Das câmeras de vigilância e dos rastreadores aos mecanismos mais sutis da publicidade, das pesquisas de opinião e das campanhas de saúde, somos cada vez mais monitorados. Mas por quê? E para quê? Como esse controle invade todos os aspectos da vida cotidiana, e quais são os seus efeitos? É possível (e desejável) resistir? A pesquisadora Sonia Regina Vargas Mansano, professora da Universidade Estadual de Londrina, parte dessas perguntas em Sorria, você está sendo controlado (Summus, 192 pgs. R$41,20). Afastando-se do jargão acadêmico, a autora investiga como a mídia e a tecnologia podem determinar o modo como vivemos hoje.
Na primeira parte do livro, “Tematizando a sociedade de controle”, Sonia faz uma apresentação histórica do tema, partindo da análise de Michel Foucault sobre a sociedade disciplinar até aquilo que Gilles Deleuze denominou, num dos seus últimos textos, “sociedade de controle”. Nos capítulos seguintes, “Vigilância disseminada” e “Controle-estimulação”, ela estuda o caso brasileiro: como mecanismos diversos convocam cada vez mais o indivíduo a prestar atenção em detalhes da própria vida e de outras pessoas, e a aderir a normas implícitas que enfatizam a vulnerabilidade da sua existência.
Na segunda parte, “Resistência e poder”, Sonia dedica um capítulo a um dos crimes mais agressivos e temidos pela sociedade: o sequestro. Ela apresenta uma entrevista com o relato minucioso da experiência de Ester, uma mulher que esteve sequestrada por cinco dias e mantida em cativeiro, mostrando como as tecnologias desenvolvidas para o controle são reformuladas e utilizadas em favor do crime – e como o ser humano, quando está em situação de perigo, pode criar formas para se desprender do controle.
G1: Você escreve que o controle se disseminou no cotidiano da sociedade, mas por outro lado o tecido social parece cada vez mais esgarçado e fora de controle: informalidade econômica, poderes paralelos, crise das instituições, relativismo moral. Como analisa isso?
SONIA MANSANO: Quando falamos de controle aparece, às vezes de modo imperceptível, a expectativa por um controle absoluto. Seguramente isso não existe. A sociedade produz formas de fugir em diferentes direções, e os exemplos que você apresenta na questão se enquadram aí. Os agentes de controle, conectados em rede, vão buscar se acercar dessas realidades, e algumas delas serão efetivamente controladas. Mas, novas formas de fugir serão inventadas no processo. A partir da segunda metade do século 20, o regime disciplinar começou a sofrer transformações como uma forma de responder à crise das instituições de confinamento e de parte dos valores que lhes davam sustentação. Com isso, o controle se disseminou em várias frentes e passou a ser realizado pelos mais diferentes agentes, com finalidades distintas. O Estado é uma das instâncias que se utilizam dos dispositivos de controle para monitorar e organizar a vida em sociedade. Para isso, ele confere autonomia relativa a diferentes esferas que a ele estão conectadas, como a da saúde e a educacional, passando a funcionar em rede. Mas ele não é o único a fazer esse uso. A iniciativa privada também começou a exercer um tipo de controle, oferecendo produtos e serviços de segurança de prédios comerciais, residências e indivíduos. Além disso, podemos encontrar o exercício do controle na vida cotidiana da população em geral. Esta, ao mesmo tempo que controla, também deseja ser mais controlada, particularmente quando associa mais controle à segurança. Por vezes, sequer percebemos essas atitudes, já que elas estão cada vez mais se consolidando como um traço subjetivo bastante naturalizado. Assim, cada um de nós, em nosso cotidiano, está cada vez mais atento àquelas situações que são avaliadas como diferentes ou suspeitas. Por fim, o controle também passou a fazer parte de operações ditas ilegais e, em larga medida, é usado para facilitar o acesso a informações e promover a circulação de pessoas, equipamentos e mercadorias para fins ilícitos. A sensação de que o tecido social está cada vez mais esgarçado e fora de controle colabora para retroalimentar ainda mais a necessidade de colocar em funcionamento esses dispositivos. Assim, o diferencial de nosso tempo histórico é que o controle acontece de maneira descentralizada, o que colabora significativamente para a sua naturalização.
G1: Esse controle sempre presente está vinculado a alguma ideologia? Qual é a
sua racionalidade política e econômica?
MANSANO: A dinâmica dos regimes de poder não pode ser satisfatoriamente compreendida por uma análise que submete toda complexidade do social, de forma mecânica, às determinações econômicas. É necessário correr o risco de pensar a ordem econômica como sendo dominante sem, contudo, reduzir os diferentes aspectos da vida a essa esfera. Isso é possível se tomamos a noção de produção, pensada originariamente por Marx nas relações de trabalho, e a estendemos para o conjunto da vida em sociedade. Assim, o capitalismo mais do que secretar uma ideologia, ou seja, um conjunto de idéias que corrobora e dá sustentação à ordem econômica, produz, em sua complexidade, modos de vida que vão bem além de um conjunto de idéias. Modos de sentir, de pensar e, no limite, o próprio desejo, são produzidos nesse processo. A partir daí, é necessário falar de toda uma subjetividade capitalista, produzida e se reproduzindo permanentemente. Acompanhar esse movimento exige uma forma de governar mais flexível e atenta ao movimento de desejo dos indivíduos, mas também daquilo que coloque em risco a pretendida ordem social. Estamos diante da elaboração de novas estratégias, que são políticas e econômicas ao mesmo tempo, e que incidem sobre a subjetividade e não cessam seu movimento de produção: assim, a cada dia nos deparamos com novas formas de controle – mais sofisticadas e precisas, mas também mais desejadas, ainda que não necessariamente por todos.
G1: Em que medida algum tipo de controle deve existir? E em que medida ele pode
e deve ser bidirecional, entre indivíduo e Estado?
MANSANO: Com freqüência, encontramos a articulação de uma instância do Estado com procedimentos executados por indivíduos que são protegidos pelo anonimato. Esse é o caso do disque-denúncia que conecta a população, as ONGs e a polícia com o objetivo de, por exemplo, combater a exploração sexual de menores. Assim, o que está em questão nessas articulações é o tipo de vida que construímos ao criar, ao acolher ou ao resistir às formas de controle que são colocadas em circulação. Cabe lembrar que em cada uma delas é atualizado um jogo complexo de liberações e sujeições. Assim, a questão a ser analisada em cada situação é a maneira como colocamos os dispositivos de controle em funcionamento no cotidiano e no tipo relação que construímos com eles. De qualquer forma, é sempre bom lembrar que alguns dispositivos podem tomar um contorno autoritário e empobrecedor da existência. Portanto, mais do que um processo bidirecional, entre indivíduo e Estado, é necessário pensar uma rede complexa constituída de múltiplos agentes diferenciados – indivíduos, ONGs, empresas, partidos políticos, entre outros – numa interação que é marcada pela eventualidade.
G1: Você diz que é possível resistir ao controle, mas em nome de quê se deve
resistir? De qual projeto, de qual liberdade?
MANSANO: Colocar a questão em termos imperativos, de um dever, não é a melhor maneira de introduzir esse debate. Afinal, trata-se de resguardar a instância de decisão do sujeito, que tem implicações éticas na participação ou não nos procedimentos do controle. Assim, a estratégia utilizada no livro foi a de dar visibilidade àquilo que, em larga medida, encontra-se amplamente naturalizado e que acaba sendo reproduzido como algo simplesmente corriqueiro. Mapear e descrever as situações de controle serve como um primeiro passo para analisarmos o tipo de vida que estamos ajudando a construir para nós mesmos e para os outros. A cada vez que nos conectamos a um dispositivo de controle, por mais simples e inofensivo que ele possa ser ou parecer, damos uma certa direção à existência. Daí a necessidade de analisar as possibilidades de autonomia e de resistência do sujeito frente às relações de poder nas quais ele está inserido. Cabe dizer também que, ao contrário do que se possa imaginar, o exercício do controle na contemporaneidade acontece de modo compatível com a liberdade dos sujeitos e, mais ainda, apóia-se nela, tal como demonstra o exemplo do disque-denúncia. Além disso, a própria idéia de liberdade também pode vir a ser produzida pelas formas de controle, o que é bastante visível nas campanhas publicitárias. Investigar por onde é possível escapar, construindo novas formas de vida, de sensibilidade e de relação, põe em evidência a potência para resistir, como e quando isso for desejável.
G1: Quando o controle se confunde com sedução, as pessoas passam a desejar ser
controladas, não?
MANSANO: Daquilo que estudo, o que está mais próximo desta noção proposta por você, de sedução, é a incitação ao consumo carregada de apelos eróticos e estéticos de diferentes tipos. Esta esfera do controle foi estudada sob o nome de “controle-estimulação”. Nele podem ser localizadas as diferentes campanhas publicitárias que se fazem presentes em nosso cotidiano e pretendem, pela via da incitação, controlar a relação entre consumidor e mercadoria, por vezes recorrendo a enunciados que se sobrepõem a um olhar mais crítico em relação ao consumo. Como ela funciona? Há aí todo um trabalho, dito “imaterial”, por meio do qual recebemos os mais variados “convites” para experimentar, acessar, comprar serviços e produtos. Assim, antes mesmo de oferecer um produto para o público consumidor, uma série de imagens e modos de vida são apresentados no intuito de tentar provocar o desejo pela posse da mercadoria. Num certo sentido, estamos nos tornamos “consumidores de subjetividades”, como diz Felix Guattari e, particularmente, consumidores de uma subjetividade capitalista. Os efeitos desse processo são diversos: a avaliação sobre a aparência do corpo está cada vez mais exacerbada, o que pode ser verificado pelo crescimento do número de cirurgias plásticas em nosso país. Um outro ponto a ser considerado é que, para acompanhar a estimulação ao consumo, a população está cada vez mais endividada e temerosa em relação à manutenção dos bens acumulados.
G1: Como a inflação de imagens e telas está afetando a vida das pessoas,
concretamente? Que mudanças comportamentais você percebe?
MANSANO: A mudança principal acontece no plano subjetivo dos modos de pensar, de sentir, de avaliar. Assim, estamos cada vez mais sensíveis e atentos às formas de controle e, em diferentes ocasiões, desejamos que ele seja realizado com mais freqüência e intensidade. Pode-se dizer que a percepção do controle ganhou relevo com a literatura, mas também em filmes e noticiários. Esses canais de comunicação, além de chamar a atenção para situações de risco, prevenção e estimulação, também cooperam para produzir efeitos subjetivos na vida da população – a cada dia mais atenta e conectada a detalhes que outrora passavam praticamente despercebidos. Por outro lado, diante da disseminação variada desse dispositivo, parte da população torna-se resistente a eles, recusando-se, por exemplo, ao consumo, à vigilância e às atitudes preventivas.
G1: Qual o papel das redes sociais da internet nesse processo? Existe uma
tendência ao enclausuramento dentro de casa? A vida real vai se tornar um
luxo?
MANSANO: Acredito que é importante escapar do dilema que opõe essas suas situações de maneira absoluta: o presencial, que você chamou de vida real, e o não presencial, a internet. Assim, não há dúvidas de que, pela internet, as pessoas criam novas formas de encontro: acompanhamos a emergência de modos de relação que combinam o presencial e o não presencial, como no caso do namoro e do casamento que têm início na rede. Os movimentos sociais também têm explorado o potencial de mobilização que a rede oferece para a organização de ações presenciais. Veremos surgir, então, novas modalidades de ação relacional e coletiva a partir dessa experimentação que está em curso. Dessa forma, a vida em sociedade pode sair enriquecida pela irrigação informacional propiciada pela rede.