Kissinger explica tudo que você queria saber sobre a China

sáb, 26/11/11
por Luciano Trigo |
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capaPoucas pessoas no Ocidente estão mais capacitadas a escrever sobre a China do que Henry Kissinger, ex-secretário de Estado norte-americano. Há 40 anos, em 1971, ele foi enviado a Pequim pelo então presidente Richard Nixon com a difícil e estratégica missão de retomar os laços diplomáticos e econômicos entre os dois países, interrompidos havia duas décadas. Na ocasião, foi um movimento arrojado e arriscado no complexo xadrez da Guerra Fria:  embora em tese aliado de Moscou, o grande timoneiro Mao Tsetung temia um ataque soviético devastador, o que encorajava uma aliança tática da China com o inimigo imperialista americano. Os detalhes dessas negociações, muitas vezes secretamente entabuladas, são apenas um dos pontos altos do livro Sobre a China (Objetiva, 576 pgs. R$54,90), que acaba de ser lançado no Brasil.

Leia aqui um trecho do livro.

Desde aquela primeira e histórica viagem, Kissinger esteve na China mais de 50 vezes,  ”como alto funcionário, como portador de recados e como acadêmico”. Conversou com todos os líderes chineses relevantes nesse período de radicais transformações na História chinesa, assimilando em primeira mão o pensamento político chinês, sua forma peculiar de lidar com as questões da paz e da guerra e com a inserção da China na ordem internacional – na qual hoje ela é uma superpotência econômica, com níveis de crescimento assustadores.

Kissinger e Mao Tsetung em 1973

Sobre a China acaba sendo assim uma feliz combinação de livro de memórias, ensaio histórico e análise sociológica e de geopolítica. O currículo do autor confere uma autoridade sobre o que ele fala muitas vezes ausente em textos teóricos sobre o “Império do Meio”. As transcrições de conversas de Kissinger com Mao, Zhou Enlai, Deng Xiaoping e outros líderes, por exemplo, mostram como são complexos os bastidores da diplomacia internacional.

Kissinger faz também uma competente recapitulação de cinco séculos de História chinesa, enriquecendo com novas informações e análises a literatura sobre o assunto – na qual se destaca o ambicioso Em busca da China Moderna, de Jonathan D.Spence.  O capítulo dedicado às tentativas fracassadas, feitas pela Inglaterra no final do século 18 e início do século 19, de ampliar as relações comerciais com a China e estabelecer relações diplomáticas com o país à moda ocidental é genial: ali fica claro o completo descompasso entre dois impérios, cada qual com valores e conceitos incompreensíveis para o outro, a ponto de questões protocolares (como a exigência de que os visitantes ingleses se prostrassem no chão e batessem com a testa no chão três vezes diante do imperador, em sinal de reverência) inviabilizarem qualquer conversa consequente. Diversas missões inglesas  foram humilhadas em solo chinês, envolvendo episódios cômicos, antes que a Rainha Vitória resolvesse partir para a ignorância, fazendo uso de seus recursos navais esmagadoramente superiores para impor sua vontade sobre a China. O relato sobre a primeira Guerra do Ópio e o impacto macabro da droga na sociedade chinesa é igualmente impressionante, mostrando como as razões políticas e econômicas costumam ignorar as desastrosas consequências sociais e humanas que muitas vezes resultam de sua lógica fria, pragmática e indiferente.

De certa forma, essa indiferença e pragmatismo se manifestam hoje, quando o assombro causado pelo alucinante crescimento econômico chinês muitas vezes desvia as atenções internacionais de algumas questões críticas no país – não apenas a persistência da repressão política e da falta de liberdades individuais herdadas dos cânones ideológicos da era Mao, mas também a poluição descontrolada, a falta de um sistema previdenciário e a incerteza sobre os alicerces de um exótico sistema financeiro. Sobre esses temas, Kissinger fala pouco – o que não diminui a importância e o brilho do livro Sobre a China, de leitura obrigatória nos dias que correm.

LEIA TAMBÉM:

Capa 2A China sacode o mundo de James Kynge. Globo, 336 pgs. R$33

A cada dia, as notícias sobre o avanço do poderio econômico chinês não param de surpreender: o país dobra o tamanho de sua economia a cada seis ou sete anos. Com apetite e voracidade, compra commodities, pressiona os preços internacionais e invade como um rolo compressor os mercados dos países industrializados e em desenvolvimento.  Com base em viagens realizadas por várias cidades chinesas, o jornalista James Kynge explica como uma nação que em duas décadas saiu de uma situação periférica ma geopolítica internacional para o centro das decisões globais. Klynge conheceu, ainda como estudante, um país isolado e fechado às idéias ocidentais, além de retardatário na corrida pelo progresso, em 1982. Desde então, trabalhou 19 anos como jornalista na Ásia e tem a experiência de mais de uma década fazendo reportagens por todo o imenso e desigual território chinês. Pôde, assim, acompanhar  de perto as transformações econômicas, sociais e culturais que hoje colocam a China no centro das decisões mundiais.

 

 

Tatiana Salem Levy lança romance feito de ilhas e silêncios

seg, 21/11/11
por Luciano Trigo |
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TSLLi em algum lugar que a relação que uma pessoa tem com o mar é a mesma relação que ela tem com a vida. O mar é um elemento central na literatura de Tatiana Salem Levy: suas narrativas têm algo da repetição das ondas, sempre iguais e nunca as mesmas, capazes de envolver mas também de repelir. O ritmo importa mais que o enredo – este é quase um pretexto para a autora navegar pelas palavras, ao mesmo tempo em que investiga os sempre complexos sentimentos ligados a laços familiares, ou o impulso irracional dos amores à primeira vista. Tatiana  explora menos os diálogos do que os silêncios, as solidões, os momentos vazios em que se desenvolvem essas relações. Não por acaso, o título original do seu segundo romance era Em silêncio; mas acabou ficando Dois Rios (Record, 224 pgs. R$34,90)que é um dos cenários do livro (uma praia em Ilha Grande com esse nome), mas também a sua síntese: dois rios espelhando as duas vozes narrativas, os dois gêneros sexuais, os dois lados de qualquer conflito (aqui, na verdade, três).

Aos 32 anos, Tatiana é  uma voz que se destaca na nova literatura brasileira. Com sua prosa intimista, que combina delicadeza e vigor, em Dois Rios ela mergulha na vida interior de dois irmãos gêmeos, afastados há anos,  Joana e Antônio, e investiga o efeito que tem sobre eles a paixão pela mesma mulher, uma francesa livre e sem raízes, Marie-Ange. Ela será o ponto de convergência impossível das trajetórias paralelas dos dois irmãos, a terceira margem do rio de um passado familiar que os une e separa, o mar entre duas ilhas.

Dois Rios chega às livrarias quatro anos depois de premiado romance de estreia de Tatiana,  A chave de casa, já publicado em Portugal, na França, na Itália, na Espanha e na Turquia (a autora é descendente de judeus turcos). Nesta entrevista, ela fala sobre o processo de criação do romance e afirma que classificar as pessoas segundo sua sexualidade é uma besteira.

capa- “Dois Rios” é narrado em duas vozes, por um casal de irmãos gêmeos. Fale sobre o desafio de escrever sob dois pontos de vista diferentes, sobretudo levando em conta que seu romance anterior, “A chave de casa”, tinha uma dicção marcadamente feminina.

TATIANA SALEM LEVY: O romance surgiu justamente dessa vontade de escrever sob um ponto de vista feminino e um masculino. Era uma forma de eu me colocar no lugar do outro. Escrever a partir da visão de um homem é sempre mais difícil para uma mulher, e vice-versa. Custou-me bastante, mas foi um desafio interessante.

Eu gosto muito de ter interlocutores ao longo do processo de escrita. Para garantir que eu não estava deslizando na voz masculina, mostrei o romance para um amigo e escritor, Eric Nepomuceno, que pontuou ações ou pensamentos do personagem que ele achava que um homem não faria. Assim, eu fui ajeitando as arestas. Mas, de qualquer forma, quis guardar certa feminilidade no Antônio, assim como alguma masculinidade na Joana, pois somos todos assim, misturados.

- A relação mãe/fiha aparece com uma certa dureza no romance, como se a mãe fosse um pouco um fardo para Joana. Qual é a importância dessa relação na sua literatura?

TATIANA: A relação mãe/filha aparece com dureza, mas também com doçura, com amor. Só a Joana consegue tranqüilizar a mãe. Se ela fica tantos anos presa à casa, é em parte por culpa, em parte por amor. Aparecida, a mãe de Joana, é uma personagem com transtorno obsessivo-compulsivo, e, sem dúvida, é difícil conviver com alguém assim. Mas acho que a cumplicidade sobressai mais do que a aspereza.

Em “A chave de casa”, o relacionamento da personagem com a mãe também é muito marcante, talvez até mais do que em “Dois Rios”. Isso talvez venha do fato de eu ter tido uma relação muito forte com a minha mãe, que faleceu em 1999. Eu convivi durante anos com a doença dela, e estive muito cedo e por muito tempo no mesmo lugar dessas personagens, de cumplicidade e cuidado com a mãe. Isso me marcou muito, e deve ser por isso que essas mães aparecem na minha literatura de forma tão central.

- A questão da bissexualidade é tratada com naturalidade, sem maiores conflitos, seja no plano interior, seja socialmente. Você acha que todas as pessoas no fundo, são potencialmente bissexuais?

TATIANA: É tratada de forma natural, porque é, de fato, uma coisa natural. Sinceramente, nem gosto de falar em homo, hetero ou bissexualidade. Aliás, o livro não fala disso. Fala de encontros, da possibilidade de ser tocado pelo outro, da transformação que a paixão provoca na vida de alguém. Mas os personagens não são definidos como uma coisa nem outra, eles apenas vivem os acontecimentos, sem se preocupar com definições e justificativas.

Acho uma besteira isso de querer definir se todas as pessoas são potencialmente bissexuais. Que sei eu? Nem me importa buscar uma resposta para essa pergunta. O ser humano é tão amplo, para que essa necessidade em demarcar fronteiras, generalizar tudo? Eu não delimitei a sexualidade no livro, não vou delimitar numa entrevista, não faria sentido.

- O livro começa descrevendo o encantamento radical da narradora por Marie-Ange, uma francesa que ela conhece por acaso. Você acredita nesse tipo de amor à primeira vista? Como foi traduzir essa experiência literariamente, do ponto de vista de um homem e de uma mulher? Qual a diferença? Por fim, literariamente, este tema – a paixão arrebatadora e transformadora – não está exaurido?

TATIANA: Não é uma questão de acreditar ou não: amor à primeira vista existe. Há pessoas que morrem sem ter tido essa experiência, outras, mais sortudas, sabem o que é olhar para alguém e se apaixonar no mesmo instante. E, nisso, não há diferença se você é homem ou mulher. A diferença vem depois, no comportamento de cada um, mas no instante mesmo da paixão é a mesma coisa, o mesmo desejo do outro.

Agora, eu realmente não sei se existe isso de tema exaurido na literatura. Se fosse assim, já teríamos parado de escrever há muito tempo. Afinal, do que falam os livros senão do amor e da morte? Apenas inventamos novas maneiras de abordar o assunto, criamos histórias que tenham a ver com o nosso tempo, mas sempre em torno dos mesmos temas. Imagina se agora não pudéssemos mais falar de paixão arrebatadora só porque já falaram, que coisa chata não seria a literatura?

- A personagem Marie-Ange é descrita com riqueza de detalhes – a cicatriz, o jeito de entortar a boca… Para você, como escritora, é importante fixar visualmente seus personagens? Por quê?

TATIANA: Ela é rica em detalhes? Nem me dou conta, não é nada muito programado, não. É verdade que eu tenho um estilo muito imagético, visualizo as cenas e depois as escrevo, a imagem vem, na maior parte das vezes, antes da palavra. Mas eu corto tanto, tanto, que sempre fico com a sensação que meu texto tem tudo, menos detalhes. Mas devo estar equivocada.

- Fale mais sobre o seu processo de criação: você define a estrutura e o enredo do romance previamente ou vai se deixando levar pelos personagens?

TATIANA: Eu defino a estrutura e o enredo antes, mas é só para escrever outro enredo e outra estrutura depois. Eu preciso definir um caminho, para ter a liberdade de não segui-lo.

- Que importância tem a geografia do romance – Copacabana, Ilha Grande, Paris, Córsega – no resultado final do livro? Cada cenário evoca uma atmosfera diferente?

TATIANA: Em “Dois Rios”, eu quis falar sobretudo de ilhas, pois ao mesmo tempo em que fazem parte do mundo elas constroem um mundo à parte, peculiar. Nelas, a relação com o tempo não se dá pelo relógio, mas pelo mar, pelo clima, pela terra. Além disso, há um silêncio e uma solidão que remetem os personagens a um contato maior com suas próprias histórias.

As ilhas, de forma geral, permitem essa relação com o tempo que a contemporaneidade nos arranca a cada dia. No “Quarteto de Alexandria”, Lawrence Durrell fala de um hábito da região de parar todos os relógios da casa quando se recebe uma visita querida. Acho que a literatura é isso, é parar o relógio e viver a experiência particular do tempo.

- Você sente que a sua ficção está avançando, ou seguindo em alguma direção específica? Que evolução você percebe na sua própria obra? Já tem outro livro em gestação?

TATIANA: Não sei como é uma ficção que avança, não me parece que a literatura siga uma evolução. Cada livro é um livro, tem suas qualidades e seus defeitos. É como se você perguntasse para uma mãe que tem vários filhos se os filhos estão avançando, se estão ficando melhores… Não faz sentido. Agora, comparando, eu poderia dizer, por exemplo, que “Dois Rios” é mais bem escrito do que “A chave de casa”, e que este tem a força particular dos primeiros romances. Enfim, no fundo me parece um disparate comparar os livros para ver se há evolução. Por último, sim, estou começando a fazer um novo romance, que se passa na ilha dos Lençóis, no Maranhão.

 

Cinco vidas que mudaram a história do século 20

ter, 15/11/11
por Luciano Trigo |
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logo babelA editora portuguesa Babel dá continuidade a suas atividades no mercado brasileiro com o lançamento simultâneo de cinco biografias: de Stálin, Hitler, Churchill, Franco e Fidel Castro (a promessa é que outras virão, incluindo personagens históricos brasileiros). Padronizados por um bonito projeto gráfico, os cinco livros têm contudo origens e características bastante diferentes. Poderoso conglomerado de nove selos e uma rede de livrarias em Portugal, a Babel já anunciou a meta de lançar 100 títulos por ano no Brasil, em diversos gêneros.

Stálin de Jean-Jacques Marie. 856 pgs. R$ 69,90

capa stalinLançada na França em 2001, a biografia de Josef Stálin escrita por Jean-Jacques Marie se beneficiou de arquivos então recém-abertos da extinta União Soviética. Nesses dez anos, novas informações vieram à tona, alimentando fortes concorrentes historiográficos, como os livros, já lançados no Brasil, de Simon Sebar Montefiori e Dmitri Volkogonov.  Mesmo perdendo na comparação, Jean-Jacques Marie escreveu uma competente e detalhada narrativa, dando conta de maneira equilibrada da trajetória desse líder controverso, responsável direto pela morte de milhões de pessoas em seu país, inclusive pela fome; que perseguiu implacavelmente seus rivais políticos, enviados para os Gulags, humilhados nos infames “processos de Moscou” ou assassinados  - o exemplo emblemático é Trostsky, morto a machadadas no exílio mexicano -; mas que, incrivelmente, seduziu durante décadas importantes intelectuais de esquerda em todo o mundo, Brasil inclusive, e ainda hoje é capaz de provocar debates violentos – acadêmicos ou em mesas de bar.

Jean-Jacques Marie é bem-sucedido ao revelar esse traço constitutivo da personalidade de Stálin, que provavelmente contaminou toda a estrutura de poder soviética: o dom da manipulação e da mentira, que se manifestava em bobagens como falsificar a data de nascimento e alterar fotografias para parecer mais alto (ele media 1m62), mas também na deliberada formação do culto à personalidade, ainda que ele não se comparasse ao seu antecessor Lênin. O primeiro desafio de qualquer historiador que se debruça sobre a vida de Stálin, portanto, é distinguir o autêntico do fabricado, a realidade do mito, inclusive no que diz respeito ao genocídio pela fome de 1932/22 e ao terror de 1937. Jean-Jacques Marie se esforça para realizar essa missão com imparcialidade e rigor – a ponto, talvez, de fazer o leitor sentir falta de um texto mais analítico e menos descritivo.

Fidel de Serge Raffy. 480 pgs. R$ 59,90

capa fidel

Resultado de vários anos de investigações, centenas de entrevistas e testemunhos exclusivos, essa biografia de Fidel Castro – no original, com o t��ulo-trocadilho óbvio Castro, l’infidel –  tem como principal qualidade a narrativa ágil e fluente, que aproxima a História do thriller – e também do realismo mágico, tão surpreendentes são alguns episódios da vida do Comandante. Esta também não é a melhor biografia de Fidel já publicada no Brasil – a da jornalista Claudia Furiati, por exemplo, é mais completa, embora menos crítica,  e a de Herbert Matthews, escrita nos anos 70, é mais bem escrita, embora evidentemente datada e há muito tempo esgotada no Brasil. Raffy se mostra parcial em seu anti-fidelismo, mas nem por isso deixa de fazer revelações intrigantes sobre os bastidores do poder em Cuba, a crise dos mísseis e as relações de Fidel com a União Soviética – bem como sobre a sua vida privada, incluindo os amores clandestinos.  O personagem de Raffy emerge do livro como um camaleão, pragmático e frio, com traços de gênio mas também de psicopatia. Um personagem mais próximo da ficção que da realidade.

LEIA TAMBÉM:

capa churchillcapa Hitlercapa franco

Churchill de François Bedarida. 496 pgs. R$59,90

Hitler de Martins Steinert. 696 pgs. R$ 69,90

Franco de André Bachoud. 552 pgs.  R$ 59,90

 

Transgressão e perversidade sexual na América dos ‘brasucas’

sáb, 12/11/11
por Luciano Trigo |
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CapaNa fase de placidez e anemia que vive a ficção brasileira já há algum tempo, o lançamento de O beijo infame (Record, 192 pgs. R$37,90), do jornalista Toni Marques, representa uma perturbadora injeção de vida e sangue. Nas quatro histórias que compõem a narrativa, estruturada na fronteira entre o romance e o livro de contos (já que alguns personagens se cruzam, mas não apenas por isso), o autor se arrisca a nadar contra a corrente da vaidade bem comportada e da assepsia técnica que prevalece nas novas gerações de escritores, jovens mas já consagrados em premiações e festas literárias.

Não se trata, é claro, de um livro para todos os gostos: O beijo infame é obsceno e violento ao extremo, como a realidade dos personagens que retrata – imigrantes brasileiros em Nova York, onde Toni trabalhou como correspondente do jornal “O Globo”. É uma realidade de embate e atrito, de hipocrisia e competição, na qual o desejo explode nas formas mais transgressivas, em parte como compensação e válvula de escape; em parte, talvez, como vingança. Sadomasoquismo, prostituição, difalia e outras práticas heterodoxas compõem esse estranho mercado em que trafegam brasucas à primeira vista comuns, mas que incorporam no sentido mais radical e extremo a ambição de poder e domínio sobre o outro, tão tipicamente americana, de certa forma reduzindo o erotismo à matéria e ao consumo. Nesta entrevista, Toni – também autor de O Brasil tatuado e Vós – Uma autoajuda da maldade, fala sobre os múltiplos sentidos de seu romance:

Toni Marques- Fale sobre a motivação de escrever o livro e o processo de criação. Como nasceram as histórias e como ganharam essa estrutura?

TONI MARQUES: Como vivi três anos nos Estados Unidos, quis escrever um livro sobre o que apreendi. Durante esses três anos foi impossível escrever, porque só podia viver. Cheguei a tomar notas às cegas, sem qualquer projeto. A certa altura, pensei num poema épico fragmentário. Cheguei a rabiscar uns versos, mas faltou visão para a coisa ir adiante. Aí voltei. Perdido, mas querendo dar meu depoimento sobre coisas que me deram o que pensar. Três anos depois da volta, veio o estalo, e aí, olhando pra trás, liguei as pontas, como diria Steve Jobs: as coisas que recolhi também apontavam para o sexo como linguagem de integração/alienação; para a caça à bruxa, que pode ser o outro, mas também pode ser você; o estrangeiro que você convida para ser seu inimigo; o jogo cultural de dominador e dominado.

Comecei pela última história e fui andando para trás, formando o elenco: uma stripper, um analista de mercado emergente, um pequeno empreiteiro e um carregador de mudança. E achei interessante fazer com que uns encontrassem outros. Os esbarrões não têm função narrativa no sentido de  gerar conseqüência. Têm a função de mimetizar o fluxo pessoal da internet, que é um personagem do livro. Assim, pensei numa estrutura em que, embora as histórias tenham começo, meio e fim, o livro não tenha.

- Você teve contato com muitos imigrantes brasileiros nos Estados Unidos? O que mais te surpreendeu, que lições tirou?

TONI: Sim, tive. Fiquei interessado nos graus e nas nuances de assimilação e alienação. Você tem um pouco de tudo: o brasileiro que quer ser mais americano perto dos brasileiros e mais brasileiro perto dos americanos; a comunidade fechada numa cápsula quase impermeável, havendo a anulação do país de origem ou sobretudo a anulação do país de acolhimento; a integração natural; a integração relativa, que depende da crítica constante ao que foi abandonado; os pilantras e criminosos, inclusive assassinos; a tensão política entre desconfiança e assistência, com vitoriosos que ajudam e perdedores que se negam a ajudar, e vice-versa; a disputa muda entre aqueles que fazem a América – é um mundo sem fim. Pode-se, creio, fazer uma obra inteira, livros atrás de livros, sobre imigração. Esta é a lição que tirei. De todo modo, não pretendi fazer um retrato documental da imigração ou de imigrantes em particular. São histórias inventadas.

- As relações entre os personagens refletem de alguma maneira a relação entre os valores americanos e brasileiros? Em que sentido?

TONI: Num primeiro nível, refletem um jogo maroto: safados versus tarados. Católicos, sobretudo tropicais, tendem a ser safados, ao passo que protestantes tendem a ser tarados. Em outro nível, refletem percepções do que é ser americano e do que é ser latino, e do que é ser brasileiro. O brasileiro é uma incógnita que tende a ser iluminada apenas pelo nicho comunitário ou pelo relance midiático. Num terceiro nível, existe o individualismo sensual emoldurado pela coletividade objetiva.

- O forte ingrediente er��tico do livro aparece sempre ligado a uma atmosfera de transgressão, de rejeição das convenções e exploração de novos limites. Por quê?

TONI: Porque eu quis retratar pessoas em estado de exceção, que acabam por experimentar um terrorismo íntimo. Em grande parte, o livro contém encenações íntimas da guerra ao terror. O elemento kinky não é um fim em si mesmo no livro, mas um meio de diálogo com o estranho e com o estrangeiro. É uma linguagem de exceção e, paradoxalmente, de generalização, porque a internet, no livro, mostra que já não existe mais o estranho, assim como mostra, de quebra, que o conceito contemporâneo de infância pode estar por se perder.

- Você acha que a literatura brasileira recente está muito comportada?

TONI: Acho que não. Temos grandes autores em todas as direções e gerações. Se este meu livro é malcriado, a orelha do livro explica por quê. O autor da orelha, Julio Ludemir, afirma que inaugurei um tema: a internet. Quando ele escreveu isto, fiquei perplexo. Depois fui entender que os meios de comunicação de massa tendem a ser desprezados pela literatura, aqui e em qualquer país. Meu próximo livro é sobre a mídia – evidentemente porque trabalho nela, mas também porque é um território à espera de colonização literária.

- Em alguns momentos senti um eco de Rubem Fonseca. é uma influência assumida? Com que outros autores você dialoga?

TONI: Sim, é uma influência tremenda. Outras são J.G.Ballard e uma parte da turma da ficção científica anglo-saxã; Sade; Kafka; e a literatura fantástica brasileira. Também gosto muito de Valêncio Xavier, um poeta que escrevia prosa quadrinizada ou com cut and paste. Adoro cut and paste. Neste livro tem pouco. Em Vós – Uma autoajuda da maldade, usei muito. Outros autores de que gosto muito e gostaria que estivessem escondidos no que faço são o Chuck Palahniuk de “Clube da Luta”, que vejo como improvável afilhado pop de Gertrud Stein e Hemingway ou um Hemingway messiânico, e o nosso Campos de Carvalho, que é hipnótico.

- Quando se escreve ficção em primeira pessoa, há sempre o risco da confusão por parte dos leitores entre o vivido e o imaginado. como você lida com isso?

TONI: O livro não é todo em primeira pessoa. Poderia ser, sem problema. O importante não é a confusão, a suspeita de falta de imaginação etc. O importante é a construção.

 

 

 

Biografia definitiva conta amores e aventuras de Frida Kahlo

dom, 06/11/11
por Luciano Trigo |
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Frida

“A arte de Frida é um laço de fita em volta de uma bomba”, definiu o poeta André Breton. A vida de Frida também foi assim, mostra Hayden Herrera em Frida – A Biografia (Globo, 622 pgs. R$64,90). Lançado nos Estados Unidos na década de 80, quando impulsionou a redescoberta da artista mexicana em todo o mundo, o livro combina um conhecimento profundo da obra com uma narrativa saborosa da tumultuada trajetória de Frida. Do relacionamento nada convencional com o muralista e rematado mulherengo Diego Rivera – com um e outro vivendo múltiplas aventuras amorosas fora do casamento, e morando em casas separadas por uma ponte – ao engajamento político, passando pelo contato intenso com grandes figuras da política, da arte e da literatura  do século 20 – além de Breton, Marcel Duchamp, Sergei Eisenstein, Pablo Neruda, Nelson Rockefeller e Leon Trotsky, entre outros – Herrera, que também é crítica e historiadora de arte, escreveu uma biografia repleta de detalhes sem ser cansativa, cheia de episódios polêmicos mas nunca caindo na tentação de apelar para o escândalo. Ela aborda sua personagenm, justamente, com a delicadeza de uma fita em volta de uma bomba.

CapaO envolvimento de Frida com Leon Trotsky, por exemplo, é recapitulado com riqueza de informações nas sobretudo com a sutileza de uma análise psicológica suficientemente penetrante para que o leitor entenda uma atração tão improvável. Trotsky, casado, sessentão e com a saúde frágil, chegou ao México exilado, após um périplo forçado por diversos países da Europa, perseguido por agentes de  Stálin (um deles, Ramon Mercader, acabaria matando Trotsky a golpes de machado, pouco tempo depois, num dos assassinatos políticos mais célebres da História). Frida, com menos de 30 anos, com vários namorados (e namoradas) mais atraentes à disposição, sentiu-se imediatamente atraída não pelo homem Trotsky, mas pelo ídolo de seu marido Diego, que acabara de traí-la com sua irmã Cristina. Ou seja, o tórrido mas breve affair foi em parte motivado pelo desejo de vingança, sugere a autora, fundamentando a tese com a transcrição de cartas de todos os envolvidos.

“Sem dúvida, a óbvia admiração de Diego pelo russo tornava a situação ainda mais intensa. Um caso com o amigo e ídolo político do marido seria a retaliação perfeita para a traição de Rivera com sua irmã Cristina. Em todo caso, Frida fez uso de todos os seus consideráveis poderes de sedução para atrair Trotsky.”

Herrera não se furta a falar da bissexualidade da artista, chamando a atenção para a presença implícita em seus quadros do lesbianismo – que ela interpreta como sinal de uma complexa dualidade psíquica – curiosamente estimulada pelo marido:

Diego e Frida“Rivera estimulava os casos homossexuais de Frida; alguns dizem que era porque, sendo um homem mais velho, Diego não conseguia (ou não queria) satisfazer sexualmente sua esposa mais jovem. (…) Não há dúvida de que eka sentia fortes necessidades sexuais. (…) A ideia que tinha da vida era fazer amor, tomar um banho e fazer amor de novo. Estava na natureza dela.”

A autora fala também sem pudores sobre o gosto de Frida pelo bebida:

“(…) ela começou a carregar, na bolsa ou escondido entre as anáguas, um pequeno frasco com conhaque. Às vezes ela levava bebida alcoólica dentro de vidros de perfume, que tirava furtivamente de dentro da blusa, como se quisesse se ensopar de água de colônia, e engolia um trago com tanta rapidez que ninguém percebia o que ela estava fazendo. (…) Quanto mais Frida bebia, mas seu comportamento ficava indecente e cada vez menos burguês.”

LEIA TAMBÉM:

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O segredo de Frida Kahlo de Francisco Haghenbeck. Planeta, 272 pgs. R$34,90

Depois de sofrer um terrível acidente de bonde e morrer pela primeira vez, Frida encontra sua Madrinha, a Morte, com quem faz um acordo: para voltar a viver, a artista deverá preparar todos os anos uma oferenda para lembrar seu pacto. A partir de então, Frida anota cada banquete de Dia dos Mortos num caderno de capa preta que guarda com todo zelo e que chama de “Livro da erva santa”.

Frida Kahlo – Suas fotos Cosac Naify, 524 pgs. R$139,00

Quando Frida morreu, em 1954, todos os seus objetos ficaram trancados em um dos cômodos da mítica Casa Azul, onde ela morou muitos anos com o pintor Diego Rivera. Cinquenta anos mais tarde, esse tesouro foi aberto, mas somente agora as mais de 400 fotos guardadas são finalmente reunidas numa publicação.  As imagens mostram uma série de autorretratos de seu pai fotógrafo, Frida quando menina, seu estúdio, o encontro com Rivera, seu círculo cosmopolita de amigos e a intimidade com personagens notáveis como Breton, Duchamp, Trótski, Henry Ford, Dolores del Rio e alguns brasileiros como Adalgisa Nery.

Diego e Frida de Jean-Marie Le Clézio. Record, 240 pgs. R$39,90

‘Diego e Frida’ conta a vida do casal de artistas mexicanos que revolucionou a arte na primeira metade do século XX. Diego Rivera e Frida Kahlo tiveram histórias conturbadas. Quando se casaram, ele já havia tido muitas experiências amorosas problemáticas e ela havia sofrido um grave acidente na adolescência, que a fez passar por momentos de imensa solidão. Do encontro dos dois nasce uma relação poderosa e destrutiva, tão criativa quanto escandalosa.  

Livro revela os bastidores do álbum que reinventou o jazz

qua, 02/11/11
por Luciano Trigo |
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Capa do disco

Mesmo para quem não é um ouvinte habitual de jazz, o primeiro contato com o álbum Kind of Blue, do trompetista Miles Davis, costuma ser uma experiência impactante. Gravado em 1959,  o disco conserva até hoje seu vigor e poder de encantamento, geração após geração. Sinais de sua importância são as vendas continuadas e a vasta literatura dedicada ao disco nos Estados Unidos. Já no Brasil acaba de ser lançado Kind of Blue – Miles Davis e o álbum que reinventou a música moderna, de Richard Williams (Casa da Palvra, 288 pgs. R$39,90), demonstrando que Kind of Blue continua sendo uma referência para músicos e amantes da música, entusiastas e neófitos.

Kind of Blue foi gravado no porão de uma igreja convertido em estúdio no centro de Manhattan, o que talvez tenha a ver com a armosfera introspectiva, melancólica e quase religiosa da maioria das faixas. Bastaram nove horas de trabalho para dar origem ao álbum que abriria novos caminhos para o jazz e para a música em geral. Parte do êxito deve ser creditada ao talento de Miles Davis para reunir músicos excepcionais – no caso��John Coltrane, Cannonball Adderley, Bill Evans, Wynton Kelly, Paul Chambers e Jimmy Cobb. Como escreve Williams:

Miles Davis Sextet

“Foi ali (…) que o destino da música foi alterado. Foi ali que a introspecção e a contenção entraram em cena, desviando o jazz de sua função primária como entretenimento, para assumir um papel mais autoconsciente. Foi ali que que novos e mais sutis modos de expressar a intensidade emocional foram encontrados. Naquele porão, um tipo de música anteriormente estereotipado na mente do público como algo quente e caótico foi propositalmente atenuado e desacelerado e, no processo, tornou-se motivo de questionamento intelectual e, para alguns, espiritual.”

Capa do livroO livro de Richard Williams – no original, The Blue Moment – é ambicioso e desigual. Quando consegue ficar focado na cena jazzística americana no final dos anos 50/início dos anos 60, é uma leitura saborosa, repleta de episódios bem contados envolvendo Miles, Coltrane, Bill Evans e outros músicos menos famosos – como Booker Little, que morreu de leucemia aos 23 anos, em 1961. As drogas também fazem parte dessa história, é claro: naquela época, os músicos de jazz se dividiam entre usuários – como Miles e Coltrane, um e outro precisando lidar com o vício em heroína – e não usuários (com os primeiros levando a melhor, musicalmente falando).

Como, porém, já existiam no mercado livros muito bons exclusivamente dedicados ao processo de criação do álbum, os bastidores das gravações e seu impacto no jazz – destacando-se Kind of Blue – A história da obra-prima de Miles Davis, de Ashley Kahn (também autor de um livro sobre outro álbum mítico, A Love Supreme, de Coltrane), Williams tentou voar mais alto, aparentemente sem ter fôlego para tanto. Ele tenta estabelecer, por exemplo, pontes imaginárias entre Kind of Blue e a arte de Picasso, Matisse e Yves Klein, ou a literatura de Jean-Paul Sartre e Boris Vian, de maneira não muito inspirada ou convincente. Mesmo quando se limita a viajar pela música, as reflexões do autor parecem erráticas, atirando para todos os lados: The Who, Brian Eno, Velvet Underground, James Brown, Talking Heads, U2 etc: não existe banda que não tenha sido influenciada pelo álbum, parece sugerir o autor.

Melhores são os capítulos focados no contexto da indústria musical da época, com pequenos selos como Prestige e Blue note perdendo suas estrelas para os gigantes do setor, como a Columbia. E, é claro, aqueles capítulos focados na música do próprio Miles Davis, em sua melhor fase, antes de embarcar nos caminhos tortuosos do jazz fusion:

“…quanto menos notas Davis tocava, mais forte era seu impacto: um conceito revolucionário para um tipo de música em que o atletismo muscular tinha valor, expresso quando um trompetista confrontava outro no que era conhecido como ‘desafio de improvisos’, uma forma de queda de braço musical muito popular nos clubes noturnos.”

LEIA TAMBÉM:

Capa 2Kind of Blue – A história da obra-prima de Miles Davis, de Ashley Kahn. Barracuda, 256 pgs. R$48

O jornalista americano Ashley Kahn traça um panorama do jazz nos anos 50 e recria os bastidores da gravação de Kind of Blue.  Kahn relata a chegada de Miles Davis a Nova York e repassa sua trajetória até se debruçar, take por take, sobre as duas famosas sessões de gravação.Kahn escreve também sobre a ascensão da Columbia Records e seu papel no sucesso de Kind of Blue, o 30th Street Studio e suas propriedades acústicas inigualáveis que tanto distinguiam a música que era gravada lá. O livro inclui transcrições de trechos não-editados das fitas master, entrevistas, arquivos inéditos da Columbia e dezenas de imagens.