A Cesare o que é de Cesare

qua, 28/01/09
por Luciano Trigo |
categoria Artigo, Todas

Memórias do refugiado político italiano Cesare Battisti mostram relação de amor e ódio com seu delator

cesare.jpgcapa-battisti.jpgNa cobertura jornalística do caso Cesare Battisti, passou despercebido pela grande imprensa (esperemos que não pelas autoridades competentes) o fato de que já foram lançadas no Brasil as memórias do refugiado político italiano, que conta em detalhes a sua versão sobre os crimes de que é acusado. Minha fuga sem fim (Martins, 288 pgs. R$47,30) é um relato impressionante: Battisti recapitula a sua trajetória de militância política, suas prisões e fugas e sua experiência na clandestinidade. Explica sua atuação no grupo terrorista PAC – Proletários Armados pelo Comunismo, no contexto dos anos de chumbo na Itália dos anos 70. E dedica boa parte do livro – que tem prefácio de Bernard-Henri Lévy e posfácio de Fred Vargas - a analisar sua conflituada relação com Pietro Mutti, apresentado como amigo e traidor, salvador e delator. Já nos primeiros capítulos, Battisti rememora o início dessa relação e faz revelações surpreendentes: os dois compartilharam mulheres, na mesma cama, aí incluída a esposa do ex-terrorista arrependido Mutti:

“Depois de algum tempo, passamos a partilhar as noitadas no bar, mas também, às vezes, a mesma cama e a mesma garota. (…) O vinho abolia as minhas reticências e a cama era suficientemente grande para três. Ela era a mulher dele, estavam casados havia dois anos. (…) Cheguei a me perguntar se deveria admirá-lo ou me sentir culpado. Mas era um pensamento apenas, que não me impediu de fazer amor com a mulher dele na presença dele. Claro, sua absoluta falta de ciúmes não deixava de me intrigar.”

Como se sabe, Battisti, atualmente preso no cárcere da Polícia Federal em Brasília, é também escritor de romances policiais e revela talento para manter o interesse da narrativa. Minha fuga sem fim pode ser lido como uma bem encadeada peça de defesa, capaz de angariar a simpatia de muitos leitores. O caso é complexo e envolve um debate jurídico delicado, pois põe confronta diferenças entre as legislações dos países envolvidos (Itália, França e Brasil). Mas, no fim das contas, se o que importa é saber se Battisti teve ou não participação direta nos quatro assassinatos que lhe imputam (e pelos quais foi condenado á prisão perpétua em seu país), e como ele nega peremptoriamente ter cometido esses crimes, o leitor fica na posição de juiz supremo, a quem cabe decidir se Battisti está mentindo ou dizendo a verdade, e a quem cabe avaliar a responsabilidade moral de quem pegou em armas ou exortou outros a fazê-lo, mesmo por uma causa nobre. O que é dificílimo.

Minha fuga sem fim se lê como um romance, no qual tão interessante quanto as reflexões sobre o conturbado contexto político dos anos 70 é a reconstituição da relação de Battisti com Mutti, e não apenas por suas aventuras sexuais. Depois de se envolver, na primeira juventude, com pequenos furtos e assaltos à mão armada, Battisti foi preso pela primeira vez. Solto após dois anos, entrou no PAC, movimento subversivo liderado por Mutti – um dos mais de cem grupos armados da esquerda radical em ação no país, naquele momento. Battisti afirma que decidiu largar as armas quando soube do assassinato de Aldo Moro, em 1978, mas continuou clandestino e no ano seguinte foi preso. Seu testemunho sobre esse período é assustador:

“No final de 1980, abateu-se sobre a Itália a mais violenta repressão. Não vou repisar o estado de emergência, a suspensão de alguns artigos da Constituição, as execuções sumárias. Tudo isso é conhecido. Mas, nesse período, o pânico tomara conta do nosso meio carcerário e corroía o coração e a cabeça dos detentos, inclusive dos irredutíveis que não ousavam confessá-lo. Quanto a mim, estava apavorado com os súbitos sumiços de prisioneiros. (…) Alguns reapareciam dois, três meses depois, em condições psíquicas assustadoras. Outros nunca mais eram vistos”.

Naquele momento, pesava sobre Battisti apenas a acusação de integrar um grupo armado, de forma que ele conseguiu ser transferido para uma prisão comum – de onde fugiu, em outubro de 1981, com a ajuda de… Pietro Mutti, com quem tinha rompido. No ano seguinte, seria a vez de Mutti ser preso – e supostamente torturadom – após o que decidiu mudar de lado e acusar antigos companheiros, em troca de redução da pena e outros benefícios. Battisti já tinha fugido para a França, onde a doutrina Mitterrand beneficiava criminosos políticos que se comprometesse a abandonar as armas. Lá se casou, teve duas filhas, depois viajou para o México, onde passou oito anos. Enquanto isso, os processos contra ele corriam, na Itália. Voltando a Paris no final dos anos 90, voltou a ser preso em 2004, já sob o governo de Jacques Chirac. Fugiu para o Rio de Janeiro antes que um novo pedido de extradição fosse julgado – na Itália, ele iria diretamente para a cadeia, cumprir pena perpétua, sem direito a novo processo. Enquanto vivia clandestinamente em Copacabana, Battisti publicou na França Minha fuga sem fim. Ele escolheu o Brasil como destino justamente porque a nossa legislação protege da extradição estrangeiros acusados de crimes políticos. Mesmo assim foi preso, em março de 2007, numa ação conjunta das polícias francesa e brasileira.

   

Imagens da revolução inacabada

dom, 25/01/09
por Luciano Trigo |
categoria Literatura, Todas

Fotógrafo brasileiro e jornalista holandês visitam a Cuba de Che, 50 anos depois

capa-cuba.jpgEm abril do ano passado, Izan Petterle e Frans Glissenaar decidiram refazer o itinerário de Che Guevara durante a Revolução Cubana – que acaba de completar 50 anos, em meio a incertezas sobre o estado de saúde de Fidel e a capacidade de sobrevida do regime sob o comando de seu irmão Raul Castro. O fotógrafo brasileiro e o jornalista holandês – parceiros de reportagens da revista National Geographic - usaram como guia o diário de Che escrito durante a campanha: Passagens da guerra revolucionária. O resultado é  Cuba de Che – 50 anos depois da Revolução (Carlini & Caliato Editorial, 144 pgs. R$89), um livro valioso não somente pela força das fotografias, que captam paisagens e cenas do cotidiano da ilha, mas também pela qualidade da pesquisa e do texto, que recupera cada etapa da aventura revolucionária mais impressionante da América Latina. Nestas e em dezenas de outras imagens, o premiado fotógrafo Izan registra a fé e o desencanto, a alegria e a incerteza do povo cubano, que, entre outras contradições, aguarda com ansiedade o futuro e idolatra com nostalgia o passado, enquanto espera, em silêncio, o inevitável reencontro com a História. Em todo caso, se Fidel agoniza e o país vai mal, a força simbólica de Che Guevara, morto na Bolívia em 1967, parece resistir ao tempo: ele continua a dividir opiniões, inspirando (e irritando) muita gente.

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TRECHO:

“Na tarde seguinte, decidimos retornar a Playa las Coloradas. Torcemos para cruzar de novo com os soldados que tínhamos visto no dia anterior; talvez pudessem estar içando uma bandeira ou fazendo algum outro tipo de cerimônia. Mas eles não estão aqui hoje. Em seu lugar, encontramos o vigia do monumento e do museu; ele nos diz que é absolutamente proibido caminhar pelo píer após as 18h. Depois de longas deliberações, ele concede a Izan permissão para fazer uma foto à beira-mar enquanto me mostra o museu. Ali, começo a compreender como as pessoas sabem que este foi o local onde o Granma ancorou: o museu reúne muitos objetos coletados ao longo dos anos no mangue – armas perdidas, uma mochila, sacos de dormir e outros objetos, como um guia turístico da Cidade do México. Além disso, não há mais muita coisa a se ver no museu; o bar e o terraço adjacente são maiores do que as duas salas pequenas de exposição. O zelador reclama da falta de visitantes. É verdade que no dia 1º de maio o lugar fica apinhado de gente por causa das manifestações no estacionamento – que agora está deserto. Ele sugere que deveriam fazer um restaurante com ar-condicionado em vez do bar ao livre. “Do lado de fora faz calor demais, principalmente para os turistas estrangeiros.” Sinceramente, duvido que muitos turistas estrangeiros viriam até aqui por causa de uma mudança desse tipo, já que o lugar vai continuar sendo distante e remoto”.

O negócio do cinema

seg, 19/01/09
por Luciano Trigo |
categoria Artigo, Cinema, Todas

Biografia de Luiz Severiano Ribeiro ajuda a entender a acidentada história do audiovisual brasileiro

capa-severiano.jpgEm vários aspectos, a trajetória do grupo exibidor Luiz Severiano Ribeiro se confunde com a história do cinema brasileiro. Por isso, mesmo que breve e ligeiramente “chapa branca” (algo compreensível num livro feito sob encomenda), a biografia O rei do cinema, do jornalista Toninho Vaz (Record, 208 pgs. R$37) traz uma importante contribuição para a historiografia da área, ainda tão pobre de lançamentos quanto rica de assuntos inexplorados. Empresa familiar já na quarta geração, o Grupo Severiano Ribeiro atravessou, em seus 90 anos, todas as etapas do cinema, do filme mudo à tecnologia digital e às multissalas. Conhecer sua história ajuda a entender o acidentado percurso do audiovisual no Brasil, como cultura e como negócio.

severiano1.jpg Toninho – também autor de competentes biografias dos poetas Paulo Leminski (O bandido que sabia latim) e Torquato Neto (Pra mim chega) – optou por contar a história enfatizando o empreendedorismo e o trabalho duro que foram em grande parte responsáveis, geração após geração, pelo êxito da dinastia familiar que fundou um verdadeiro império: hoje suas mais de 200 salas de exibição, espalhadas por 14 cidades, fazem do Grupo a maior empresa nacional do setor de exibição – a segunda em termos absolutos, atrás da rede Cinemark; juntas, as duas detêm 25% do parque exibidor nacional, estimado em pouco mais de 2.000 salas (pouco, se comparado às mais de 3.500 salas, com muito mais poltronas, dos anos 70).

Com um encarte de mais de 50 fotografias de época (incluindo a imagem ao lado, que mostra Ribeiro, Ribeiro Jr e Ribeiro Neto nos anos 50), O Rei do Cinema é rico em episódios curiosos e reveladores sobre o itinerário dos líderes da empresa exibidora e seus temperamentos, estilos e estratégias comerciais, desde o marco inaugural: a inauguração, pelo patriarca da família – que, aliás, não gostava de cinema, e sim de fazer bons negócios – do Cine Majestic-Palace (mais tarde destruído por um incêndio) em Fortaleza, em 1917. Como narrativa de uma dinastia de sucesso, é um livro informativo e bem encadeado. Mas faltou articular essa trajetória de louvável empreendedorismo com a dificuldade histórica de nosso cinema se estabelecer como uma indústria auto-sustentada a longo prazo – em vez de atividade ciclotímica, marcada pela alternância ininterrupta de surtos de euforia e crises de depressão, e permanentemente dependente da ajuda do Estado.

Um exemplo ilustrativo: em 1947, Luiz Severiano Ribeiro Jr. já era dono de uma cadeia de salas de exibição, de uma empresa de distribuição e de um laboratório para revelação e processamento de filmes. No mesmo ano, ele se tornou sócio majoritário da Atlântida, fundada em 1941 e então no auge da produção das chanchadas e comédias musicais de grande apelo popular. Consolidou assim uma verticalização total da cadeia produtiva do cinema, dominando a produção, a distribuição e a exibição dos filmes (além de atividades laterais, como revelação, publicidade), asfixiando qualquer possibilidade de concorrência. Toninho não aprofunda a análise das críticas feitas a essa estratégia agressiva, nem entra no tema da ruptura entre Ribeiro Jr e Moacyr Fenelon, o fundador da Atlântida, que deixou a produtora frustrado com seus novos rumos. Li que Toninho está escrevendo outro livro, sobre a Atlântida: será uma boa oportunidade de desenvolver esses tópicos.

trecho-severiano.jpgExatamente na mesma época, a questão da verticalização e do truste era tema de acirrado debate nos Estados Unidos, onde, 1948, foi dado um passo histórico para combater a concentração do mercado: pelo bem da livre concorrência, a Paramount foi obrigada pelo governo americano a abrir mão de um dos elos da cadeia produtiva (justamente a exibição), num processo que ficou famoso. Ou seja, enquanto lá se tomavam medidas para estimular uma saudável pluralidade (o que rapidamente se refletiu na multiplicação de players em todos os elos da cadeia produtiva), no Brasil ao contrário, o modelo concentrador ganhava força.

É bem verdade que o ciclo da chanchada continuou forte, sendo um dos raros períodos de êxito comercial prolongado do cinema brasileiro, com grandes sucessos populares dirigidos por Carlos Manga e Watson Macedo e estrelados por Oscarito, Grande Otelo, Cyll Farney, José Lewgoy etc. Basta dizer que O homem do Sputnik foi visto por 15 milhões de pessoas em 1959, quando o Brasil tinha 60 milhões de habitantes. Mas o gênero foi explorado até a exaustão, sem uma estratégia de fortalecimento da indústria nacional.

Pouco antes, em 1946, o Decreto 20.943, do presidente Gaspar Dutra  determinara a obrigatoriedade de cada sala exibir ao menos três filmes brasileiros por ano – a velha “cota de tela”, que até hoje gera polêmicas no meio cinematográfico brasileiro. Ribeiro Jr. tinha parcerias e interesses comuns com as distribuidoras americanas (que até hoje dominam o nosso mercado: as chamadas majors), das quais exibia os filmes com público certo e lucro garantido, sem precisar se preocupar com as dores de cabeça da produção. O que se depreende é que a compra da Atlântida visou ao cumprimento econômico da cota de tela (já que a empresa exibia os filmes que ela própria produzia) – algo perfeitamente legítimo do ponto de vista dos negócios, mas aquém do que poderia ter sido feito em termos de estratégia para o desenvolvimento a longo prazo da indústria do cinema nacional, que a tornasse capaz de resistir à poderosa invasão americana.

Tanto foi assim que, segundo levantamento de pesquisadores como João Luiz Vieira, a produção da Atlântida na gestão de Ribeiro (1947-1962) foi de 51 filmes, ou seja, a conta certa para atender à reserva do mercado (à qual o empresário aliás se opunha).  Some-se a isso o fato de que eram produções quase artesanais, com equipes técnicas reduzidas, trabalhando em condições precárias e improvisadas.

atlantida.jpgO visionário Glauber Rocha escreveu que Ribeiro Jr. “is the great artist, o único produtor roliudiano do Brasil, herdeiro de cadeias de cinema e outras fortunas” (Revolução do Cinema Novo, Cosac Naify, 500 pgs. R$69). Já Stanislaw Ponte Preta acusou o empresário de querer transformar o cinema numa indústria. Is dois estavam certos, e não há nenhumproblema nisso– desde que seja uma indústria auto-sustentada e que leve em conta o papel estratégico do audiovisual na cultura brasileira. Hoje o filme nacional ocupa apenas 12% do mercado (repetindo a comparação: já ocupou 35%, nos anos 70). Muitos filmes são produzidos e não são lançados, ou são mal lançados – não por incompetência de nossos cineastas, cujo indiscutível valor é atestado pelo êxito de produções recentes em festivais internacionais, mas porque razões históricas e culturais criaram gargalos, na distribuição e na exibição, difíceis de sanar (e que não se resolverão sozinhos, sem uma política pública mais assertiva na área do audiovisual).

Uma lição que fica da leitura de O rei do cinema: o cinema brasileiro não deve ser tratado apenas como negócio, embora evidentemente seja também um negócio. Ele só será realmente forte quando houver uma sinergia entre produção, distribuição e exibição fundada na idéia do desenvolvimento sustentado. Nesse sentido, o papel do Estado não deve se limitar ao fomento indireto concentrado na produção (ou seja, na oferta de filmes), via leis de incentivo (que transferem para os departamentos de marketing da iniciativa privada decisões estratégicas sobre que projetos apoiar, com dinheiro de renúncia fiscal): além da necessária regulação entre os diferentes elos da cadeia audiovisual, é preciso pensar em políticas que fomentem a demanda, isto é, que formem público. Neste processo, a contribuição das redes exibidoras, como o Grupo Severiano Ribeiro, no debate sobre os rumos a tomar é fundamental.

Também seria útil lemnrar a recomendação feita pelo próprio Luiz Severiano Ribeiro Jr.: “Um grande incentivo ao cinema brasileiro seria a eliminação drástica e impiedosa de aproveitadores e incompetentes – o joio pernicioso que macula a nossa seara cinematográfica”.

LEIA TAMBÉM, SOBRE O CINEMA BRASILEIRO:

capa-cinema.jpgEstado e cinema no Brasil, de Anita Simmis (Annablume, 312 pgs. R$40): Já considerado um ensaio de referência, este livro investiga, em nova edição, os motivos que impediram o desenvolvimento de uma produção cinematográfica estável no Brasil, até 1966. Com ênfase nos aspectos políticos e institucionais da questão, mas também levando em conta as transformações tecnológicas da produção e difusão da imagem, Anita Simis mostra as virtudes e os vícios da relação entre Estado e Cinema no Brasil, tanto em períodos democráticos quanto autoritários. Em diferentes momentos o cinema cumpriu um papel educativo, cultural e de propaganda oficial, mas sempre careceu de uma política pública eficiente voltada para a sua industrialização.

capa-cinema-2.jpgCinema brasileiro hoje, de Pedro Butcher (Publifolha, 120 pgs. R$17,90): Partindo de uma análise objetiva da chamada “Retomada”, o crítico e jornalista Pedro Butcher apresenta um panorama breve mas abrangente da produção recente, incluindo uma análise da cambiente relação entre cinema e televisão e dos obstáculos para o êxito dos filmes independentes. Por fim, explica o sucesso de filmes como Central do Brasil, de Walter Salles, e Carandiru, de Hector Babenco, que mostraram um Brasil urbano e violento, bem como a importância que tiveram na formação de novos cineastas – e os dilemas políticos, econômicos e estéticos que eles precisam enfrentar.

capa-cinema-4.jpgCinema brasileiro: Das origens à Retomada, de Sidney Ferreira Leite: Análise histórica da indústria cinematográfica, dos primórdios até o ‘cinema da Retomada’, nos anos 1990 – passando pelos ciclos regionais, pela era dos estúdios, pelo Cinema Novo e o período da ditadura militar. É uma história rica em dramas, comédias e aventuras, como os filmes que o nosso cinema produziu. Entender o lugar desta produção na cultura brasileira e quais são os obstáculos para a consolidação de uma indústria é a contribuição que Sidney busca oferecer. 

Entrevista: Flávio Moreira da Costa

sex, 16/01/09
por Luciano Trigo |
categoria Todas

O escritor fala sobre o romance Alma-de-gato e analisa a situação da literatura brasileira  flavio-moreira.jpgcapa-flavio.jpg

Desde o início dos anos 70, Flávio Moreira da Costa vem tocando sua carreira literária em duas frentes: como escritor, sua estréia foi em 1971, com O desastronauta. Como organizador de antologias, sua primeira obra foi uma Antologia de contos gaúchos, de 1970. São quase quatro décadas de produção contínua, agora enriquecida por um novo romance, Alma-de-gato (Agir, 355 pgs. R$44,90) – trata-se, na verdade, do terceiro volume de uma trilogia protagonizada pelo personagem João do Silêncio.  João vive em Aldara, país imaginário que guarda estranhas semelhanças com a realidade brasileira – e, ao contrário de muitos escritores que publicam mas não escrevem, ele escreve mas não publica.

G1: “Todo romance que se preza parte do zero”, você escreve… 

FLÁVIO MOREIRA DA COSTA: Não é minha a frase: é do narrador. Mas acho que concordo com ele. Criar, e isso as crianças sabem intuitivamente, é fazer com que exista alguma coisa que não existia antes. Miles Davis, pouco antes de começar a tocar com seu grupo, às vezes dizia: “Agora toquem tudo o que vocês não sabem!” Para escrever um romance como Alma-de-gato precisei tocar tudo o que não sabia, desaprender o que sabia. Seria sido mais fácil tocar o que já sabia, ou seja, escrever um romance que, no fundo, já tivesse sido escrito antes. Mas o ficcionista é um trapezista, e resolvi dispensar a cama elástica lá embaixo. Aprendi a “partir do zero” com Miles Davis e o jazz, mais do que com Borges, que diz que a literatura não nasce da realidade, mas da própria literatura.

G1: Realmente a imaginação corre solta, ignorando convenções e fronteiras narrativas.

FLÁVIO: Cabe tudo no romance de hoje – que, para uso caseiro, chamo de pós-romance. Não ignoro convenções, embora tenha tendência a desafiá-las; nem fronteiras narrativas, que devem ser somadas. Aprendi isso na infância: morava em Livramento, Brasil, atravessava a praça, e passava para Rivera, Uruguai, para ir ao cinema ou tomar sorvete.  Ninguém me pedia passaporte, nem classificava os dois países e as duas línguas, que aliás se misturavam.

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G1: Quem é o personagem João do Silêncio? É autobiográfico?

FLÁVIO: João do Silêncio é um escritor invisível, tido como desaparecido. Ao contrário dos outros, ele escreve, escreve e nunca publica. Escrevi a biografia de um personagem inexistente. Ele nasceu em Livramento, capital imaginária de um país chamado Aldara, e se perdeu pelo mundo, mas teria sido na França que encontrei dados, pistas e textos dele. É um filho da diáspora dos anos 60 com a globalização dos anos 80, 90. Autobiográfico? Talvez no sentido da famosa frase de Flaubert: “Madame Bovary c’est moi.” Todo romance é autobiográfico. É e não é.

G1: Como você enxerga a situação da literatura brasileira hoje?

FLÁVIO: Germinando alguma coisa, como acontece em qualquer época. É a lei natural. Há coisas boas, ruins e medíocres. Literatura não se faz por grupos, e as tendências gerais devem ser evitadas. Feliz ou infelizmente, o escritor está sozinho – na hora de criar, pelo menos. A criação é o reino da liberdade, cada autor precisa se situar. Não me identifico com aqueles que acham que a literatura foi inventada por John Fante ou Bukowski, ou que acham que ter influências de Clarice e Rubem Fonseca seja inevitável, como disse uma dessas autoras “novas”. Pobre do escritor que tem influência de uma nota só. Outra coisa me intriga: a “literatura de periferia” é boa porque é literatura ou porque é de periferia? Há ainda os neo-neo realistas (Flaubert, Stendhal ou Eça são melhores), ou neo-neo-naturalistas (Zola é melhor). É preciso procurar voz própria, mesmo que essa voz seja pouca e rouca, destoante. E isso leva tempo.

G1: Com que escritores você dialoga?

FLÁVIO: Minhas descobertas de leitura, ainda na adolescência, me ajudam até hoje. Não cheguei a ler Monteiro Lobato, cai direto em autores como Camus, Machado, Pessoa e Sá-Carneiro, Alencar e Raul Pompéia, André Gide, Campos de Carvalho, Dostoievski, Hawthorne, Hemingway, Salinger, Kerouac. E poetas, que foram muitos. Com eles todos dialogo até hoje. E com os outros que foram aparecendo no meio do caminho, como Borges e os latino-americanos, nos anos 60.

G1: Você já vive há décadas exclusivamente da literatura. O que pensa da profissionalização do escritor? E da situação do mercado editorial brasileiro? Está evoluindo?

FLÁVIO: No meu caso, foi fundamental. Para quem escreve um livro aqui e outro ali, por “falta de tempo” ou para manter a “pureza” do amador, não faria diferença. O nosso mercado editorial está evoluindo, sim, apesar da presença de velhas mentalidades. O problema mais sério é o próprio mercado, num pais de semi-letrados. Há também uma  excessiva dependência do mercado externo, das agências, nas escolhas editoriais.

G1: Você já organizou mais de 20 antologias. Fale sobre seus critérios de escolha. Os temas estão acabando?

FLÁVIO: Foram mais de 50 anos lendo contos, em vários idiomas, e escrevendo-os, este é meu ponto de partida. O critério é o da qualidade e adequação ao tema da antologia. Muito trabalho e certa intuição.Não escolher o contista, mas o conto. E sugiro aos leitores que desconfiem de antologias sem assinatura. Pode ser caça-níqueis, feito às pressas. Não acredito que os temas estejam acabando, porque eles podem ser desdobrados. Por exemplo: o amor tem como subtemas ciúme, separações etc. O que pode acabar, no meu caso, é a paciência de enfrentar tantos problemas que nada tem a ver com os temas e a literatura. É uma corrida de salto de obstáculos. Ainda bem que a maioria dos autores entende que uma antologia é um fato cultural, antes de ser comercial. É um agente formador de leitores.

G1: O que acha da crítica praticada na grande imprensa?

FLÁVIO: Há um problema de pauta, sempre vinculada às grandes editoras ou a repercussão dos autores no exterior. Falta sacação e descoberta.

G1: Você já declarou que não gostava de prêmios literários, até começar a ganhá-los. Qual a importância dos prêmios? Eles estão fomentando uma nova produção na literatura brasileira?

FLÁVIO: Os prêmios dão mais visibilidade ao livro, dizem, mas precisam ser mais sólidos e sérios. Os prêmios entre nós aparecem e desaparecem, sem deixar rastros. Por outro lado, novas produções não devem esperar por prêmios e reconhecimentos. Isso poderá ser, ou não, conseqüência.

G1: Que autores jovens você recomenda?

FLÁVIO: Já respondi essa pergunta em outras ocasiões. Seria mais político da minha parte citar nomes, mas hoje acho que há muito blábláblá e paternalismo em relação a autores “jovens” e “novos”. Juntem-se a isso as facilidades de publicação, os blogs, e o que seria estímulo acaba sendo um desserviço, porque muitas “promessas” ficam no primeiro ou segundo livro e acabam não se cumprindo. Não consigo levar mais em conta critérios cronológicos, baseado em data de nascimento do autor. O único escritor “jovem” que releio é Rimbaud, que escreveu até seus 17 anos. O critério não deve ser de idade, mas de qualidade e representatividade da obra. Se expressar artística ou literariamente não custa barato: é o empenho de uma vida. Além de talento, é preciso muita leitura e, principalmente em prosa, muita vivência. Graciliano começou a publicar romances depois dos 40 anos. Alguns dos melhores romances dos grandes autores foram escritos no que se chama hoje terceira idade, e isso não é à toa. Então chegamos aqui a um paradoxo: os autores jovens que eu recomendo são os velhos autores. Os de sempre.

LEIA TAMBÉM, do mesmo autor:

flaciocapa1.jpgflaviocapa2.jpgflaviocapa3.jpgflaviocapa7.jpgflaviocapa4.jpgflaviocapa5.jpgflaviocapa6.jpgflaviocapa8.jpg   

Uma dupla fantástica

seg, 12/01/09
por Luciano Trigo |
categoria Literatura, Todas

Borges e Bioy Casares fundem estilos em livros escritos a dois

borges_por_bioy1.jpgPoucas parcerias na história da literatura foram tão ricas quanto a que uniu os argentinos Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares. A sinergia entre os dois amigos era tão intensa que Borges, numa entrevista de 1964, declarou não ser capaz de distinguir o que cabia a cada um, nos textos que assinaram juntos: criavam, por assim dizer, um terceiro escritor, com estilo próprio. Esse vigoroso diálogo literário se estendeu ao longo de décadas, não se limitando aos livros que publicaram sob os pseudônimos H.Bustos Domecq e B.Suárez Lynch, estendendo-se a traduções, artigos antologias de contos fantásticos e policiais e até dois roteiros de cinema. Após a recente publicação do maravilhoso Seis problemas para Don Isidro Parodi, a editora Globo acaba de lançar a novela Um modelo para a morte (assinada por Suárez Lynch com prefácio de Bustos Domecq!), acompanhada dos roteiros Os suburbanos e O paraiso dos crentes.  São textos publicados originalmente em tiragens quase confidenciais, que só circularam entre amigos, mas neles estão presentes a ironia e a inventividade que caracteriza toda a obra dos dois escritores.

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Quando se conheceram, nos anos 30, Borges tinha pouco mais de 30 anos, e Bioy 17. Logo começaram a se reunir com freqüência, para discutir textos e idéias literárias. Em seu ensaio autobiográfico, Borges afirma que o início dessa relação foi acontecimento decisivo em sua vida: “Ao se opor ao meu gosto pelo patético, pelo sentencioso e peço barroco, Bioy me fez sentir que a discrição e o comedimento são mais convenientes.”

Desde então eles  se contagiaram mutuamente, sem que houvesse hierarquia entre os dois. Borges, no prefácio a A invenção de Morel, de Bioy, classifica o livro como um dos mais perfeitos da história da literatura; Bioy, embora não tenha recebido o reconhecimento público que merecia, não se deixou esmagar pela fama mítica de Borges, elaborando também uma obra altamente pessoal. Esta voltou a ser publicada no Brasil pela editora Cosac Naify, que já lançou três livros do autor – além de A invenção de Morel, Histórias fantásticas e O sonho dos heróis. Borges, por sua vez, está sendo reeditado com capricho pela Companhia das Letras, que já lançou os clássicos O Aleph e Ficções, entre outros títulos.

Por terem sido escritos meio que de brincadeira, os livros escritos a dois, sob pseudônimo,  nunca receberam a devida atenção da crítica. Uma grande injustiça, pois estão à altura dos melhores textos de Borges e Bioy. Em Seis problemas… (192 pgs. R$30), preso por um crime que não cometeu, o ex-barbeiro Isidro Parodi se torna um detetive incomum: ele soluciona crimes na cela 273 da penitenciária, onde recebe seus clientes – que vão de figuras do grand monde portenho a tipos da malandragem local. Nesse observatório privilegiado do mundo e das paixões humanas, ele passa os dias  tomando mate e lendo jornais: vivendo, por assim dizer, fora do tempo, distante das vaidades mundanas, ele se mantém neutro o bastante para enxxergar o óbvio em casos aparentemente insolúveis. São seis relatos em que Borges e Bioy parodiam, ao mesmo tempo, a literatura policial e o ambiente literário argentino da época, cheio de intelectuais pedantes e círculos oficiais. 

capa-bioy.jpgcapa-borges-4.jpgJá em Um modelo para a morte (240  pgs. R$36), os autores retomam o personagem Isidro Parodi numa história que combina a criatividade de Borges com o humor cerebral de Bioy Casares: num jogo interminável de citações, eles colocam em questão as noções de autoria e gênero. Tudo isso sem deixar de oferecer ao leitor entretenimento inteligente, que é o que se espera, afinal de contas, de boas narrativas policiais.

LEIA TAMBÉM:

capa-borges-1.jpgJorge Luis Borges – Um escritor na periferia, de Beatriz Sarlo. Iluminuras, 160 pgs. R$35

Peça fundamental na fortuna crítica sobre o escritor argentino, Jorge Luis Borges: um escritor na periferia faz um desafio polêmico à visão corrente  de Borges como um fabulista soberano, que nada deve à história nacional e à tradição literária argentinas. Beatriz Sarlo resgata o diálogo do autor portenho com os textos e os autores a partir dos quais ele produziu suas rupturas estéticas e suas polêmicas literárias: Isto é: Dante, Cervantes, Kafka e as Mil e uma noites, mas também Sarmiento, Evaristo Carriego, Macedonio Fernández e o Martín Fierro. O resultado é o retrato perspicaz de um escritor que, longe de negá-la, converteu sua condição periférica – argentina e latino-americana – numa situação privilegiada, da qual perturbou as fronteiras entre os gêneros, inverteu os fluxos da história literária e subverteu as noções de local e universal, de centro e periferia.

Entrevista: Moacyr Scliar

qui, 08/01/09
por Luciano Trigo |
categoria Literatura, Todas

O escritor gaúcho apresenta seu novo romance, Manual da paixão solitária, e dá uma aula sobre humor judaicoscliar.jpgscliar-capa.jpg                                                                                     Inspirado no pequeno e enigmático relato do capítulo 38 do Livro do Gênesis, do Antigo Testamento, Manual da paixão solitária é o novo romance do escritor gaúcho Moacyr Scliar, que retoma assim a fonte de outros dois livros seus: A Mulher que Escreveu a Bíblia e Os Vendilhões do Templo. Agora ele reconta o episódio em que o patriarca Judá tenta dar continuidade à sua linhagem, numa história sobre os sentimentos básicos do ser humano. Num congresso de estudos bíblicos, um famoso professor e sua rival, uma antiga aluna, evocam as figuras do jovem Shelá e da mulher por quem ele está apaixonado, Tamar. Os dois narram, de pontos de vista distintos, uma intriga passional que envolve quatro homens e uma mulher, às voltas com costumes ancestrais - que até hoje governam parte da população do planeta e são fonte de conflitos e tragédias, como a que ora se abate no Oriente Médio. O primeiro filho de Judá, Er, casa-se com Tamar, mas, como não a engravida, é castigado por Deus com a morte. Segundo a tradição, compete ao segundo filho, Onan, assumir seu papel, mas ele se recusa a cumprir sua missão, por considerá-la humilhante, optando por derramar seu sêmen sobre a terra, para que a mulher não conceba herdeiros – e Deus também o pune com a morte. Resta Shelá, que o pai não quer entregar a Tamar por temer que o rapaz tenha o mesmo destino dos irmãos. Desqualificada e privada de filhos, Tamar recorre a um ardil que se tornaria lendário.   G1: Seu romance Manual da Paixão Solitária recria a história do patriarca Judá e seus filhos. Por que você escolheu especificamente esse episódio do Antigo Testamento?MOACYR SCLIAR: Por causa do complexo jogo de emoções – estas, por sua vez, condicionadas pelo cenário histórico e cultural – que este capítulo envolve. São personagens impressionantes, muito fortes, mas, como costuma acontecer na narrativa bíblica, apresentados de maneira sintética, esquemática, o que constitui um desafio para o escritor de ficção. Completar as lacunas, ampliar a trama ficcional, é uma tarefa que só posso classificar como apaixonante, tão apaixonante quanto a própria narrativa.

G1: O que o romance acrescenta à história? E o que a história bíblica pode acrescentar à reflexão sobre questões atuais?

SCLIAR: O romance acrescenta várias coisas ao capítulo do Gênesis: uma leitura psicológica dos personagens, coisa que o narrador bíblico só raramente faz, uma ampliação da própria trama, mediante detalhes que faltam no texto bíblico. Por exemplo: o primeiro filho do patriarca morre depois de SE casar com Tamar. A Bíblia diz apenas que foi a vontade de Deus. O romance, porém, vai mais fundo neste personagem e busca, em seu drama pessoal, a causa dessa morte. Um ponto importante: como a narrativa está a cargo de personagens atuais, um pesquisador da Bíblia e sua ex-aluna, que durante muito tempo o odiou, pode-se usar a linguagem corrente, o que serve a outro propósito: mostrar que, independente dos costumes de época, o drama vivido pelo patriarca, por seus filhos e por Tamar, poderia ocorrer nos dias de hoje.

G1: A personagem Tamar é uma mulher ardilosa e misteriosa, como muitas figuras femininas da Bíblia. Fale sobre o seu papel na trama do romance e sobre a imagem da mulher no Antigo Testamento. 

SCLIAR: Apesar de ser o documento de uma sociedade patriarcal, a Bíblia dá muita importância às mulheres (as matriarcas, por exemplo). Há histórias comovedoras, como aquela da amizade entre Rute e Naomi. Na minha história, Tamar é uma figura complexa, que pode ser vista como uma mulher oprimida, lutando por sua dignidade, ou como uma astuciosa defendendo seus interesses. Mas ela não é a primeira a fazer uso da astúcia: Rebeca engana o marido Isaac para assegurar a seu filho Jacó o direito de primogenitura. O Oriente Médio era um lugar pobre, onde a luta pela vida era difícil. A Astúcia era uma arma que precisava ser usada, e tanto homens como mulheres a ela recorriam.

G1: Qual a importância do humor no romance? Normalmente o Antigo Testamento é associado a uma atmosfera grave e pesada…

SCLIAR: De fato, a Bíblia não é exatamente uma narrativa bem-humorada. A palavra “riso” aparece 29 vezes no Antigo Testamento, mas em 13 vezes com conotação negativa,  riso designando zombaria. O humor que aparece no romance, e que é parte do genoma do autor, é minha contribuição pessoal. 

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G1: Aliás, você escreveu um livro sobre o humor judaico. O que caracteriza esse humor, em linhas gerais?

SCLIAR: O humor judaico é um humor melancólico, filosófico, contido; um humor  em que o humorista ri de si próprio,  um humor que funciona, para um grupo humano freqüentemente perseguido, humilhado e às vezes ameaçado de extermínio, como defesa contra o desespero. Este humor judaico é relativamente recente, datando de meados do século 19, e ligado a um cenário particular: as aldeias judaicas da Europa Oriental. No império tzarista os judeus estavam confinados a pequenas e miseráveis aldeias. Não podiam ter terras, não podiam exercer muitas profissões; sobreviviam como podiam, através de atividades humildes: leiteiros, alfaiates, pequenos agricultores. O humor judaico nasceu como uma resposta às duras condições de vida, às perseguições, aos pogroms. Tem duas características: primeiro, é um humor que neutraliza uma realidade trágica, tornando-a cômica, e portanto menos ameaçadora: funciona como mecanismo de defesa. Neste sentido é um “humor do absurdo”, intelectualizado; segundo, ele procura preservar a coesão grupal, mostrando o que é especial em “nós”, em contraposição a “eles”, os não-judeus. Isso explica por que uma anedota sobre judeus, inventada por judeus, mas contada por não-judeus, não raro é considerada anti-semita. O humor judaico é um humor que induz à reflexão. Não é humor escrachado, é um humor reservado; não provoca o riso fácil, a gargalhada e sim um pensativo sorriso. Com a emigração maciça de judeus da Europa Oriental para os Estados Unidos o humor judaico foi transplantado, mas para solo fértil. Os humoristas judeus, populares não só na comunidade judaica como entre o público em geral, tornaram-se profissionais, muitos deles famosos por seus livros, artigos jornalísticos, peças teatrais, filmes ou cartuns:  aí está Woody Allen para comprová-lo. Além disso, o humor judaico criou personagens característicos, como é o caso da mãe judia, uma figura superprotetora e sobretudo alimentadora. Tinha de sê-lo: a grande ameaça então era a tuberculose e a grande proteção contra a tuberculose era a comida. Mas a situação do judaísmo mudou. Já não se trata de comunidades pobres, sujeitas à perseguição ou ao extermínio. Com isso desapareceram os personagens típicos do humor judaico. As mães judias já não alimentadoras – ao contrário, estão atentas para a obesidade – e, graças à psicanálise, entendem a relação com os filhos e com as próprias mães. O humor judaico foi mudando. As comédias dos irmãos Marx, por exemplo, quase nada tem a ver com judaísmo. E o mesmo se pode dizer do  humor de Sacha Baron Cohen. Isso tudo evidencia uma mudança de cenário cultural. É ruim para o humor, esta mudança?  Talvez. Mas melhor, muito melhor, para as pessoas.

G1: Quando se pensa na Bíblia como fonte para a literatura, a primeira obra que vem à mente é a de Thomas Mann sobre José, aliás irmão de Judá. Que outros autores e obras relacionados com a Bíblia você considera relevantes?

SCLIAR: Li a obra de Mann, mas fui muito mais influenciado pelas parábolas de Franz Kafka, que deu a esse gênero uma dimensão inesperada.

G1: Freud também foi buscar no Antigo Testamento inspiração para diversos textos e idéias. Em que medida a psicanálise influencia a sua literatura?

SCLIAR: De fato, Freud dedica boa parte de O chiste e sua relação com o inconsciente  à análise de historietas com personagens judeus. Diz o criador da psicanálise: “Situação especialmente favorável para o chiste aparece quando a crítica se dirige contra a própria pessoa como membro de um grupo. Esta condição de autocrítica explica que, da cultura popular judaica tenha resultado um grande número de excelentes chistes”. Como muitos de minha geração (e também pelo fato de ser formado em Medicina) passei pelo divã de vários analistas, coisa que me beneficiou muito, sobretudo porque aprendi a não
transformar a ficção em “acting out”, em válvula de escape para rancores e frustrações, coisa que nunca dá certo.

G1: Você é filho de imigrantes judeus. Em que sentido(s) o judaísmo afeta a sua literatura, ou determina os rumos da sua ficção, sua relação com os leitores? Fale sobre a sua relação com identidade judaica. Como analisa a perda gradativa das raízes e tradições judaicas, à medida que as gerações vão se sucedendo?

SCLIAR: Vejo o judaísmo como uma magnífica cultura, consolidada através dos milênios e das vivências nos mais diversos cenários, o que lhe dá uma riqueza incomum, expressa sobretudo no texto: desde os tempos bíblicos o judaísmo cultiva uma verdadeira veneração pela palavra escrita – não é de admirar que tantos escritores tenham origem judaica. Agora, de fato, o judaísmo mudou, e isSo é inevitável. Não sou dos que ficam lamentando o passado, aquela coisa do “antigamente era melhor”. Mudou porque tinha de mudar, e novos caminhos sem dúvida surgirão desta mudança.

G1: Qual é sua relação com a religião e com Deus?  

 

SCLIAR: Não sou religioso, não sou crente. Respeito as pessoas que crêem, mas está bem claro para mim que é outro tipo de vivência.

O pensamento vivo de Andy Warhol

dom, 04/01/09
por Luciano Trigo |

Artista pop fala sobre amor, dinheiro, fama e sexo em livro revelador

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Os dois artistas mais importantes do século 20 foram Marcel Duchamp e Andy Warhol. A afirmação pode parecer chocante para quem acompanhou  meus textos sobre arte contemporânea em 2007/2008 - que em breve estarão reunidos e ampliados no livro A grande feira. De fato, estritamente falando, o talento artístico dos dois era bastante limitado, se comparado, por exemplo, ao de Picasso, Matisse etc. Mas a importância histórica inegável de Duchamp e Warhol está justamente aí: ambos transformaram o significado da arte, subvertendo os seus valores (como autoria, originalidade, técnica, autenticidade, vocação) e abrindo caminho para práticas ainda hoje dominantes no cenário artístico. A cada geração, a sua influência aumenta – e modifica, para o bem e para o mal, o status simbólico da arte no mundo e na vida das pessoas.

Se Duchamp foi decisivo para o salto conceitual da arte, que passou a dispensar suportes e até mesmo a “mão” do artista (o que teve desdobramentos infinitos), Andy Warhol (1928-1987), por sua vez, revolucionou a relação entre arte e capitalismo: se a arte sempre foi também mercado, a partir dele passou a ser principalmente mercado: o êxito (não apenas comercial, mas também midiático, pois o artista deve ser uma estrela) se tornou o critério exclusivo da qualidade da obra, não sua conseqüência eventual. Isso explica, aliás, por que a crítica de arte perdeu importância: ela não tem nada a acrescentar a uma relação que já está dada, é tão inútil quanto buscar um sentido estético no sobe-e-desce das ações da Bolsade Valores.

Nesse sentido, é altamente esclarecedora a leitura de A filosofia de Andy Warhol – De A a B e de volta ao A (Cobogó, 272 pgs. R$43). Embora Warhol tenha assinado a obra, feita de encomenda em 1975, ela não foi escrita de próprio punho, mas pelos ghost writers Bob Colacello e Pat Hackett (a única coisa que o artista escreveu de próprio punho foi sua assinatura no contrato com a editora: a autoria novamente em questão… Por outro lado, Warhol também apenas assinava as serigrafias autênticas que sua equipe produzia). Colacello e Hackett deram forma a reflexões do artista sobre os mais variados assuntos, algumas delas bastante citadas, com um tom de depoimento confessional. Mesmo nos trechos aparentemente mais tolos e superficiais é possível enxergar a coerência de uma visão estratégica: vida e arte foram para Andy Warhol uma fabricação, estudada em seus mínimos detalhes e inserida numa lógica de indústria e espetáculo. Ele inventou um personagem para si próprio – e desapareceu dentro dele.

Formado no mundo da propaganda, Andy Warhol se transformou numa marca, numa idéia incorpórea. É claro que isso tem a ver com um processo de americanização da forma de se fazer e pensar a arte, por um lado, e com a crescente espetacularização da vida promovida pelos meios de comunicação, que tornam a imagem mais importante que a coisa em si, e a realidade uma obra de ficção em tempo real. Não foi à toa que ele trocou seu psiquiatra por uma televisão. Quem enxerga em sua obra uma crítica à sociedade de consumo não entendeu nada.

Seguem alguns trechos reveladores:

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