As crises econômicas no espelho da História
“Todos os desastres do mercado financeiro têm um culpado em comum: nosso cérebro. Dois milhões de anos de evolução o deixaram burro demais para lidar com dinheiro”, escreve o jornalista Alexandre Versignassi em Crash – Uma breve história da economia (Leya, 320 pgs. R$29,90). De fato, a julgar pelos paralelos levantados pelo autor entre crises econômicas de diferentes períodos da História – da Grécia antiga aos dias atuais – a conclusão inevitável é que o ser humano não aprende. A crença de que “desta vez vai ser diferente” leva as pessoas a repetirem periodicamente os mesmos erros, com consequências semelhantes. O ponto de partida foi a crise de 2008: ao escrever uma reportagem sobre o estouro da bolha imobiliária nos Estados Unidos e seu impacto devastador sobre as finanças de todo o planeta, o autor se deu conta de que estava se repetindo um padrão recorrente ao longo da História da humanidade. Mergulhou em pesquisas sobre o assunto e o resultado é Crash, livro que desvenda, com uma linguagem bem humorada e livre de jargões, os mistérios insondáveis dos ciclos econômicos.
- Fale sobre a gênese do livro. O que despertou a vontade de escrever sobre a História da economia?
ALEXANDRE VERSIGNASSI: A crise de 2008. Quando o Lehman Brothers faliu, em setembro daquele ano, ficou claro que estava acontecendo algo tão histórico quanto o começo de uma guerra mundial. Fui escrever sobre isso para a revista onde trabalho, a Superinteressante. O caminho óbvio era comparar com a Grande Depressão. Mas a semelhança mais gritante era com a a mania das tulipas, na Holanda do século 17 – uma onda de especulação que elevou o preço das tulipas em Amsterdã a patamares surreais, com uma flor valendo o preço de uma casa. Uma hora os preços pararam de subir. E quem tinha pagado caro só para vender mais caro depois perdeu tudo. Em 2008, o que tinha chegado a patamares surreais era o preço dos imóveis nos Estados Unidos, com qualquer casebre valendo o preço de uma mansão. Aí os preços pararam de subir e um monte de gente perdeu tudo – o problema é que, agora. esse “monte de gente” eram os maiores bancos do mundo. E quando os bancos ficam sem dinheiro, todo mundo fica sem dinheiro…
- Que surpresas você teve enquanto fazia a pesquisa para o livro? E quanto tempo ela durou?
VERSIGNASSI: O que me surpreendeu foi justamente a quantidade absurda de pontos em comum entre a economia de hoje e a do passado remoto. A subida no preço das tulipas em Amsterdã era assustadoramente análoga à das blue chips da Bovespa, por exemplo. Claro que cada tempo e cada espaço tem suas particularidades. Mas a essência é a mesma. Quanto à pesquisa, foram dois anos e meio, mas eu estudo o assunto mais a fundo, jornalisticamente, desde 2006.
- Você sentiu alguma apreensão pelo fato de não ser economista, e sim jornalista? Como os economistas estão reagindo ao livro?
VERSIGNASSI: Não. Se eu o meu objetivo fosse criar uma nova teoria econômica, seria um problema. Mas não era o caso. Quis contar histórias e apresentar conceitos complexos de economia de um jeito simples. Engraçado que, fora do Brasil, praticamente não se usa mais economês. Aqui ainda é comum ouvir e ler aberrações do tipo “expandir a base monetária” quando isso significa “imprimir mais dinheiro”. A Economist, a revista-referência em economia há mais de 100 anos, escreve só ‘imprimir dinheiro”… Os leitores agradecem. E a maior parte dos economistas também. Só os mais puristas reclamam, mas aí é mais uma tentativa de manter o status de “doutor” do que qualquer outra coisa. Esse tipo de economista geralmente não sabe muito bem do que está falando – só decora termos e recita, tipo aqueles guias turísticos mirins.
- Você estabelece diversos paralelos entre situações do presente e antecedentes históricos. Cite aqueles que considera mais impressionantes.
VERSIGNASSI: Por exemplo, Roma tinha passado por um congelamento de preços idêntico em drama ao do governo Sarney – e tinha se livrado da inflação depois de um “plano” idêntico, na essência, ao Plano Real: até o valor do “real” romano em relação ao “cruzeiro” deles era parecido com o do real de verdade em relação ao cruzeiro de verdade. A reação às crises também é sempre igual, desde o século 17: demonizam os ‘especuladores”, esquecendo que são eles que financiam as empresas com ações na bolsa. Por fim, o fato de as desvalorizações forçadas – quando o Estado emite mais dinheiro para salvar endividados e se salvar, porque geralmente o grande endividado é o próprio Estado – serem exatamente tão antigas quanto o dinheiro. E terem sido a praxe no Brasil do século 18, quando começamos a fazer nossas primeiras moedas, até 1994 – nenhuma nação tem um recorde tão estúpido.
- Desde os anos 80 existe uma espécie de triunfo global da economia neoliberal e a democracia representativa – falou-se até de fim da História. Você considera que, no que diz respeito à economia, ainda haverá reviravoltas? Ou apenas variações em torno das ideias de Hayek / Keynes?
VERSIGNASSI: Economia é psicologia. É a arte de estimular as pessoas a sair da cama e produzir (entenda “sair da cama” como tomar iniciativas empreendedoras – fundar uma empresa de software, um laboratório de remédios, uma empacotadora de carne… coisas que aceleram o desenvolvimento e tornam a vida possível). Na essência, só existem dois caminhos para isso: ou o Estado manter o valor da moeda a todo custo (a filosofia alemã, seguida pelo Banco Central Europeu – e pelo nosso, de 1994 até a saída do Meirelles), ou imprimir dinheiro para estimular a produção (a filosofia do Fed – e a do BC agora – ou da Dilma, mas dá na mesma). O primeiro modo traz o perigo de recessão (vide a Europa hoje), o segundo, o de inflação (vide o Brasil agora). Existe um meio termo perfeito? Não. Isso seria um ideal platônico, impossível por natureza.
- Como explicar o crescimento tão grande e prolongado da economia chinesa?
VERSIGNASSI: A China parece aquele meio-termo perfeito, hehe. Mas olha só: se você perguntar para o Obama, ele vai dizer que a China “mantém a moeda desvalorizada artificialmente” – é a versão oficial dos Estados Unidos. E a China faz isso mesmo. A única coisa boa de uma moeda desvalorizada é que isso bomba as exportações, torna os produtos do país mais baratos. O próprio Brasil fez isso no Governo Figueiredo. Num primeiro momento isso foi bom aqui. Depois gerou hiperinflação. A China não hiperinflaciona porque exporta mais do que qualquer país jamais exportou. Produz num ritmo insano. De quebra, soube usar isso para criar um mercado interno forte. Como este mercado interno é novo, a China consegue se blindar da crise no Ocidente – e também de quebra blinda a gente, que vende minério de ferro, comida e petróleo grosso, do tipo que só serve para fazer asfalto, para eles. Quanto tempo esse mercado interno pode segurar a China (e nós)? Ninguém sabe, mas a História deixa claro que nunca é para sempre.
- A crise de 2008 foi comparada à crise de 1929. Mas a recessão daquela época durou décadas. A crise de 2008 foi mesmo tão grave?
VERSIGNASSI: Não. A paranoia daquela época era manter o padrão-ouro. Justamente para manter a inflação sob controle, os países ricos só emitiam dinheiro se ele estivesse lastreado em ouro. Mas a economia tinha crescido num ritmo muito maior que a quantidade de ouro que saía das minas. O padrão-ouro já tinha tomado um baque na Primeira Guerra, mas obviamente foi um evento atípico; o que queriam era voltar à bonança pré-guerra das moedas fortes. Então os Estados Unidos não emitiram dinheiro extra quando deveriam. Os bancos ficaram sem grana. Os correntistas perderam tudo. Com os Estados Unidos danados, o resto do mundo caiu junto… Agora é diferente. O padrão-ouro não existe mais – e era só um esteio psicológico, que dava a ideia de que a moeda “valia ouro”. Hoje os governos têm liberdade para fazer dinheiro à vontade e irrigar a economia com ele – e as pessoas não se importam se esse dinheiro pode ser trocado por ouro na boca do caixa ou não. O perigo agora é fazerem dinheiro demais, e com isso minarem o valor do dinheiro numa hiperinflação sem freio. Para um americano ou um europeu de hoje tamanha desvalorização pode parecer irreal. Mas taí uma vantagem de ter nascido no Brasil: a gente sabe que não tem nada de irreal nisso, sabe que uma moeda pode morrer. E o que isso representa. Eles só sabem disso pelos livros de História. Tomara que seja o bastante…
- Qual deve ser o papel do Estado na economia, na sua opinião?
VERSIGNASSI: O papel do Estado? Fazer com que contratos sejam cumpridos. E impedir monopólios privados – a única coisa pior que um monopólio estatal.
- Todas as crises econômicas têm características semelhantes? E as soluções, são sempre as mesmas também?
VERSIGNASSI: A teoria mais redonda sobre os ciclos de crise é a do Hyman Minsky. Por esse ponto de vista, sim, as crises são absurdamente semelhantes. Primeiro, todas são precedidas por um período de euforia. O que engatilha isso é alguma novidade, algo que sacuda a poeira da economia e surja como uma baita oportunidade de investimento. A internet, nos anos 1990, foi uma. As estradas de ferro, no século 19, outra. As grandes navegações, mais outra. Essas novidades tendem a impulsionar o mercado de crédito. Com mais crédito, começa a circular mais dinheiro. Grandes quantidades de moeda trocam de mãos. Aparecem as histórias (reais) de enriquecimento repentino. Com o boom instituído, mais e mais gente começa a investir. Não só investir: alguns começam a fraudar o sistema (criando empresas falsas, fazendo negócios temerários ou inflando preços de ações, por exemplo). Conforme as fraudes se acumulam, o pânico se instaura. O crédito desaparece. E temos uma crise. Esse foi o roteiro em na crise do euro, na de 2008, na bolha da internet, na Grande Depressão, na bolha das ferrovias do século 19 e na mãe de todas as crises: a da Companhia Mississipi, na França do século 18 – que teve potencial para acabar com a civilização no Ocidente, mas no fim das contas acabou gerando a Revolução Francesa (há males que vêm para bem – ainda que o contrário seja mais comum!).
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Como os mercados quebram, de John Cassidy. Intrínseca, 390 pgs. R$39,90
Durante mais de cinco décadas, economistas desenvolveram elegantes teorias para mostrar como os mercados funcionam, como estimulam a inovação, a criação de riqueza e a eficiente distribuição dos recursos da sociedade. Mas o que fazer quando os mercados não funcionam? Quando produzem bolhas no mercado de ações, desigualdades gritantes, rios poluídos, súbitos colapsos do mercado imobiliário e bruscas reduções do crédito? Por trás das inquietantes manchetes sobre desemprego, operações de salvamento de bancos e ganância corporativa há uma história pouco conhecida de ideias infelizes. No livro Como os mercados quebram, John Cassidy investiga as causas e os desdobramentos d crise econômica mundial deflagrada pelo colapso do sistema financeiro norte-americano,a partir de 2007. Diferentemente de outros autores que escreveram sobre o assunto, Cassidy não se concentra nas empresas e pessoas envolvidas, mas interpreta a crise como um sinal de que a crença na busca racional do interesse próprio, base secular da economia do livre mercado, pode ser ilusória. Como os mercados quebram alia reportagem de campo a análises claras das teorias econômicas, convidando o leitor a ir além das manchetes dos jornais e refletir sobre as origens e as consequências das políticas econômicas. Cassidy conclui advertindo que, na crise econômica que estamos vivendo hoje, resignar-e a ortodoxias antiquadas é uma atitude não apenas equivocada, mas também francamente perigosa.