pahlevi e os primeiros dias da Revolução Iraniana de 1979, que alçou ao poder o Aiatolá Khomeini. Independente de seu valor literário, como reportagem o livro não se sustenta de forma alguma: já nas primeiras páginas, com uma longa digressão sobre a bagunça de seu quarto de hotel em Teerã e sua preguiça em arrumá-lo, Kapu mostra que o protagonista do texto será ele próprio, não o Xá. E, no restante da narrativa, fragmentada e próxima de um rascunho, ele combina uma análise altamente impressionista da sociedade iraniana com um resumo parcial e escolar da História do país, repleto de imprecisões e preconceitos, tudo isso entrelaçado com comentários maneiristas sobre 12 fotografias (nem todas reproduzidas no livro) e com supostas entrevistas de iranianos comuns, cujas vozes são tão parecidas entre si – e parecidas com a voz de Kapu – que parecem ser fictícios.

Por tudo isso, chama a atenção na edução brasileira, nos textos da orelha e do posfácio (este da jornalista Dorrit Harazim), o malabarismo com que se tenta justificar a fragilidade de O Xá dos Xás enquanto reportagem: “(…) Kapuscinski põe em prática seu ambicioso projeto de fazer uma cobertura jornalística sem se ater à objetividade”; “(…) a busca da verdade pode transcender meros fatos”; “(…) a narrativa se baseia numa busca de experimentação e não de precisão factual”; e, o que me parece mais grave, “(…) deixa de ser vital saber se no Irã ele efetivamente colheu os depoimentos que diz ter colhido (…); se muitos dos personagens e detalhes da vida iraniana que alimentam as páginas de O Xá dos Xás não seriam criações extraídas de viagens anteriores, relatos de terceiros, leituras volumosas ou análises minuciosas do noticiário da época”. A distinção entre verdade e mentira pode não existir na literatura, mas no jornalismo existe e, sim, é importante, o que diz respeito à própria ética da profissão.

Xá RPComo se tudo isso não bastasse, O Xá dos Xás ensina pouco e confunde muito. Traz um retrato simplista, estereotipado e unidimensional de Reza Pahlevi, e sua análise das contradições da sociedade iraniana e da geopolítica internacional da década de 70 é rasteira.  Kapu ignora completamente o interesse norte-americano na derrubada do Xá, por razões políticas (ligadas à Guerra Fria) e econômicas (o petróleo, que até hoje continua motivando guerras e derrubando governos na região). O maior pecado do Xá foi entrar em rota de colisão com as grandes companhias petrolíferas americanas e européias; daí o desinteresse dos Estados Unidos e da Inglaterra em evitar a Revolução Islâmica. A impressão que dá é que Kapuscinski está  mais preocupado em exercitar seus dotes literários, aliás questionáveis, do que em oferecer ao leitor um balanço equilibrado e sério da revolução. Entre muitos erros, Kapu escreve, por exemplo, que Mossadegh foi eleito primeiro-ministro democraticamente, em 1950: ele foi na verdade nomeado pelo Xá- e mais tarde derrubado pelo mesmo Xá, atendendo à pressão americana.

A partir dos anos 80, Kapuscinski viveu obcecado pela ideia de ganhar o Prêmio Nobel de Literatura – com o apoio explícito do ditador polonês Jaruzelski. Ao longo dos anos, sua candidatura foi perdendo gás, à medida que apareciam revelações sobre o seu passado e questionamentos sobre a veracidade de seus textos – inclusive e principalmente suas reportagens sobre a África, por muitos consideradas fantasiosas e neocolonialistas. O mito Kapuscinski não resistiu à passagem do tempo, e é bem feito.