O livro secreto da ditadura

qui, 28/05/09
por Luciano Trigo |
categoria Todas

orvilEstá para chegar às livrarias uma pesquisa que promete abrir velhas feridas e reacender o debate sobre a ditadura: Olho por olho, do premiado jornalista mineiro Lucas Figueiredo (Record, 210 pgs.R$38). Também autor dos livros-reportagem Morcegos negros, Ministério do SilencioO operador , Lucas agora revela os bastidores de uma longa mas pouco conhecida batalha travada nos últimos anos da ditadura e nos primeiros anos da abertura – uma batalha entre dois livros. De um lado, Brasil: Nunca Mais, que se tornou a Bíblia sobre a tortura praticada pelas Forças Armadas, fruto do empenho de dezenas de pesquidores que investigaram mais de 700 processos da Justiça Militar, de 1964 a 1979; de outro, um livro de quase mil páginas, a resposta que nunca chegou a ser publicada, embora tenha mobilizado muita gente: Orvil, ou As tentivas de tomada do poder.

Coordenado por Dom Paulo Evaristo Arns, Brasil, Nunca Mais  (Vozes, 312 pgs.R$50) esgotou quase 40 edições e continua vendendo; já de Orvil só se conhece a existência de 15 exemplares artesanais, que só circularam pelas mãos de um grupo fechado de miltares. Em 2007, porém, um deles chegou às mãos de Lucas Figueiredo, que revelou uma pequena parte de seu conteúdo numa reportagem publicada no Estado de Minas. De lá para cá, o jornalista mergulhou na 966 páginas em dois tomos da obra e apurou as circunstâncias de sua confecção. O resultado de sua meticulosa investigação, que pode desagradar tanto à esquerda quanto à direita, está em Olho por olho. Se, por um lado, o livro mostra a engrenagem cruel da repressão, resgata também episódios desagradáveis para a memória da luta armada. Mas Lucas Figueiredo vai além: mostra, ainda, o que foram os seis anos de tensão e perigo na elaboração sigilosa de Brasil: Nunca Mais, ainda sob o regime militar.

A ordem para que os órgãos de segurança e informação realizassem o Projeto Orvil  (“livro”, ao contário) partiu do General Leônidas Pires Gonçalves, quando era Ministro do Exército do Governo Sarney, em 1986. Seu objetivo era deixar registrado para História a versão dos militares sobre a guerra suja travada contra os grupos armados de esquerda, numa espécie de resposta a Brasil: Nunca Mais, lançado um ano antes. O livro ficou pronto em 1988, mas, naquela altura, o General tinha decidido não mais publicá-lo. Em 2000, o grupo de direita Ternuma “Terrorismo Nunca Mais” divulgou 40 páginas da obra, então denominada O Livro Negro do Teroismo no Brasil.

Finalmente, em 2007, apareceu a cópia do Estado de Minas. Contudo, a insatisfação de alguns militares da reserva com o tom da reportagem de Lucas Figueiredo acabou levando à publicação, ainda que pouquíssmo divulgada e quase confidencial, da íntegra do Orvil na Internet, facilmente acessível pra quem souber procurar – os primeiros parágrafos do documento outrora hiper-sigiloso são reproduzidos abaixo. Por sua importância como documento histórico - o Orvil revela, por exemplo, que os militares detinham informações que negavam ter sobre mortos e desaparecidos; e explicita o envolvimento do Exército na morte de duas dúzias de presos políticos – e até para satisfazer a justa revindicação de que sejam abertos o “arquivos da ditadura”, convém que o texto seja amplamente lido e discutido. São citados no Orvil ceca de 1.700 nomes, acusados de envolvimento com a “subversão” – entre eles, é claro, muitos políticos em plena atividade hoje, em vários partidos. Casos como o seqüestro do Embaixador Charles Elbrick e a caçada a Carlos Lamarca ocupam várias páginas, escritas sob a ótica dos militares.

Os primeiros parágrafos do Orvil:

No final dos anos sessenta, diversas organizações clandestinas de corte comunista iniciaram uma nova tentativa de tomada do poder, desta vez por meio da luta armada. Ao iniciarmos as pesquisas para este trabalho, nosso objetivo era estudar os fatos que compõem esse episódio entre os anos de 1967 e 1973. Pelo conhecimento que tínhamos, tal período enquadrava os anos em que a luta havia sido mais acirrada e violenta.

 

Para a compreensão dessa luta, foram suscitadas muitas perguntas: Como se formaram? Qual a inspiração ideológica? Quais os objetivos das organizações subversivas nela empenhadas? Qual o caráter da revolução que pretendiam fazer? Quais as experiências externas que procuraram apreender? Quais os modelos e métodos revolucionários que tentaram transplantar para nosso país?

 

Como se estruturaram? Como se compunha sua infra-estrutura de apoio, de inteligência, etc? Em que segmentos sociais e de que forma recrutavam seus quadros e como os formavam no País e no exterior? O que buscavam ao perpetrar assaltos, seqüestros, assassinatos e outras formas cruentas de terrorismo? Que objetivos alcançaram com essas ações?

 

As indagações, porém, não se esgotavam em torno dessas organizações clandestinas. Envolviam o próprio Estado e o sistema político vigente. O nível que as ações terroristas alcançaram colocava em cheque o monopólio da força armada organizada? Tirava do sistema político a sua característica de universalidade e a qualidade final de sua força? O seu combate exigia o envolvimento das Forças Armadas? Era imprescindível que provocasse a restrição da liberdade e que se suprimisse do público as informações a que tem direito numa sociedade democrática?

 

É sabido que as ações empreendidas acabaram por envolver as Forças Armadas, e a esse respeito outras questões tinham que ser levantadas porque fazem parte da luta a ser examinada. Estavam as Forças Armadas preparadas e estruturadas para esse combate insólito? Tiveram que provocar alterações na sua estrutura, na instrução, nos seus efetivos, na conduta das operacões? Que sacrifícios lhes foram impostos? Como atuaram? Venceram a luta? Mas o fizeram em todos os seus aspectos?

Neville ataca ‘Cinema Mauricinho’

ter, 26/05/09
por Luciano Trigo |
categoria Todas

NevilleCena do filme A Dama do Lotação

 

 

 

 

 

Depois da exibição de seu filme A Dama do Lotação na Caixa Cultural do Rio de Janeiro, na terça-feira à noite – parte do ciclo “O Erotismo no Cinema Brasileiro” - o cineasta Neville D’Almeida aproveitou o debate com a atriz Maria Lucia Dahl, o jornalista Rodrigo Fonseca e o curador da mostra, Hernani Heffner, para soltar o verbo. Contestando logo a primeira fala de Maria Lucia, que atribuiu à censura da ditadura o fim dos filmes políticos do Cinema Novo e a ascensão da pornochanchada, Neville foi enfático:

_ O Cinema Novo não foi prejudicado pela ditadura militar. Ao contrário, ele prosperou na ditadura, que financiou, através da Embrafilme, todos aqueles filmes. E, que eu saiba, nenhum cineasta foi forçado a se exilar.

Exibida numa cópia 35 mm em péssimas condições, cheia de riscos e desbotada, ainda assim A Dama do Lotação agradou bastante à platéia que lotou o auditório da Caixa. Vale lembrar que o filme, de 1978, fez cerca de 6,5 milhões de espectadores nas salas de exibição – mais que o festejado Se eu fosse você 2 fez 30 anos depois. De fato, é uma das adaptações mais felizes da obra de Nelson Rodrigues para o cinema, além de contar com a nudez de uma exuberante Sonia Braga no auge da beleza e da fama (basta ver foto ao lado…).

Provocada por Heffner, que perguntou se o cinema brasileiro atual não está muito recatado, Maria Lucia Dahl, que atuou em alguns filmes eróticos hoje clássicos, como Giselle, de 1982, disse que o erotismo nas telas dos anos 70 foi uma forma de expor a hipocrisia da sociedade da época:

_ As pessoas fingiam que os casamentos eram perfeitos, que todos eram felizes e fiéis. O mundo mudou, e hoje as coisas são feitas de forma mais transparente, então os filmes não têm mais nada novo a mostrar. Em termos de erotismo tudo já foi dito.

Neville voltou a discordar, aproveitando o gancho para atacar o que chamou, ironicamente, de “Cinema Mauricinho“. A expressão vem se somar a outras que criticam as nossas produções contemporâneas, como “Cinema Novinho” e “Cosmética da Fome”:

_ O cinema que triunfou no Brasil é careta, não mostra nada, é um Cinema Mauricinho, que só se preocupa em agradar o público e tentar adivinhar o seu gosto. Esta é uma pretensão ridícula. São filmes bonitinhos, mas que não dizem nada, não mostram nada. E são totalmente feitos com o dinheiro do contribuinte, ninguém mais coloca a mão no bolso! Além disso, os cineastas que conseguem filmar são sempre os mesmos, um grupo de bem nascidos. Vivemos nas trevas da hipocrisia! Eu acho que hoje as novelas da televisão estão melhores que os filmes brasileiros!

Apesar de estar sem filmar longas desde Navalha na Carne, de 1997, Neville afirmou fazer essa crítica não por ressentimento, mas por amor ao cinema brasileiro. Lembrando que conheceu dois extremos em sua carreira – fez alguns dos filmes brasileiros mais assistidos de todos os tempos, mas fez também alguns filmes que nunca foram vistos, proibidos pela Censura – Neville acredita que vivemos um momento maravilhoso.

_ Pela primeira vez em 10 mil anos, hoje qualquer pessoa pode chegar em casa e fazer seu próprio filme, sobre sua famíla, seus desejos, seus sonhos, seus traumas. Imaginem se o Glauber Rocha tivesse uma câmera digital nas mãos! Era tudo que ele precisava. O digital vai provocar uma revolução na produção e na exibição. As telas se multiplicam nos celulares e nos computadores. Essa revolução vai resgatar a paixão pelo cinema brasileiro e acabar com esses diretores que acham que só eles podem e sabem fazer filmes, e que o cinema brasileiro é deles.

Neville está preparando uma mostra com os 80 curtas e micro-metragens que fez nos últimos cinco anos. A mostra vai se chamar “Neville sem Lei”, porque o cineasta não usou nenhuma lei de incentivo. Ele acha que o modelo atual de fomento deve ser aprimorado.

_ Já temos uma estrutura de produção montada e funcionando, mal ou bem são feitos 80 filmes por ano. O problema a ser atacado agora é a distribuição e a exibição. O BNDES devia financiar a construção de cinemas em municípios que não têm nenhuma sala. E tem que haver mais compromisso. Hoje, tem diretor que pensa: “O dinheiro é do contribuinte mesmo, então estou me lixando se o filme só vai ficar uma semana em cartaz”. Claro, ele já ganhou o dele! O que não pode é alguém assim fazer um filme de 3 milhões que não dá nenhum retorno e no ano seguinte voltar e pedir mais 5 milhões para fazer outro!

Filmografia de Nevile D’Almeida como diretor:

1997 – Navalha na Carne
1991 – Matou a Família e foi ao Cinema
1982 – Rio Babilônia
1980 – Música Para Sempre
1980 – Os Sete Gatinhos
1978 – A Dama do Lotação
1973 – Surucucu Catiripapo
1972 – Gatos da Noite
1971 – Mangue Bangue
1971 – Piranhas do Asfalto
1970 – Jardim de Guerra

PS Recebi há pouco um e-mail do Neville, que transcrevo a seguir:

“Prezado Luciano
Li seu texto sobre o debate na Caixa Cultural, foi sintético e preciso.
Gostaria de acrescentar que faltou ao Neville completar a frase e dizer que:
Não foi só o Cinema Novo, mas, todo o Cinema Brasileiro e todos os segmentos do cinema (distribuição e exibição) que prosperaram na época da EMBRAFILME.
A época foi também a dos maiores índices de público para o cinema brasileiro nos últimos 50 anos.
A verdade é que o cinema brasileiro já passou por Golpes de Estado, Estado de Exceção, Censura e todos os tipos de Ditadura.
As ditaduras passam, O CINEMA FICA!!
Saudações Artísticas,
Neville D’Almeida”

O livro que virou sentença

dom, 24/05/09
por Luciano Trigo |
categoria Todas

DinescapaPoucas vezes o título de um livo aderiu com tanta força à imagem de um país no inconsciente coletivo de seu próprio povo. Publicado em 1941, meses antes do suicidio do escritor austríaco Stefan Zweig em Petrópolis, Brasil, um país do futuro soa um pouco como uma sentença ou uma maldição, condenados que estaríamos e estamos ao estágio de eterna promessa, à espera infinita de um destino que nunca se realiza. O livro representou também uma maldição para seu autor, condenado pela intelectualidade brasileira da época à pecha de se ter associado à ditadura do Estado Novo: descrente e deprimido, Zweig se matou no início de 1942, mas o epíteto que criou para o país de se último exílio continua, até hoje, muito vivo.

Autor da impecável biografia Morte no paraíso, que cresce a cada nova edição, o jonalista Alberto Dines, editor do Observatório da Imprensa acaba de lançar outra obra sobre o escritor cuja vida investiga há quase 30 anos: em Stefan Zweig no país do futuro – A biografia de um livro  (EMC/Biblioteca Nacional/Casa Stefan Weig), 206 pgs. 60), Dines reproduz e analisa centenas de documentos raros, fotografias e recortes de jornal da época, que registram a gênese do País do futuro. A edição é bilíngüe, com tradução para o alemão de Kristina Michahelles.

Igualmente fundamental para quem quiser saber mais sobre Stefan Zweig é a leitura de suas memórias, O mundo que eu vi (no original, O mundo de ontem – Recordações de um europeu). Judeu, humanista, pacifista e crítico de primeira hora do nazi-fascismo, Zweig foi um escritor prolixo: seus romances e biografias fizeram enorme sucesso nos anos 20 e início dos anos 30, mas, com a ascensão de Hitler, ele teve seus livros queimados em praça pública. Perseguido, iniciou sua peregrinação de exilado. Após uma primeira visita ao Brasil, em 1936 – quando visitou a escola em que Alberto Dines, ainda menino, estudava, deixou a Inglaterra para se radicar em Petrópolis, onde concluiu seus últimos livros. Desolado com o aumento do autoritarismo e da intolerância no mundo, escreveu uma carta de despedida e tomou uma dose fatal de barbitúricos com sua mulher, Lotte.

G1: Desde o lançamento de Morte no paraíso, que descobertas o senhor fez sobre a
vida de Stefan Zweig?

ALBERTO DINES: Impossível quantificar ou enumerar. Comecei a receber contribuições de pessoas que conheceram o Stefan Zweig no Brasil em seguida à publicação da primeira edição, em novembro de 1981. A segunda edição foi publicada logo em seguida, não foi possível atualizá-la. Comecei então a guardar as informações que chegavam pensando numa terceira edição revista e ampliada. Não tinham origem apenas em fontes primárias. O livro foi lançado para coincidir com o centenário de nascimentos de Zweig. Naquele momento foram publicados muitos trabalhos, inclusive uma fotobiografia organizada pelo seu primeiro biógrafo, Donald Prater, para a qual ofereci muitas imagens até então desconhecidas na Europa e América. De repente, a bibliografia zweiguiana deu um enorme salto. Tão importantes quanto as novas informações são os novos insights, percepções, olhares. Cada dia que passa o biógrafo ganha novas perspectivas. Evidente, isso acontece apenas com os biógrafos que abdicaram de escrever “biografias definitivas”. A decisão de iniciar a revisão do texto foi tomada depois de 1992, quando eu morava em Lisboa e atendi ao convite para participar em Salzburgo do Congresso organizado para lembrar os 50 anos da morte do escritor. Ao juntar o novo material para um paper, percebi não poderia fugir à obrigação de ampliar a biografia. Isso materializou-se em agosto de 2004. Logo em seguida caiu do céu a pesquisadora alemã Marlen Eckl, especializada na Exilliteratur, a literatura do exílio, oferecendo-se para traduzir o livro para o alemão. Ao aceitar o projeto percebi que, para o público alemão, eu precisaria refazer o texto original, concebido e dirigido para o público brasileiro, familiarizado com o cenário histórico. A edição alemã de Morte no paraíso oferece uma nova e sólida camada de informações e percepções, equivale a uma quarta edição. O mesmo aconteceu com a edição espanhola: eu não poderia ignorar, como aconteceu com todos os que me precederam, as duas viagens de Sefan Zweig à Argentina, e teria que aprofundar as relações do escritor com a sua vizinha petropolitana, Gabriela Mistral. A quinta edição deve sair no fim do ano. Será a última.

G1: Quais foram os documentos mais importantes e reveladores descobertos na sua pesquisa?

DINES: Tudo é importante, uma vida é composta de pequenos e grandes fragmentos, e a biografia é a reprodução de uma vida. O livro de endereços do Stefan Zweig que seu editor brasileiro, Abrahão Koogan, copiou para mim foi importante. Mas os diários e as dezenas de cartas publicadas na Alemanha nos últimos 20 anos foram importantíssimos. Tudo importa numa vida, inclusive os detalhes da morte.

G1: Brasil, o Pais do Futuro, foipublicado por Zweig em 1941. Que relação o conteúdo ufanista do livro teve com a situação de refugiado do escritor, em busca da boa vontade oficial da ditadura de Vargas?

DINES: O País do Futuro não é um livro ufanista ou patriótico.

G1: Como Zweig era visto pela intelectualidade brasileira? Sua obra era bem
conhecida e acolhida? A má reação da crítica ao livro Brasil, o Pais do Futuro abalou muito o escritor?

ZweigDINES: Zweig era um autor de sucesso, um dos maiores best-sellers mundiais. A intelectualidade brasileira não gostava de autores de sucesso. Além disso, ele foi envolvido pelos imortais da Academia Brasileira de Letras que, na sua maioria, não eram propriamente escritores. Koogan pretendia proteger o seu editado, um refugiado, que só conseguiu o seu visto de residência graças ao livro sobre o Brasil. Estávamos em plena “ditabranda” do Estado Novo. Os intelectuais e jornalistas não conseguiram distinguir o amor daquele utopista vienense pelo Brasil daquilo que era produzido pela máquina de propaganda oficial. Acharam que elogiar o povo brasileiro era o mesmo do que elogiar o Governo brasileiro. Zweig foi linchado pelo Correio da Manhã através da pena do seu redator-chefe, Costa Rego – que se mostrou profundamente arrependido meses depois, quando o escritor se suicidou.

G1: Apesar de ter uma obra monumental, Stefan Zweig não parece desfrutar no Brasil do mesmo status simbólico de outros escritores alemães seus contemporâneos, como Thomas Mann. A que o senhor atribui isso?

DINES:Acho o contrário. Zweig é hoje mais popular do que Mann. Sobre ele já foram publicadas diversas biografias, inclusive a minha, e quase nenhuma sobre Mann. Seu livro de memórias foi retraduzido e reeditado há poucos anos pela Record. Sua obra ficcional e biográfica está sendo publicada em formato pocket pela LP&M.

G1: Fale sobre as circunstâncias do suicídio de Zweig. Qual era o estado mental do escritor, sua situação financeira, sua perspectiva de futuro, no Brasil e na Europa? Ele morreu achando que Hitler venceria a guerra?

DINES: Sua situação financeira era sólida, embora tivesse perdido tudo o que possuía na Áustria. Ele fugiu da Inglaterra menos de um ano depois de comprar uma linda casa em Bath. A sua depressão – como todas – não aconteceu da noite para o dia. Foi um processo de frustrações que se agregaram – para usar o verbo preferido pelos jornalistas brasileiros – ao longo de quase dez anos. Ele tinha a convicção de que Hitler seria derrotado, mas sabia que em seguida viria outra guerra, sabia que a aliança entre Stalin e os Aliados não poderia ser duradoura.

G1: Seus textos sobre Zweig despertaram algumas polêmicas no Brasil. Outros
estudiosos, como a professora Maria Luiza Tucci Carneiro, da USP, contestaram aspectos da biografia Morte no paraíso. Por outro lado, parece que o senhor não gostou do filme de Silvio Back sobre Zweig…

DINES: Não concordo com sua constatação, acho-a no mínimo simplista: jamais participei de qualquer polêmica sobre Zweig. Aliás a professora Tucci Carneiro convidou-me para participar da banca que julgou a sua tese de doutorado, porque se entusiasmou com o meu livro sobre o escritor. Nossas divergências relacionam-se principalmente no tocante à sua cruzada contra o chanceler Oswaldo Aranha, a quem ela coloca como a figura central do anti-semitismo brasileiro nos 30 e 40. Além do mais, ela não é uma germanista, não cuida da obra de Zweig. Sobre o filme de Sylvio Back, assisti num Festival em Brasília. Gostei como filme, como obra de ficção, mas não o reconheço como contribuição biográfica, embora baseada numa biografia. Isso está dito com todas as letras na terceira edição brasileira de Morte no paraíso.

G1: Seus principais livros têm em comum o fato de tratarem de homens no exílio,
judeus perseguidos de uma forma ou de outra. A intolerância no planeta está diminuindo?

DINES: Trato de judeus porque sou judeu, portanto é uma temática familiar, através da qual posso oferecer uma contribuição. A intolerância está crescendo assustadoramente, mistura-se com religião, e quando os homens convocam Deus para dar-lhes razão o resultado só pode ser catastrófico.

Leia também:
capa 2
caoa 3
capa 4

O suicídio involuntário de Simonal

qui, 21/05/09
por Luciano Trigo |
categoria Todas

poster filmeAcabo de assistir ao documentário Simonal – Ninguém sabe o duro que dei, de Claudio Manoel, Micael Langer e Calvito Leal. Impecável, de arrancar lágrimas e aplausos da platéia, sem falar na excelente montagem e nos criativos videografismos que recuperam a estética da época. Mas é um filme muito diferente daquilo que a mídia está dizendo. Ainda bem.

Basicamente, o que toda a imprensa vem repetindo em uníssono é que o filme reabilita a imagem do cantor. Não é bem assim. Eu, como “todo mundo”, já tinha ouvido falar que a carreira de Simonal acabou quando, acusado de ser um homem da ditadura, passou a sofrer um boicote implacável, uma conspiração de silêncio que o levou à depressão, ao alcoolismo e à morte. De fato, muitos depoimentos reunidos em Simonal comprovam algumas verdades dolorosas:

- a opinião pública é muito volúvel: basta um empurrãozinho para ela dar às costas hoje a quem idolatrava ontem;

- a classe artística (e não só a artística) é cruel e corporativista: quando elege alguém para Cristo, por talentoso que seja, todas as portas se fecham num piscar de olhos;

- os jornalistas muitas vezes agem como abutres atrás da carniça, em busca de uma reputação para destruir.

Ainda que tudo isso seja, ao menos em parte, verdadeiro, dá para dizer que Simonal foi uma vítima inocente, sem qualquer responsabilidade sobre o seu triste destino? Acho que não. E o grande mérito do documentário é justamente este: mostrar a participação do próprio cantor na conspiração de circunstâncias que o condenou a sair de cena. Ou seja, não se trata, absolutamente, como muita gente vem dizendo, de um filme feito para reabilitar Simonal. Mas, isso sim, de um filme que, com o melhor olhar jornalístico, esclarece fatos (fatos que para a maioria das pessoas, eu inclusive, eram nebulosos).

Ora, em 1971, no auge do sucesso, Simonal mandou dar uma surra no seu contador, a quem acusava de desfalque. O homem foi levado clandestinamente para o Dops e torturado. No processo que se seguiu, o cantor levou como testemunha um detetive do Dops, que assegurou que ele era um informante, o que foi confirmado por um oficial do 1o Exército. O filme sugere que o próprio Simonal se gabava de seus laços com o regime militar. Isso teve um preço.

Eu achava que Simonal tinha sido vítima de um assassinato cultural. Simonal - Ninguém sabe o duro que dei esclarece que se tratou, na verdade, de um suicídio. Nas sombrias circunstâncias da época, mesmo não tendo sido um informante com carteira assinada, mesmo sem ter prejudicado diretamente qualquer colega de classe, o que ele comprovadamente fez e publicamente declarou bastava para desencadear um processo de retaliação coletiva. O detonador desse processo foram escolhas suas, um comportamento seu. Outros artistas caíram no ostracismo por muito menos, ou mesmo por nada.

Daí a serenidade dos depoimentos de Jaguar e Ziraldo, por exemplo, que foram algozes de Simonal no Pasquim, e do próprio contador torturado. A objetividade desses e de outros depoimentos reunidos no filme torna ainda mais triste o fato de um artista tão talentoso e carismático ter vivido esse drama. Mas, se Simonal foi uma vítima, foi sobretudo da própria ingenuidade e das decisões que tomou. Às vezes a História não perdoa os ingênuos. Felizmente, o documentário Ninguém sabe o duro que eu dei não aponta o dedo para ninguém.

Uma pensadora que não sai de moda

ter, 19/05/09
por Luciano Trigo |
categoria Todas

Hannah ArendtBoa parte da reflexão de Hannah Arendt foi motivada e moldada por um contexto histórico e político radicalmente diferente do atual. Ainda assim, o interesse por sua vida e obra não parece diminuir, a julgar pelas constantes reedições de seus livros ou pelos novos estudos sobre a pensadora. Só o seu relacionamento com o filósofo Martin Heidegger – ela judia, ele com ligações suspeitas com o Nazismo – já foi esmiuçada em vários volumes, incluindo a transcrição da correspondência entre os dois. As cartas trocadas entre Arendt e a escritora americana Mary McCarthy também foram reunidas em livro já lançado no Brasil. E o leitor pode escolher entre duas alentadas biografias – Nos passos de Hannah Arendt, de Laure Adler, e Hannah Arendt – Por amor ao mundo, de Elisabeth Young-Bruehl. Isso sem falar na produção acadêmica sobre a pensadora, incessante nas universidades brasileiras.

Testemunha direta da História, Hannah Arendt procurou interpretar as transformações radicais do poder político de sua época – e o impacto que elas tiveram sobre a moral dos indivíduos. Mesmo quando datada , sua obra continua servindo de bússola para se entender fenômenos sociais permanentes – como a violência. Neste sentido, ainda que escrito num contexto muito particular – o temor da bomba, a Guerra Fria, os protestos contra a intervenção americana no Vietnã, confrontos raciais, descolonização - Sobre a violência (Civilização Brasileira, 182 pgs. R$29) traz idéias iluminadoras para o presente e por isso conserva a sua força. A autora constava o emprego crescente da violência nas relações políticas – e se indagava sobre os laços entre guerra e poder. Rejeitando antiga máxima de Mao Tse Tung – “Todo poder se origina do cano de uma arma” – Arendt afirma, ao contrário, que “poder e violência são opostos; onde um reina absoluto, o outro está ausente”.

De volta ao metrô de Zazie

sáb, 16/05/09
por Luciano Trigo |
categoria Todas

cena do filme divulgação
capaMais do que pelas experimentações na linguagem ou pela inocente ousadia dos palavrões de sua desbocada protagonista de 12 anos, Zazie no metrô, do pouco traduzido no Brasil Raymond Queneau (Cosac Naify, 192 pgs. R$45) impressiona hoje como documento sociológico: não são apenas 50 anos que nos separam de 1959, ano da publicação original do romance. Vivia-se simplesmente em outro mundo, no qual o coração das pessoas era mais leve, havia esperança no futuro, e todas as portas pareciam abertas. O mesmo espírito está presente nos primeiros filmes da Nouvelle Vague, da mesma época: não por acaso, já em 1960 Louis Malle adaptou a história para o cinema, com Philippe Noiret e a menina Catherine Demongeot. Desconfio que o filme, disponível em DVD, deve hoje parecer bobo até para crianças de 4 anos (vou fazer o teste com a Valentina).

(O trailer do filme pode ser visto aqui: https://www.youtube.com/watch?v=r4y5b4hqL64)

Com posfácio de Roland Barthes, a nova edição brasileira se destaca pela tradução de Paulo Werneck – ao mesmo tempo rigorosa e descontraída, como exige o original – e pelo primoroso projeto gráfico, de Elaine Ramos e Maria Carolina Sampaio. Aliás, com a digitalização galopante de todas as obras literárias, o futuro que imagino para as editoras é este, investir nos livros como objetos que dá gosto possuir, com projetos que agreguem valor ao conteúdo – já que este, imaterial, tenderá a ficar acessível gratuitamente num piscar de olhos.

A história é simples: Zazie vai a Paris passar um fim de semana com o tio, mas não consegue realizar o sonho de andar de metrô, por causa de uma greve. Ela foge e se aventura pelas ruas da cidade, encontra tipos estranhos (uma viúva, um taxista, um cabeleireiro) e vive epísódios com toques dadaístas – sapatos que viram passarinhos etc. No livro como no filme, é visível também a influência das histórias em quadrinhos e das comédias malucas do cinema mudo. Com sua linguagem coloquial, rica em neologismos, o romance chocou muitos leitores pelo vocabulário chulo de Zazie, que enche os pulmões para falas os palavõres mais cabeludos. (Bem humorado, quando lhe pediram sua opinião sobre o livro, o crítico Otto Maria Carpeaux respondeu: “Zazie? Do caralho!”

raymond queneauOutro livro obrigatório de Queneau é Exercícios de estilo (Imago, 180 pgs. R$29), que conta de 99 maneiras diferentes um episódio banal: um homem que encontra um estranho duas vezes no mesmo dia. Autor que participou de vários ismos importantes do século 20 – foi membro do Partido Comunista Francês e do movimento surrealista, do qual se afastou pelo apoio que André Breton deu a Stálin – Raymond Queneau (1903-1976) também integrou, ao lado de escritores como Georges Pérec e Italo Calvino, o Oulipo (Ouvroir de Littérature Potentielle), grupo que se dedicou a aplicar princípios matemáticos à literatura, reinventando a narrativa (às vezes de forma bizarra). Uma prova incontestável de sua importância na literatura francesa está, aliás, associada ao romance Zazie no metrô: uma estação da linha 5 do metrô parisiense foi batizada com seu nome, privilégio compartilhado apenas por autores como Victor Hugo e Diderot!

(Sobre Zazie, o que eu não sabia era que, nos manuscritos de Queneau, havia trechos em que Zazie efetivamente conhecia o metrô, cortados da edição definitiva! Um desses trechos pode ser lido aqui: https://www.cosacnaify.com.br/noticias/extra/zazie/)

No ar, Thomas Mann contra o Nazismo

qui, 14/05/09
por Luciano Trigo |
categoria Todas

thomas mann na rádiocapa
Entre 1940 e 1945, do exílio na Califórnia, Thomas Mann gravou para a BBC uma série de breves conferências radiofônicas, intitulada “Ouvintes alemães!” (“Deutsche Hörer!”). Esses discursos, que duravam de 5 a 8 minutos, eram gravados em disco e enviados de avião para Londres, de onde a BBC os transmitia para a Alemanha. Estima-se que sua audiência foi bastante pequena, já que os tais ouvintes alemães estavam sujeitos a severas penas, ou mesmo arriscavam a vida, ao sintonizar as rádios inglesas. Ainda assim tinha um grande impacto simbólico que o maior escritor alemão de seu tempo tentasse, mês após mês, chamar à razão seus conterrâneos, denunciando os campos de concentração e da política de extermínio nazista. Memo queo impactofos mínimo, Hitler acusou o golpe, criticando Mann em mais de uma ocasião.

Os 58 discursos, de grande valor histórico, estão reunidos no livro Ouvintes alemães – Discursos contra Hitler (Zahar, 224 pgs. R$39,90). Eles representam a adesão vigorosa do escritor à causa da liberdade e a luta antinazista, mas uma verdade pouco lembraa é que Mann foi um dos últimos intelectuais alemães de peso a tomar partido publicamente; embora nunca tenha simpatizado com Hitler e o nacional-socialismo, ele demorou a entender a gravidade da situação e adiou o quanto pôde a decisão de deixar seu país, mesmo depois de ver amigos e familiares sofrerem perseguições e censura. Quando os nazistas fizeram fogueiras de livros, em 1933, os de Thomas Mann, escritor de prestígio premiado com o Nobel quatro anos antes, não arderam – mas os de seu irmãos Heinrich e os de seu filho Klaus sim…

O assunto é tratado em detalhes na biografia Thomas Mann, de Donald Prater, que eu traduzi tempos atrás (Nova Fronteira, 672 pgs. R$74), e que relativiza a imagem heróica da atuação de Mann. Os escritor de A montanha mágica nunca foi um militante político – e se fosse, seguramente, não seria de esquerda. Sua reflexão sobre a sociedade alemã se dava num plano mais conceitual e abstrato, ligada ao poder do mito e à defesa da elevada, universal e cosmopolita cultura de seu país, estranha a qualquer particularismo étnico, à vulgaridade e ao sectarismo nazistas. Daí a identificação de Mann com Goethe, encarnação maior daquela alta cultura alemã, que inspiraria o escritor em Doutor Fausto e seria trasformado em personagem, em Carlota em Weimar.

Isso provocou uma situação peculiar no seio da intelligentsia alemã: para intelectuais identificados com movimentos já estabelecidos, como Hannah Arendt (com o sionismo), ou Bertolt Brecht (com o comunismo), foi mais “fácil” e natural assumir um lugar de resistência, dentro e fora do país. Outros, conservadores mas igualmente avessos ao Nazismo, sofreram mais, em função da associação que se fez entre os valores alemães e o nacional-socialismo. Para alguns deles, o exílio tomou a forma de um nomadismo permanente, levando em alguns casos ao desespero e ao suicídio – pois eram vistos como inimigos nos países nos quais buscavam refúgio, até mesmo pelos seus compatriotas.

Não foi o caso de Mann, naturalmente, cujo prestígio internacional foi suficiente para lhe garantir uma rotina confortável no país de adoção. Mas quando o escritor  tentou voltar ao país natal com sua família, em 1952, Mann não conseguiu se reintegrar à sociedade que ele considerava, em alguma medida, cúmplice dos horrores nazistas. Acabou se radicando na Suíça, onde morreu três anos depois.

Ouça aqui um dos discursos, na voz de Thomas Mann:

 https://www.youtube.com/watch?v=25YNc5bX7xY

Trechos

 

Sobre Hitler

 

“O indivíduo Hitler, com sua insondável falsidade, sua reles crueldade e seu desejo de vingança, com seus constantes rugidos de ódio, seu estropiamento da língua alemã, seu fanatismo medíocre, sua ascese covarde e sua perversidade miserável, sua humanidade defeituosa que carece de qualquer traço de magnanimidade e de vida espiritual elevada, que o indivíduo Hitler, digo, é a mais repugnante figura sobre a qual jamais caiu a luz da história!”  – Fevereiro de 1941

 

“Com um Hitler não há paz porque ele é incapaz dela por princípio e porque essa palavra em sua boca é apenas uma mentira suja e doentia — assim como cada palavra que ele já usou ou disse. Enquanto Hitler e seu regime de incendiários continuarem existindo, vocês, alemães, jamais terão paz, sob nenhuma circunstância. Ele terá de ir sempre adiante, como agora, com os desesperados atos de violência, nem que seja apenas para afugentar os espíritos de vingança, nem que seja para evitar que o ódio enorme e crescente devore vocês. Adverti-los, alemães, significa fortalecer seus próprios maus pressentimentos. Não posso fazer mais que isso.” – Março de 1941

 

“O sujeito miserável que ainda se diz o Führer da Alemanha, que ainda se dá o direito de ameaçar com uma morte vergonhosa todos que se opõem à continuação insana de uma guerra completamente perdida (…) Ele mentiu ao povo alemão e envenenou a sua sensibilidade com cada palavra que latiu e uivou em seus ouvidos.” – Janeiro de 1945

 

Sobre os campos de concentração:

“A fábrica da morte funcionava dia e noite; suas chaminés nunca deixavam de soltar fumaça. Já tinham começado a fazer uma ampliação… A instituição suíça de ajuda aos refugiados sabe mais detalhes. Seus delegados viram os campos de Auschwitz e Birkenau. Viram o que nenhum ser humano com sentimentos pode acreditar se não vir com os próprios olhos: ossos humanos, barris de cal, encanamentos de gás e crematórios; além disso, as pilhas de roupas e sapatos tirados das vítimas, muitos sapatos pequenos, sapatos de criança, se é que vocês, compatriotas alemães, e vocês, mulheres alemãs, querem continuar ouvindo. De 15 de abril de 1942 a 15 de abril de 1944, apenas nesses dois estabelecimentos alemães foram mortos 1.715.000 judeus. De onde tiro os números? Pois seus soldados faziam a contabilidade, com aquele senso de ordem alemão!”

 

“Alemães, vocês precisam saber disso. Horror, vergonha e arrependimento é o que se precisa em primeiro lugar. E só um ódio é necessário: o ódio aos canalhas que transformaram o nome da Alemanha numa abominação diante de Deus e de todo o mundo.” – Janeiro de 1945

 

O jornalismo como questão de ética

ter, 12/05/09
por Luciano Trigo |
categoria Todas

capafoto divulgaçãoNão apenas aos profissionais da Comunicação é recomendada a leitura de Ética, jornalismo e nova mídia – Uma moral provisória, de Caio Túlio Costa (Zahar, 288 pgs. R$39,90). Também – e talvez sobretudo – o leitor comum terá muito a aprender com esse ambicioso ensaio, que busca na Filosofia e na História elementos para compreender a atividade jornalística tal como ela se dá na vida real. É este leitor, afinal de contas, que consome, muitas vezes de forma acrítica, os noticiários impressos ou televisionados; é ele que determina, em última análise, as decisões de quem depende de público para sobreviver; é a ele, por fim, que a Constituição garante o direito, nem sempre respeitado, à informação de qualidade. Essa dupla natureza dos veículos de comunicação – negócio e serviço público – está na raiz de muitos dilemas enfrentados no dia-a-dia das redações. Com uma longa experiência na área, Caio admite que o jornalismo real sempre estará inevitavelmente distante dos postulados teóricos da verdade, da neutralidade e da justiça que se ensinam nas universidades. Mas nem por isso se deve abrir mão da permanente preocupação ética no exercício da profissão. Sobretudo num momento em que inovações tecnológicas criam formas inéditas de se produzir – e de se consumir – a notícia.

G1: A convergência tecnológica traz novas formas de se fazer e de se consumir jornalismo. Que impacto esse processo pode ter na sociedade e que desafios ele apresenta aos profissionais da Comunicação?

CAIO TÚLIO COSTA: Ela traz novas formas dentro de um ambiente de mudança revolucionária porque facilita a interatividade e a possibilidade de qualquer um – indivíduo, instituição, empresa ou corporação – produzir informação e dispô-la em rede mundial. Essa nova forma de comunicação provoca problemas – sejam éticos, regulatórios, legais ou institucionais. A sociedade reage por meio de suas instâncias. O Legislativo começa a produzir leis para controlar esse novo ambiente. A Justiça erra e acerta em julgamentos e com isso começa a criar jurisprudência, por exemplo, e os profissionais de Comunicação aderem ao novo modelo – blogs, sites, participação ativa em redes sociais – ou reagem contra explorando as “deficiências” do novo meio – mas a indústria da Comunicação nunca discutiu tanto quanto discute agora a emergência das novas mídias e a necessidade de entendê-la para transformá-la em negócio.

G1: A imprensa chegou tardiamente ao Brasil, e sua história foi marcada por relações perigosas com o poder, e não apenas nos períodos autoritários – como revela, por exemplo, a leitura das memórias de Samuel Wainer, ou da biografia de Assis Chateaubriand. Essas especificidades tornam a imprensa brasileira mais vulnerável a deslizes éticos?

CAIO: Não diria que a imprensa chegou tardiamente ao Brasil porque ela chegou com a vinda de D.João VI , por volta de 1808. Ou seja, ela chegou no Brasil antes de ganhar escala na Europa e nos EUA. Chegou junto com a formação da industria da Comunicação de massa. Os jornais ganharam escala, e relevância enquanto indústria da Comunicação, na primeira metade do século XIX. As relações perigosas da imprensa com o poder não são um “privilégio” nosso e nem têm a ver com a idade desta indústria. Essas relações são perigosas em todos os países, sejam eles democráticos ou autocráticos. Como sempre, há exceções – mas poder e imprensa sempre viveram relações complexas e de mútua dependência. A questão ética não é diferente para a imprensa brasileira e para a imprensa em outros países. Ela é uma só.

G1: Estruturada desde sempre como negócio, portanto dependente do lucro e dos anunciantes, a comunicação deve atender também ao interesse público, até por previsão constitucional. Como resolver esse dilema?

CAIO: Não há como resolvê-lo – há que se conviver com ele e com sua realidade paradoxal. É isso o que faz a imprensa. Ela diz agir em nome do interesse público, normativamente, mas vai levar em conta os interesses próprios em primeiro lugar, funcionalmente. Não há como ser diferente. E o que é interesse público? Eu problematizo essa definição.

G1: Como você analisa o debate sobre a criação de um Conselho Federal de Jornalismo, idéia que foi muito mal recebida pela classe, apesar de defendida pela Fenaj? Que riscos e benefícios ele representaria?

CAIO: Da maneira como se apresentou no Brasil, a idéia sugeria uma possibilidade muito concreta de controle absoluto, censura, manipulação corporativa. Não há como fugir da fúria legisferante – nem dos impostos e nem da morte, como já disse um Presidente americano. A grande questão é o excesso de regulamentação e as forças e fraquezas que lobbies empresariais, corporativos e políticos possam ter na regulamentação. Uma auto-regulamentação que levasse em conta os diferentes interesses, de forma equilibrada, seria muito bem-vinda. Mas é muito difícil equilibrar essas forças. Ou seja, ainda bem que essa idéia de Conselho Federal do Jornalismo sumiu do mapa.

G1: Você afirma que existe um abismo entre o dia-a-dia da profissão de jornalista e os conceitos de verdade e ética que sustentam a atividade teoricamente. Mas isso não acontece em toda a sociedade? A ética, no Brasil não se tornou uma ficção, uma encenação e uma representação – a julgar pelo próprio noticiário? Seríamos o país da moral provisória?

CAIO: Não considero os problemas morais da imprensa brasileira maiores ou menores do que os problemas morais das democracias em geral. A rigor, a nossa dita “grande imprensa” tem uma qualidade comparável à de democracias do primeiro mundo. A moral provisória é a forma pela qual se faz o jornalismo seja aqui no Brasil seja em qualquer outra democracia. Os princípios existem apenas para serem princípios. Qualquer pequena mentira – ou omissão – perpetrada por um jornalista para conquistar alguma informação desvela este abismo, esse uso temporário da moral – o recurso à moral serve para denunciar um corrupto, mas não serve para justificar uma mentirinha, por isso, provisoriamente, o jornalista deixa de ter princípios em relação à mentira e a usa para conseguir informação que ele acha relevante. Os jornalistas agem, em geral, como se os fins justificassem o uso de meios condenáveis moralmente – essa é a raiz da moral provisória.

G1: Qual deve ser o papel do Estado em relação às políticas de Comunicação? Como você analisa o projeto da TV Pública, e por que ela ainda não decolou? E, se qualidade nem sempre dá audiência, como fazer com que as TVs comerciais, tanto as abertas quanto as por assinatura, priorizem o interesse público, cultural e educativo de sua atividade?

CAIO: Pergunta complexa. O Estado deve ser o guardião do regulamento, da Constituição, esse é o seu papel – o Estado (executivo, legislativo e judiciário), este sim, tem uma propensão regulatória extrema, o que acaba por dificultar a própria indústria da comunicação. Mas veja que, às vezes, ele dá uma dentro, mesmo que atrasado, como quando o STF derrubou a finada Lei de Imprensa. Não sei por que a TV do governo não decolou – ela não segue o modelo clássico da TV pública, aliás. No entanto, as instituições têm o direito de criar e alimentar seus próprios meios de comunicação – isso vai ficar cada vez mais inevitável com a pervasividade da comunicação. A terceira questão é um mistério para mim – o que é qualidade? Você não acha, por exemplo, que a Rede Globo produz uma programação de qualidade? Eu acho que sim. O “mercado” internacional chancela essa afirmação quando compra os produtos da Globo. A programação da TV Futura não é muito boa? É uma rede privada. Agora, sobre o interesse público, como priorizá-lo? Quem vai definir o que é interesse público? O vizinho engenheiro? O vizinho ator? O vizinho professor? O vizinho traficante de drogas? A associação do bairro? O criminoso preso numa cela com quarenta pessoas conde cabem cinco? O prefeito? A oposição? O dono do jornal? O leitor? O jornalista? O tribunal? A escola? O deputado? O presidente da República? Todos juntos, mas como? – é muito complicado falar em interesse público, é mais complicado ainda definir o que é interesse público. É de interesse público preservar uma reserva indígena em detrimento de uma estrada que passaria por ela? Existem muitos interesses públicos, depende de como se vê o público.

G1: A espetacularização da notícia é um fenômeno crescente, sobretudo quando envolve escândalos ou crimes hediondos. Como você analisa isso?

CAIO: Não como um fenômeno crescente – mas como um fenômeno onipresente. Não apenas em relação a escândalos e crimes hediondos, mas relação à notícia enquanto tal. O comunicador produz o espetáculo, a sociedade consome o espetáculo, se alimenta do espetáculo e o recicla porque o produtor da comunicação também trabalha sob do domínio da idéia de espetáculo. Não há como fugir dessa aparência de realidade. A teoria crítica o consegue, mas ela mesma é um produto dessa espetacularização. Daí a necessidade cada vez maior de as pessoas se aprofundarem no estudo da filosofia moral. Não é que vá resolver a questão que você coloca – mas vai dar ferramentas de distanciamento para que, no mínimo, entendamos melhor a nossa aparente realidade.

G1: Como você avalia o ensino na Comunicação nas nossas universidades?

CAIO: Sou partidário de um curso de pós-graduação para formar jornalistas e comunicadores. Essa formação viria depois que o estudante tivesse cursado um curso clássico, qualquer um, mas que tenha lhe dado uma formação humana e/ou científica sólida, coisa que as escolas de comunicação – apesar de existirem algumas muitos boas e completas – não conseguem fazer de uma forma geral.

G1: Ao longo de sua carreira como jornalista, quais foram os momentos em que a questão ética se tornou mais evidente e marcante?

CAIO: Seguramente foi quando exerci a função de ombudsman, na Folha, porque me obrigava diariamente e semanalmente, em público, em tratar da ética na profissão. Mas a preocupação esteve e está sempre presente.

G1: Qual a importância do fim da Lei da Imprensa? Como você analisa a legislação atual sobre a Comunicação no Brasil?

CAIO: O fim da Lei de Imprensa é inócuo, porque ela estava em desuso. Acho que o Código Penal dá conta do problema. Tem havido reclamações segundo as quais o fim da Lei de Imprensa acabou com o direito de resposta. Não procede. A jurisprudência está aí para os juízes decidirem e darem esse direito. Mas isso também não resolve. O direito de resposta nunca foi respeitado para valer no Brasil – e sofre também nas outras democracias. Mesmo quando jornais, televisões e revistas são obrigados por decisão judicial a publicar direito de resposta, os veículos o fazem de forma quase ilegível, escondida, sem o mesmo destaque da notícia em questão – geralmente publicada meses, anos atrás. A Justiça é lenta, e não é a falta de uma lei ditatorial que vai atrapalhar ou melhorar a sua maneira de agir. Precisamos resolver, sim, a melhoria da agilidade da Justiça como um todo. Os juízes têm discernimento suficiente para julgar casos de direito de resposta – discernimento não falta, falta agilidade, falta aos veículos a humildade de cumprir o direito de resposta como ele merece ser cumprido.

Leia aqui um trecho do livro: https://www.zahar.com.br/doc/t1271.pdf

O controle nosso de cada dia

sáb, 09/05/09
por Luciano Trigo |
categoria Todas

capaDas câmeras de vigilância e dos rastreadores aos mecanismos mais sutis da publicidade, das pesquisas de opinião e das campanhas de saúde, somos cada vez mais monitorados. Mas por quê? E para quê? Como esse controle invade todos os aspectos da vida cotidiana, e quais são os seus efeitos? É possível (e desejável) resistir? A pesquisadora Sonia Regina Vargas Mansano, professora da Universidade Estadual de Londrina, parte dessas perguntas em Sorria, você está sendo controlado (Summus, 192 pgs. R$41,20). Afastando-se do jargão acadêmico, a autora investiga como a mídia e a tecnologia podem determinar o modo como vivemos hoje.

Na primeira parte do livro, “Tematizando a sociedade de controle”, Sonia faz uma apresentação histórica do tema, partindo da análise de Michel Foucault sobre a sociedade disciplinar até aquilo que Gilles Deleuze denominou, num dos seus últimos textos, “sociedade de controle”. Nos capítulos seguintes, “Vigilância disseminada” e “Controle-estimulação”, ela estuda o caso brasileiro: como mecanismos diversos convocam cada vez mais o indivíduo a prestar atenção em detalhes da própria vida e de outras pessoas, e a aderir a normas implícitas que enfatizam a vulnerabilidade da sua existência.

Na segunda parte, “Resistência e poder”, Sonia dedica um capítulo a um dos crimes mais agressivos e temidos pela sociedade: o sequestro. Ela apresenta uma entrevista com o relato minucioso da experiência de Ester, uma mulher que esteve sequestrada por cinco dias e mantida em cativeiro, mostrando como as tecnologias desenvolvidas para o controle são reformuladas e utilizadas em favor do crime – e como o ser humano, quando está em situação de perigo, pode criar formas para se desprender do controle.

G1: Você escreve que o controle se disseminou no cotidiano da sociedade, mas por outro lado o tecido social parece cada vez mais esgarçado e fora de controle: informalidade econômica, poderes paralelos, crise das instituições, relativismo moral. Como analisa isso?

SONIA MANSANO: Quando falamos de controle aparece, às vezes de modo imperceptível, a expectativa por um controle absoluto. Seguramente isso não existe. A sociedade produz formas de fugir em diferentes direções, e os exemplos que você apresenta na questão se enquadram aí. Os agentes de controle, conectados em rede, vão buscar se acercar dessas realidades, e algumas delas serão efetivamente controladas. Mas, novas formas de fugir serão inventadas no processo. A partir da segunda metade do século 20, o regime disciplinar começou a sofrer transformações como uma forma de responder à crise das instituições de confinamento e de parte dos valores que lhes davam sustentação. Com isso, o controle se disseminou em várias frentes e passou a ser realizado pelos mais diferentes agentes, com finalidades distintas. O Estado é uma das instâncias que se utilizam dos dispositivos de controle para monitorar e organizar a vida em sociedade. Para isso, ele confere autonomia relativa a diferentes esferas que a ele estão conectadas, como a da saúde e a educacional, passando a funcionar em rede. Mas ele não é o único a fazer esse uso. A iniciativa privada também começou a exercer um tipo de controle, oferecendo produtos e serviços de segurança de prédios comerciais, residências e indivíduos. Além disso, podemos encontrar o exercício do controle na vida cotidiana da população em geral. Esta, ao mesmo tempo que controla, também deseja ser mais controlada, particularmente quando associa mais controle à segurança. Por vezes, sequer percebemos essas atitudes, já que elas estão cada vez mais se consolidando como um traço subjetivo bastante naturalizado. Assim, cada um de nós, em nosso cotidiano, está cada vez mais atento àquelas situações que são avaliadas como diferentes ou suspeitas. Por fim, o controle também passou a fazer parte de operações ditas ilegais e, em larga medida, é usado para facilitar o acesso a informações e promover a circulação de pessoas, equipamentos e mercadorias para fins ilícitos. A sensação de que o tecido social está cada vez mais esgarçado e fora de controle colabora para retroalimentar ainda mais a necessidade de colocar em funcionamento esses dispositivos. Assim, o diferencial de nosso tempo histórico é que o controle acontece de maneira descentralizada, o que colabora significativamente para a sua naturalização.

G1: Esse controle sempre presente está vinculado a alguma ideologia? Qual é a
sua racionalidade política e econômica?

MANSANO: A dinâmica dos regimes de poder não pode ser satisfatoriamente compreendida por uma análise que submete toda complexidade do social, de forma mecânica, às determinações econômicas. É necessário correr o risco de pensar a ordem econômica como sendo dominante sem, contudo, reduzir os diferentes aspectos da vida a essa esfera. Isso é possível se tomamos a noção de produção, pensada originariamente por Marx nas relações de trabalho, e a estendemos para o conjunto da vida em sociedade. Assim, o capitalismo mais do que secretar uma ideologia, ou seja, um conjunto de idéias que corrobora e dá sustentação à ordem econômica, produz, em sua complexidade, modos de vida que vão bem além de um conjunto de idéias. Modos de sentir, de pensar e, no limite, o próprio desejo, são produzidos nesse processo. A partir daí, é necessário falar de toda uma subjetividade capitalista, produzida e se reproduzindo permanentemente. Acompanhar esse movimento exige uma forma de governar mais flexível e atenta ao movimento de desejo dos indivíduos, mas também daquilo que coloque em risco a pretendida ordem social. Estamos diante da elaboração de novas estratégias, que são políticas e econômicas ao mesmo tempo, e que incidem sobre a subjetividade e não cessam seu movimento de produção: assim, a cada dia nos deparamos com novas formas de controle – mais sofisticadas e precisas, mas também mais desejadas, ainda que não necessariamente por todos.

G1: Em que medida algum tipo de controle deve existir? E em que medida ele pode
e deve ser bidirecional, entre indivíduo e Estado?

MANSANO: Com freqüência, encontramos a articulação de uma instância do Estado com procedimentos executados por indivíduos que são protegidos pelo anonimato. Esse é o caso do disque-denúncia que conecta a população, as ONGs e a polícia com o objetivo de, por exemplo, combater a exploração sexual de menores. Assim, o que está em questão nessas articulações é o tipo de vida que construímos ao criar, ao acolher ou ao resistir às formas de controle que são colocadas em circulação. Cabe lembrar que em cada uma delas é atualizado um jogo complexo de liberações e sujeições. Assim, a questão a ser analisada em cada situação é a maneira como colocamos os dispositivos de controle em funcionamento no cotidiano e no tipo relação que construímos com eles. De qualquer forma, é sempre bom lembrar que alguns dispositivos podem tomar um contorno autoritário e empobrecedor da existência. Portanto, mais do que um processo bidirecional, entre indivíduo e Estado, é necessário pensar uma rede complexa constituída de múltiplos agentes diferenciados – indivíduos, ONGs, empresas, partidos políticos, entre outros – numa interação que é marcada pela eventualidade.

G1: Você diz que é possível resistir ao controle, mas em nome de quê se deve
resistir? De qual projeto, de qual liberdade?

MANSANO: Colocar a questão em termos imperativos, de um dever, não é a melhor maneira de introduzir esse debate. Afinal, trata-se de resguardar a instância de decisão do sujeito, que tem implicações éticas na participação ou não nos procedimentos do controle. Assim, a estratégia utilizada no livro foi a de dar visibilidade àquilo que, em larga medida, encontra-se amplamente naturalizado e que acaba sendo reproduzido como algo simplesmente corriqueiro. Mapear e descrever as situações de controle serve como um primeiro passo para analisarmos o tipo de vida que estamos ajudando a construir para nós mesmos e para os outros. A cada vez que nos conectamos a um dispositivo de controle, por mais simples e inofensivo que ele possa ser ou parecer, damos uma certa direção à existência. Daí a necessidade de analisar as possibilidades de autonomia e de resistência do sujeito frente às relações de poder nas quais ele está inserido. Cabe dizer também que, ao contrário do que se possa imaginar, o exercício do controle na contemporaneidade acontece de modo compatível com a liberdade dos sujeitos e, mais ainda, apóia-se nela, tal como demonstra o exemplo do disque-denúncia. Além disso, a própria idéia de liberdade também pode vir a ser produzida pelas formas de controle, o que é bastante visível nas campanhas publicitárias. Investigar por onde é possível escapar, construindo novas formas de vida, de sensibilidade e de relação, põe em evidência a potência para resistir, como e quando isso for desejável.

G1: Quando o controle se confunde com sedução, as pessoas passam a desejar ser
controladas, não?

MANSANO: Daquilo que estudo, o que está mais próximo desta noção proposta por você, de sedução, é a incitação ao consumo carregada de apelos eróticos e estéticos de diferentes tipos. Esta esfera do controle foi estudada sob o nome de “controle-estimulação”. Nele podem ser localizadas as diferentes campanhas publicitárias que se fazem presentes em nosso cotidiano e pretendem, pela via da incitação, controlar a relação entre consumidor e mercadoria, por vezes recorrendo a enunciados que se sobrepõem a um olhar mais crítico em relação ao consumo. Como ela funciona? Há aí todo um trabalho, dito “imaterial”, por meio do qual recebemos os mais variados “convites” para experimentar, acessar, comprar serviços e produtos. Assim, antes mesmo de oferecer um produto para o público consumidor, uma série de imagens e modos de vida são apresentados no intuito de tentar provocar o desejo pela posse da mercadoria. Num certo sentido, estamos nos tornamos “consumidores de subjetividades”, como diz Felix Guattari e, particularmente, consumidores de uma subjetividade capitalista. Os efeitos desse processo são diversos: a avaliação sobre a aparência do corpo está cada vez mais exacerbada, o que pode ser verificado pelo crescimento do número de cirurgias plásticas em nosso país. Um outro ponto a ser considerado é que, para acompanhar a estimulação ao consumo, a população está cada vez mais endividada e temerosa em relação à manutenção dos bens acumulados.

G1: Como a inflação de imagens e telas está afetando a vida das pessoas,
concretamente? Que mudanças comportamentais você percebe?

MANSANO: A mudança principal acontece no plano subjetivo dos modos de pensar, de sentir, de avaliar. Assim, estamos cada vez mais sensíveis e atentos às formas de controle e, em diferentes ocasiões, desejamos que ele seja realizado com mais freqüência e intensidade. Pode-se dizer que a percepção do controle ganhou relevo com a literatura, mas também em filmes e noticiários. Esses canais de comunicação, além de chamar a atenção para situações de risco, prevenção e estimulação, também cooperam para produzir efeitos subjetivos na vida da população – a cada dia mais atenta e conectada a detalhes que outrora passavam praticamente despercebidos. Por outro lado, diante da disseminação variada desse dispositivo, parte da população torna-se resistente a eles, recusando-se, por exemplo, ao consumo, à vigilância e às atitudes preventivas.

G1: Qual o papel das redes sociais da internet nesse processo? Existe uma
tendência ao enclausuramento dentro de casa? A vida real vai se tornar um
luxo?

MANSANO: Acredito que é importante escapar do dilema que opõe essas suas situações de maneira absoluta: o presencial, que você chamou de vida real, e o não presencial, a internet. Assim, não há dúvidas de que, pela internet, as pessoas criam novas formas de encontro: acompanhamos a emergência de modos de relação que combinam o presencial e o não presencial, como no caso do namoro e do casamento que têm início na rede. Os movimentos sociais também têm explorado o potencial de mobilização que a rede oferece para a organização de ações presenciais. Veremos surgir, então, novas modalidades de ação relacional e coletiva a partir dessa experimentação que está em curso. Dessa forma, a vida em sociedade pode sair enriquecida pela irrigação informacional propiciada pela rede.