As crises econômicas no espelho da História

qui, 27/10/11
por Luciano Trigo |
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“Todos os desastres do mercado financeiro têm um culpado em comum: nosso cérebro. Dois milhões de anos de evolução o deixaram burro demais para lidar com dinheiro”, escreve o jornalista Alexandre Versignassi em Crash – Uma breve história da economia (Leya, 320 pgs. R$29,90). De fato, a julgar pelos paralelos levantados pelo autor entre crises econômicas de diferentes períodos da História – da Grécia antiga aos dias atuais – a conclusão inevitável é que o ser humano não aprende.  A crença de que “desta vez vai ser diferente” leva as pessoas a repetirem periodicamente os mesmos erros, com consequências semelhantes. O ponto de partida foi a crise de 2008: ao escrever uma reportagem sobre o estouro da bolha imobiliária nos Estados Unidos e seu impacto devastador sobre as finanças de todo o planeta, o autor se deu conta de que estava se repetindo um padrão recorrente ao longo da História da humanidade. Mergulhou em pesquisas sobre o assunto e o resultado é Crash, livro que desvenda, com uma linguagem bem humorada e livre de jargões, os mistérios insondáveis dos ciclos econômicos.

- Fale sobre a gênese do livro. O que despertou a vontade de escrever sobre a História da economia?

ALEXANDRE VERSIGNASSI: A crise de 2008. Quando o Lehman Brothers faliu, em setembro daquele ano, ficou claro que estava acontecendo algo tão histórico quanto o começo de uma guerra mundial. Fui escrever sobre isso para a revista onde trabalho, a Superinteressante. O caminho óbvio era comparar com a Grande Depressão. Mas a semelhança mais gritante era com a a mania das tulipas, na Holanda do século 17 – uma onda de especulação que elevou o preço das tulipas em Amsterdã a patamares surreais, com uma flor valendo o preço de uma casa. Uma hora os preços pararam de subir. E quem tinha pagado caro só para vender mais caro depois perdeu tudo. Em 2008, o que tinha chegado a patamares surreais era o preço dos imóveis nos Estados Unidos, com qualquer casebre valendo o preço de uma mansão. Aí os preços pararam de subir e um monte de gente perdeu tudo – o problema é que, agora. esse “monte de gente” eram os maiores bancos do mundo. E quando os bancos ficam sem dinheiro, todo mundo fica sem dinheiro…

A.V.

- Que surpresas você teve enquanto fazia a pesquisa para o livro? E quanto tempo ela durou?

VERSIGNASSI: O que me surpreendeu foi justamente a quantidade absurda de pontos em comum entre a economia de hoje e a do passado remoto. A subida no preço das tulipas em Amsterdã era assustadoramente análoga à das blue chips da Bovespa, por exemplo. Claro que cada tempo e cada espaço tem suas particularidades. Mas a essência é a mesma. Quanto à pesquisa, foram dois anos e meio, mas eu estudo o assunto mais a fundo, jornalisticamente, desde 2006.

- Você sentiu alguma apreensão pelo fato de não ser economista, e sim jornalista? Como os economistas estão reagindo ao livro?

VERSIGNASSI: Não. Se eu o meu objetivo fosse criar uma nova teoria econômica, seria um problema. Mas não era o caso. Quis contar histórias e apresentar conceitos complexos de economia de um jeito simples. Engraçado que, fora do Brasil, praticamente não se usa mais economês. Aqui ainda é comum ouvir e ler aberrações do tipo “expandir a base monetária” quando isso significa “imprimir mais dinheiro”. A Economist, a revista-referência em economia há mais de 100 anos, escreve só ‘imprimir dinheiro”… Os leitores agradecem. E a maior parte dos economistas também.  Só os mais puristas reclamam, mas aí é mais uma tentativa de manter o status de “doutor” do que qualquer outra coisa. Esse tipo de economista geralmente não sabe muito bem do que está falando – só decora termos e recita, tipo aqueles guias turísticos mirins.

- Você estabelece diversos paralelos entre situações do presente e antecedentes históricos. Cite aqueles que considera mais impressionantes.

VERSIGNASSI: Por exemplo, Roma tinha passado por um congelamento de preços idêntico em drama ao do governo Sarney – e tinha se livrado da inflação depois de um “plano” idêntico, na essência, ao Plano Real: até o valor do “real” romano em relação ao “cruzeiro” deles era parecido com o do real de verdade em relação ao cruzeiro de verdade. A reação às crises também é sempre igual, desde o século 17: demonizam os ‘especuladores”, esquecendo que são eles que financiam as empresas com ações na bolsa. Por fim, o fato de as desvalorizações forçadas – quando o Estado emite mais dinheiro para salvar endividados e se salvar, porque geralmente o grande endividado é o próprio Estado – serem exatamente tão antigas quanto o dinheiro. E terem sido a praxe no Brasil do século 18, quando começamos a fazer nossas primeiras moedas, até 1994 – nenhuma nação tem um recorde tão estúpido.

- Desde os anos 80 existe uma espécie de triunfo global da economia neoliberal e a democracia representativa – falou-se até de fim da História. Você considera que, no que diz respeito à economia, ainda haverá reviravoltas? Ou apenas variações em torno das ideias de Hayek / Keynes?

VERSIGNASSI: Economia é psicologia. É a arte de estimular as pessoas a sair da cama e produzir (entenda “sair da cama” como tomar iniciativas empreendedoras – fundar uma empresa de software, um laboratório de remédios, uma empacotadora de carne… coisas que aceleram o desenvolvimento e tornam a vida possível). Na essência, só existem dois caminhos para isso: ou o Estado manter o valor da moeda a todo custo (a filosofia alemã, seguida pelo Banco Central Europeu – e pelo nosso, de 1994 até a saída do Meirelles), ou imprimir dinheiro para estimular a produção (a filosofia do Fed – e a do BC agora – ou da Dilma, mas dá na mesma). O primeiro modo traz o perigo de recessão (vide a Europa hoje), o segundo, o de inflação (vide o Brasil agora). Existe um meio termo perfeito? Não. Isso seria um ideal platônico, impossível por natureza.

- Como explicar o crescimento tão grande e prolongado da economia chinesa?

VERSIGNASSI: A China parece aquele meio-termo perfeito, hehe. Mas olha só:  se você perguntar para o Obama, ele vai dizer que a China “mantém a moeda desvalorizada artificialmente” – é a versão oficial dos Estados Unidos. E a China faz isso mesmo. A única coisa boa de uma moeda desvalorizada é que isso bomba as exportações, torna os produtos do país mais baratos. O próprio Brasil fez isso no Governo Figueiredo. Num primeiro momento isso foi bom aqui. Depois gerou hiperinflação. A China não hiperinflaciona porque exporta mais do que qualquer país jamais exportou. Produz num ritmo insano. De quebra, soube usar isso para criar um mercado interno forte. Como este mercado interno é novo, a China consegue se blindar da crise no Ocidente – e também de quebra blinda a gente, que vende minério de ferro, comida e petróleo grosso, do tipo que só serve para fazer asfalto, para eles. Quanto tempo esse mercado interno pode segurar a China (e nós)? Ninguém sabe, mas a História deixa claro que nunca é para sempre.

- A crise de 2008 foi comparada à crise de 1929. Mas a recessão daquela época durou décadas. A crise de 2008 foi mesmo tão grave?

VERSIGNASSI: Não. A paranoia daquela época era manter o padrão-ouro. Justamente para manter a inflação sob controle, os países ricos só emitiam dinheiro se ele estivesse lastreado em ouro. Mas a economia tinha crescido num ritmo muito maior que a quantidade de ouro que saía das minas. O padrão-ouro já tinha tomado um baque na Primeira Guerra, mas obviamente foi um evento atípico; o que queriam era voltar à bonança pré-guerra das moedas fortes. Então os Estados Unidos não emitiram dinheiro extra quando deveriam. Os bancos ficaram sem grana. Os correntistas perderam tudo. Com os Estados Unidos danados, o resto do mundo caiu junto… Agora é diferente. O padrão-ouro não existe mais – e era só um esteio psicológico, que dava a ideia de que a moeda “valia ouro”. Hoje os governos têm liberdade para fazer dinheiro à vontade e irrigar a economia com ele – e as pessoas não se importam se esse dinheiro pode ser trocado por ouro na boca do caixa ou não. O perigo agora é fazerem dinheiro demais, e com isso minarem o valor do dinheiro numa hiperinflação sem freio. Para um americano ou um europeu de hoje tamanha desvalorização pode parecer irreal. Mas taí uma vantagem de ter nascido no Brasil: a gente sabe que não tem nada de irreal nisso, sabe que uma moeda pode morrer. E o que isso representa. Eles só sabem disso pelos livros de História. Tomara que seja o bastante…

- Qual deve ser o papel do Estado na economia, na sua opinião?

VERSIGNASSI: O papel do Estado? Fazer com que contratos sejam cumpridos. E impedir monopólios privados – a única coisa pior que um monopólio estatal.

- Todas as crises econômicas têm características semelhantes? E as soluções, são sempre as mesmas também?

VERSIGNASSI: A teoria mais redonda sobre os ciclos de crise é a do Hyman Minsky. Por esse ponto de vista, sim, as crises são absurdamente semelhantes. Primeiro, todas são precedidas por um período de euforia. O que engatilha isso é alguma novidade, algo que sacuda a poeira da economia e surja como uma baita oportunidade de investimento. A internet, nos anos 1990, foi uma. As estradas de ferro, no século 19, outra. As grandes navegações, mais outra. Essas novidades tendem a impulsionar o mercado de crédito. Com mais crédito, começa a circular mais dinheiro. Grandes quantidades de moeda trocam de mãos. Aparecem as histórias (reais) de enriquecimento repentino. Com o boom instituído, mais e mais gente começa a investir. Não só investir: alguns começam a fraudar o sistema (criando empresas falsas, fazendo negócios temerários ou inflando preços de ações, por exemplo). Conforme as fraudes se acumulam, o pânico se instaura. O crédito desaparece. E temos uma crise. Esse foi o roteiro em na crise do euro, na de 2008, na bolha da internet, na Grande Depressão, na bolha das ferrovias do século 19 e na mãe de todas as crises: a da Companhia Mississipi, na França do século 18 – que teve potencial para acabar com a civilização no Ocidente, mas no fim das contas acabou gerando a Revolução Francesa (há males que vêm para bem – ainda que o contrário seja mais comum!).

LEIA TAMBÉM:

capa 2Como os mercados quebram, de John Cassidy. Intrínseca, 390 pgs. R$39,90

Durante mais de cinco décadas, economistas desenvolveram elegantes teorias para mostrar como os mercados funcionam, como estimulam a inovação, a criação de riqueza e a eficiente distribuição dos recursos da sociedade. Mas o que fazer quando os mercados não funcionam? Quando produzem bolhas no mercado de ações, desigualdades gritantes, rios poluídos, súbitos colapsos do mercado imobiliário e bruscas reduções do crédito? Por trás das inquietantes manchetes sobre desemprego, operações de salvamento de bancos e ganância corporativa há uma história pouco conhecida de ideias infelizes. No livro Como os mercados quebram, John Cassidy investiga as causas e os desdobramentos d crise econômica mundial deflagrada pelo colapso do sistema financeiro norte-americano,a partir de 2007. Diferentemente de outros autores que escreveram sobre o assunto, Cassidy não se concentra nas empresas e pessoas envolvidas, mas interpreta a crise como um sinal de que a crença na busca racional do interesse próprio, base secular da economia do livre mercado, pode ser ilusória. Como os mercados quebram alia reportagem de campo a análises claras das teorias econômicas, convidando o leitor a ir além das manchetes dos jornais e refletir sobre as origens e as consequências das políticas econômicas. Cassidy conclui advertindo que, na crise econômica que estamos vivendo hoje, resignar-e a ortodoxias antiquadas é uma atitude não apenas equivocada, mas também francamente perigosa.


Em ‘Gatsby’, Fitzgerald examina a elite americana dos anos dourados

sáb, 22/10/11
por Luciano Trigo |
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F.Scott FitzgeraldUm dos maiores clássicos da literatura americana do século 20, O Grande Gatsby sobrevive como o grande retrato da elite americana no pós-Primeira Guerra, uma classe social marcada pela prosperidade sem precedentes, pelo materialismo esnobe  e pela crise de valores, num momento em que o status era muito mais importante que qualquer moralidade ou vida espiritual. Lançado em 1925, o romance é narrado por uma espécie de alter ego do escritor – que também manteve com aquele mundo sofisticado e frio uma relação ambígua de atração e repulsa, típica da chamada Geração Perdida. Já nas notáveis primeiras sentenças do romance, Fitzgerald sinaliza a atmosfera melancólica e o tom confessional da narrativa. Nick Carraway, que ao voltar da guerra se mudara para Nova York, onde trabalhar como corretor de títulos em Wall Street, escreve:

“Em meus anos mais vulneráveis da juventude, meu pai me deu um conselho que jamais esqueci:

_ Sempre que tiver vontade de criticar alguém – ele disse -, lembre-se de que ninguém teve as oportunidades que você teve. “

Capa 1

Leia aqui um trecho de O Grande Gatsby

Nas páginas seguintes, vemos se desenharem, pelos olhos de Nick, os poucos personagens da história: a fútil Daisy e seu marido grosseirão e atlético Tom Buchanan; a sensual amante de Tom, Myrtle,  e seu miserável marido George Wilson, que trabalha num posto de gasolina; e finalmente o sofisticado vizinho de Nick em Long Island, Jay Gatsby, um homem de passado misterioso, sobre o qual se sabe vagamente que esteve na guerra e que fez sua fortuna por meios provavelmente ilícitos – talvez tráfico de bebidas durante a Lei Seca. Gatsby oferece regularmente sua mansão para festas extravagantes, das quais mal participa, como uma espécie de espectador desinteressado e distante.

Impressiona a economia de recursos com que o escritor,  em  três ou quatro frases, é capaz de criar uma impressão viva e convincente da aparência, do caráter e da psicologia de cada personagem.  Por exemplo, quando Nick descreve seu primeiro encontro com Myrtle, a amante de Tom:

“Tinha uns 30 anos e era ligeiramente robusta, mas sabia conduzir-se de um jeito sensual que é exclusivo de certas mulheres. (…) Seu rosto não carregava nenhum indício de beleza, mas havia nela uma vitalidade logo perceptível, como se os nervos de seu corpo estivessem ardendo o tempo todo.”

Gatsby, por sua vez, é apaixonado pela frívola e frágil Daisy – ele a ama da mesma maneira irremediável e patética como se apaixona outro personagem de Fitzgerald, o produtor de Hollywood Monroe Stahr, em O Último Magnata.

Daisy foi provavelmente inspirada em Zelda, a desequilibrada mulher do escritor, a quem o livro é dedicado, “outra vez”. O amor de Gatsby por Daisy será a causa de sua secreta infelicidade íntima – e de seu destino trágico.

Cena do filme

Gatsby e Daisy foram encarnados no cinema por Robert Redford e Mia Farrow, num filme de Jack Clayton, de 1974, que deixa bastante a desejar apesar do elenco estelar e do roteiro assinado por Francis Ford Coppola – mas que vale a pena ver como ilustração visual do romance.

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Não deixa de ser revelador sobre a importância da obra o fato de ela estar disponível em três competentes traduções. Além da edição recém-lançada pela Companhia das Letras (246 pgs. R$25), é possível encontrar nas livrarias outras duas, das editoras Record e L&PM. Os três tradutores são, respectivamente, Vanessa Bárbara, Roberto Mugiatti e William Lagos.

Capa da edição original, de 1925Duas curiosidades: a capa da edição original de 1925, encomendada ao artista gráfico Francis Cugat antes mesmo de o livro ficar pronto, é considerada uma obra-prima no gênero. Mas Ernest Hemingway, amigo de F.Scott Fitzgerald, achou a capa um horror: em Paris é uma Festa, ele conta que quase desistiu de ler o romance por causa dela.  Já o título do romance por pouco não foi Trimalchio in West Egg, fazendo referência a um personagem de Satyricon, de Petrônio, como lembra Tony Tanner no ensaio que apresenta a obra. Como Gatsby, Trimálquio é um anfitrião de festas de arromba, mas Fitzgerald reconsiderou e concluiu, com razão, que a referência era obscura demais para o leitor comum.

Filme ‘Corações Sujos’ mostra a guerra dentro de nós

sex, 14/10/11
por Luciano Trigo |
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Cena do filme 

Fosse apenas uma adaptação bem feita do livro do jornalista Fernando Morais, Corações Sujos, que está sendo exibido no Festival do Rio, já mereceria atenção. O filme de Vicente Amorim vai muito além: transforma a história, por si só interessante, dos conflitos na colônia japonesa em São Paulo no imediato pós-Segunda Guerra em pano de fundo para uma reflexão sobre valores em conflito e sobre temas permanentes como a honra e a justiça, o orgulho e a culpa. Como se não bastasse, com um apuro formal que rivaliza com qualquer cinematografia de Primeiro Mundo, Corações sujos funciona também como entretenimento de qualidade, graças em grande parte ao roteiro eficiente e fiel às convenções do cinema clássico americano, que imprime à história uma tensão crescente, com sua escalada de violência, e à interpretação impecável de todo o elenco, começando por Tsuyoshi Ihara, no papel do fotógrafo Takahashi, e Takako Tokiwa, como sua mulher Miuki – um e outra muito populares no Japão.

Veja o trailer do filme aqui.

poster do filmeNuma comunidade de imigrantes que trouxe do país de origem um rígido sistema de valores, que associava à derrota à humilhação e via mérito na morte voluntária, o isolamento imposto pela anfitriões brasileiros produziu as condições necessárias para um um prolongamento a guerra. Negando-se a acreditar que o Japão perdeu a guerra, parte da colônia passou a enxergar aqueles coscientes da rendição como traidores, “corações sujos”, resultando em conflitos sangrentos e dezenas de mortes.

Vicente Amorim retoma, de certa forma, o tema de seu longa-metragem anterior, Um homem bom, com Viggo Mortensen, de 2008, sobre um indivíduo normal que adere ao nazismo por inércia;  é um cineasta que se sente atraído por personagens comuns, arrastados pela força das circunstâncias a um papel  ruim, que é levao para o lado errado por motivos aparentemente certos. Aumenta a força de Corações sujos o fato de seu protagonista não ser apresentado como um vilão, mas como um homem  comum, dividido entre a lealdade à pátria e aos superiores e uma realidade na qual os alicerces de sua identidade deixam de fazer sentido.

Mesmo o personagem do Coronel Watanabe (Eiji Okuda), mais próximo do estereótipo do vilão, é construído de tal maneira que ganha credibilidade psicológica. É uma fala de Watanabe, aliás, que condensa uma das mensagens de Corações Sujos: o principal inimigo está dentro de nós. Evocando o cinema épico de Akira Kurosawa, o filme de Vicente Amorim é bem-sucedido em combinar um drama coletivo com tragédias individuais, ao mostrar que a guerra é também um estado de espírito, e que o preço a ser pago por ela recai sobre os pessoas, tanto quanto sobre os países. Li que segundo o Hagakure, o código de honra dos samurais, quando se desembainha uma espada é obrigatório sujá-la de sangue. Convém pensar bem antes de desembainhá-la.

Amartya Sen e Michael Sandel refletem sobre a justiça

dom, 09/10/11
por Luciano Trigo |
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À primeira vista, a ideia de justiça parece auto-explicativa: todos sabem quando estão diante de uma situação ou atitude injusta, sobretudo quando são afetados por ela; todos sentem – ou deveriam sentir – algum grau de revolta diante das injustiças que acontecem cotidianamente. Dois lançamentos fundamentais mostram que não é bem assim, que a justiça é um conceito muito mais complexo e cheio de zonas cinzentas do que sugere o senso comum. Em outras palavras, mostram que, na maioria dos casos,  a decisão entre o certo e o errado é mais difícil do que parece.

Capa 1O primeiro é Justiça – O que é fazer a coisa certa, do professor de Harvard Michael Sandel (Civilização Brasileira, 352 pgs. R$44,90). Com um estilo fluente e seguindo um modelo socrático de argumentação, Sandel coloca em dúvida algumas de  nossas convicções mais arraigadas, partindo de questões básicas como: quais são nossos deveres em relação aos outros? O Governo deve taxar os mais ricos para ajudar os mais pobres? Falar a verdade pode ser moralmente errado? Matar pode ser moralmente necessário? É possível, ou desejável, legislar sobre a moral? O que fazer quando os direitos individuais e o bem comum entram em conflito?

Sandel relaciona grandes questões da filosofia política com assuntos do noticiário e problemas banais do dia-a-dia, sem fugir de temas controversos como a ação afirmativa, o casamento entre homossexuais, o suicídio assistido, o aborto e o serviço militar obrigatório. Ao mesmo tempo, analisa de forma convincente os alicerces filosóficos das ideias correntes sobre a justiça, como o pensamento utilitarista de Thomas Hobbes, John Locke e Jeremy Bentham (este último, aliás, tem sido revisitado com frequência por diversos autores, como Bernard Harcourt no ambicioso The Illusion of Free Markets, ainda inédito no Brasil).

Sandel sugere, com razão, que nas últimas décadas a economia se sobrepôs ao debate ético e político, impondo a ideia de que um mercado eficiente estabelece por si só as condições para uma sociedade melhor e mais justa. A fé no mercado, hoje abalada por motivos óbvios, praticamente eliminou o debate público sobre a ética  e a justiça, com consequências desastrosas. O autor discute então os postulados da economia neoclássica que fundamentaram a desregulamentação dos mercados financeiros nas últimas décadas e que, após uma duradoura euforia, resultaram na catástrofe global de 2008, cujos desdobramentos ainda estão longe de terminar. E pergunta: o livre mercado é realmente livre?

Não se trata estritamente, contudo, de um livro de teoria política, nem sobre economia: o que o autor faz é provocar uma discussão sobre valores, no sentido mais amplo, e sua aplicação na vida cotidiana.

Capa 2Como Michael Sandel, Amartya Sen também desafia o leitor a meditar sem preconceitos sobre a ideia de justiça e suas reações com a moralidade e a política no mundo concreto. Em A Ideia de Justiça (Companhia das Letras, 512 pgs. R$59), o Prêmio Nobel de Economia de 1998 afirma que o conceito de justiça deve ser estabelecido a partir da noção básica de que, embora as pessoas sejam iguais perante a lei (ao menos nas democracias), as suas necessidades, desejos e esperanças serão sempre diferentes.

Leia um trecho do livro aqui.

Amartya Sen identifica nas desigualdades do mundo contemporâneo os principais obstáculos ao desenvolvimento humano e social, que a globalização só fez acentuar. Examina então as contradições das diferentes correntes jurídicas em voga e investiga quais seriam os arranjos institucionais necessários para a realização da justiça perfeita – ainda que reconhecendo que se trata de uma utopia.

Fazendo uma análise rigorosa do ponto de vista teórico, mas ao mesmo tempo atenta às necessidades das pessoas no mundo real, Amartya Sen defende a importância de incorporar do conceito de equidade ao debate jurídico e à implementação de políticas públicas pelos governantes.

 

 

‘Contágio’, de Steven Soderbergh, não contagia o espectador

dom, 02/10/11
por Luciano Trigo |
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cena do filme
A carreira do cineasta Steven Soderbergh é cheia de altos e baixos, alternando filmes autorais e independentes com superproduções comerciais – nos dois casos, com evidentes oscilações de qualidade. Por outro lado, é um produtor incansável e um diretor que desafia constantemente as regras e convenções da indústria hollywoodiana: seu longa-metragem de estreia, Sexo, mentiras e videotape, de 1989, revolucionou a economia de Hollywood, provando que projetos realizados fora dos grandes estúdios podiam se viabilizar economicamente e conquistar o reconhecimento internacional – foi o primeiro filme independente a ganhar a Palma de Ouro em Cannes, por exemplo.

PosterEm 2006, Soderbergh tentou provocar uma nova revolução na indústria ao lançar o filme Bubbles simultaneamente em diferentes janelas – salas de cinema, DVD e televisão por assinatura: não não deu certo, em função das reações negativas dos agentes de mercado de distribuição e exibição. Seja como for, é um cineasta que conhece o ofício, capaz de prender a atenção da plateia com narrativas bem construídas, apesar do grau variável de inventividade e ousadia.

Por tudo isso, a decepção provocada por Contágio – uma das atrações do Festival do Rio, que começa no dia 6 de outubro – é ainda pior. Definitivamente, o filme está entre os piores trabalhos de Soderbergh, apesar do elenco estelar que reúne Matt Damon (bastante acima do peso), Laurence Fishburne (burocrático), Gwyneth Paltrow (quase irreconhecível), Kate Winslet (a única que empresta alguma dignidade ao papel) e Jude Law – este no ridículo papel de um jornalista trambiqueiro que tenta se promover às custas de uma epidemia de proporções planetárias. Tudo no filme soa falso, das interpretações entre desanimadas e caricatas às idas e vindas de um roteiro amadorístico, que ofende a inteligência do espectador ma cada 5 minutos, com situações e diálogos inverossímeis, quando não previsíveis. Com o perdão do trocadilho, é um filme que está longe de contagiar o espectador.

FILMOGRAFIA SELECIONADA DE STEVEN SODERBERGH

1989 - Sexo, Mentiras e Videotape
sex
1991 - Kafka

2000 - Erin Brockovich

2000 - Traffic
traffic
2001 - Onze Homens e um Segredo

2002 - Full Frontal

2002 - Solaris
Solaris
2009 - Che

2009 - O desinformante