Um livro que é a cara do Rio (?)

dom, 23/12/07
por Luciano Trigo |
categoria Rio

Presidiárias com calça de marcaDiz muito sobre nós, brasileiros, a badalação em torno do livro “Rio, Cidade Maravilhosa”, do fotógrafo americano Terry Richardson, conhecido como o “rei da pornografia fashion”. Estrelas de variada grandeza se dispuseram a aparecer ali, em meio a imagens de extremo mau gosto, endossando o trabalho de um artista que fez sua fama explorando a vulgaridade e reforçando
internacionalmente estereótipos sobre a cidade (lugar de contrastes, paraíso do sexo etc). Podem inventar o rótulo que quiser para atribuir um “coeficiente de arte” ao trabalho de Richardson (trash, kitsch etc), mas é difícil acreditar que algumas pessoas ali topassem fazer fotos assim se não houvesse o fator deslumbramento diante do projeto de um “artista badalado” encomendado por uma griffe sofisticada.

Veja a galeria de fotos do livro

“Rio, Cidade Maravilhosa” (que título original, não?) também traz paisagens da
cidade, gente feia e anônima e imagens-clichês sobre catadores de rua as
inevitáveis diferenças sociais (piscinão de Ramos versus Posto Nove, por
exemplo, se bem que os dois estão cada vez mais parecidos) etc. Tem Maracanã
e tem Favela da Rocinha. Tem até um grupo de presidiárias usando jeans da
Diesel (sabem quando elas vão ter uma calça Diesel na vida? Pois é. Enquanto
isso a marca explora internacionalmente a imagem delas: cada cópia da
fotografia era vendida numa exposição de Richardson em Hong Kong por 5 mil
dólares). Mas essas fotos não têm a menor importância, é claro: estão ali só
para dar um toque supostamente artístico-documental-sociológico ao livro,
que tem um vídeo promocional no Youtube (clique aqui para ver)

Entenderam? É o retrato do hedonismo carioca em sua forma mais cretina e
lugar-comum, ao som de samba, funk e bossa nova, bem ao gosto dos gringos
que andam de mãos dadas com garotas de programa no calçadão de Copacabana.
No final, o fotógrafo e sua equipe dão uma paradinha no trabalho exaustivo
para dar um mergulhinho na praia, que ninguém é de ferro.

Uma das pesonagens do livro, a atriz Thaila Ayala, caiu em si quando viu sua
foto (sem blusa, mordendo os lábios de um produtor de elenco) na primeira
página de um jornal popular. Através de seu assessor e empresário, se
declarou “profundamente arrependida”: “Não fui ao lançamento porque tenho
vergonha de fazer parte desse livro”, ela declarou. Mas Thaila foi exceção:
a maioria parece ter adorado o resultado. Luiza Brunet, por exemplo, que
aparece em nu frontal na página ao lado da filha Yasmin, também em nu
frontal, filosofou: “Terry é um cara polêmico. Suas fotos não passam em
branco. Ele tem um estilo agressivo de fotografar. Seu trabalho é outro
nível, é arte. Não foi uma foto estilo Playboy, foi uma foto feita para um
livro de arte. Terry tem um diferencial”. Houve, ainda, como sempre,
declarações do tipo “Não gosto de julgar, cada um faz o que quer” (que
também dizem muito sobre nós).

O próprio fotógrafo – que, aliás, completamente míope, só usa câmeras de
foco automático em seu trabalho – aparece nu em pelo menos três fotos. Numa
delas ele posa sorridente segurando um exemplar da Folha de S.Paulo onde se
lê: “Terry o Terrível”. Richardson declarou que este é seu melhor livro. Uma
pesquisa de imagens no Google basta para quem tiver a curiosidade de
conhecer a qualidade de seus outros trabalhos. Mas tirem as crianças da
frente do computador.

Ou então visitem o site oficial do fotógrafo (www.terryrichardson.com), onde
uma lojinha virtual vende camisetas e produtos de gosto duvidoso. Um link é
oferecido para quem quiser posar para Terry, com a mensagem:

Hello , if you are male or female and interested in posing Topless or Nude
for Terry Richardson please contact us by Email.
Please include your contact information , Phone number name and a photo if
possible. ( a small jpeg, it does not have to be nude ) .
You must be at least 18 years old and be able to provide a state issued ID
at the time of the photo shoot.
Thanks.
model@terryrichardson.com

Para quem ficou animado(a): no ano que vem Richardson volta ao Brasil, desta
vez para fazer um livro sobre São Paulo.

O roubo no Masp

sex, 21/12/07
por Luciano Trigo |

‘O lavrador de café’, de Portinari‘Retrato de Suzanne Bloch’, de PicassoQuando eu era criança, foi lançado um jogo chamado Leilão de Arte, com cartões que reproduziam telas de grandes artistas, a maioria delas pertencente ao acervo do Masp. Entre os quadros de que eu mais gostava – e para os quais fazia os lances mais altos, naturalmente, com meu dinheiro de mentirinha – estavam o Picasso e o Portinari que, em apenas três minutos, foram levados do maior museu da América Latina. Há outro crime por trás desse crime: o descaso de anos das autoridades com os acervos culturais. Nunca antes na história deste país a cultura valeu tão pouco.

As duas obras estão sendo avaliadas em R$ 120 milhões de reais, mas este é apenas um valor de referência: não estavam à venda, e não há dinheiro que pague seu desaparecimento. São peças únicas, insubstituíveis. Substituíveis, felizmente, são as pessoas a quem foi entregue a gestão de algumas instituições. Está mais do que na hora de se fazer uma devassa no Masp e na Fundação que organiza a Bienal de Arte de São Paulo, que estão devolvendo com episódios vergonhosos à população os volumosos recursos públicos repassados pelo Governo.

PS. Agora a roupa suja começa a aparecer. O Masp está em crise financeira, endividado até o pescoço, e, em maio passado, a energia foi cortada por falta de pagamento. Evidentemente, a crise também afetou a segurança. O museu não tem alarme. No dia do assalto, as luzes estavam apagadas para economizar energia. No escuro, o sistema de câmeras teve pouca utilidade. Os vigilantes do museu trabalham sem treinamento nem licença, sendo preparados apenas para orientar o público. Apesar de tudo isso, há 14 anos o Masp não muda de presidente. Falta de oposição dá nisso, nos museus como nos países. 

***

No post “Arte é o que se chama de arte?“, comecei a recapitulação de uma polêmica, na qual inadvertidamente me meti, sobre os rumos da arte contemporânea, e acabei não levando a novela adiante. Segue um resumo rápido dos capítulos que se seguiram.

Meus primeiros textos provocaram uma enxurrada de reações: centenas de interessados em arte e um bocado de artistas de manifestaram – a grande maioria endossando minhas idéias, mas também chegaram mensagens surpreendentemente agressivas e autoritárias. O que de certa forma me deu razão: este é um terreno em que as pessoas se aferram às opiniões de forma quase religiosa, transformando o debate num diálogo de surdos. Mesmo assim, essas reações me estimularam a continuar sistematizando algumas hipóteses
sobre os rumos da arte contemporânea.

Escrevi então sobre o escândalo como recurso de marketing:

“A característica mais aflitiva de boa parcela da arte contemporânea é ser inofensiva, anódina, fechada em si mesma, presa a modelos que fizeram sentido 50 anos atrás. Mas também existe uma vertente, bastante em voga, que procura se afirmar, justamente, ofendendo crenças religiosas e valores coletivos. É o caso das obras “Orientais barbudos criando o império da cruz”, de autoria da australiana Priscilla Bracks, que funde as imagens de Bin Laden e Jesus Cristo, e “O Quarto Segredo de Fátima”, de Luke Sullivan,
também australiano, uma estátua que mostra a Virgem Maria de burka. As duas provocaram consternação e protestos em seu país, o que, desnecessário dizer, atraiu a atenção da mídia e deu projeção internacional aos artistas.

No Rio, no ano passado, um “pênis-crucifixo”, da artista plástica Márcia X., causou tantos protestos que obrigou a direção do Centro Cultural Banco do Brasil a retirar a peça da exposição Erótica – Os sentidos da arte. O que, por sua vez, gerou protestos dos artistas contra a censura. No último caso, vale observar o seguinte: a peça foi retirada em função de milhares de correntistas do Banco do Brasil (entre os quais dezenas de empresas
poderosas) terem pressionado o banco – que, afinal de contas, custeou a exposição com dinheiro dos correntistas. Essa forma de pressão foi muito mais eloqüente que o barulho feito por vinte ou trinta artistas na porta do CCBB. Isto não é uma opinião, é um fato. Mas será que os artistas que protestaram contra a censura recusariam, no dia seguinte ao protesto, um patrocínio do banco? Acho que não. Mas isto não é um fato, é uma opinião.

Não estou tomando partido, apenas levantando questões. Pessoalmente, acho as três obras citadas infantis. Um adolescente revoltado poderia muito bem ter produzido o Bin Laden/Jesus, com auxílio de um programa banal de manipulação de imagens, ou ter dado vazão às suas fantasias eróticas, desenhando um pênis com o terço da tia, na intimidade de seu quarto. O que implica dizer o seguinte: o que dá status de arte a essas peças é exterior a elas, é o fato de serem referendadas por um sistema que segue regras de mercado, incluindo a lógica do marketing e a própria participação da mídia. Rendendo-se a esse
sistema, o artista pode pagar um preço alto demais: ao se desligar do diálogo com aquilo que o determina, social e culturalmente, o indivíduo criador abre mão também de qualquer relevância que não seja mercadológica.”

Ao mesmo tempo, a Folha de S.Paulo publico três (!) réplicas ao meu primeiro artigo. A primeira, do jornalista Marcos Augusto Gonçalves, comparava a minha posição à de Monteiro Lobato diante das telas de Anita Malfatti. Ora, Lobato reagiu, equivocadamente, é claro, a algo novo, enquanto eu estava questionando algo velho e esgotado. Na segunda, um curador fazia uma leitura tão torta e distorcida do meu texto que nem merece citação. Na terceira, a artista Débora Bolsoni reagia aos comentários de Ferreira Gullar, citados
por mim, com o argumento de que não eram 300, mas sim 7.000 maçãs que ela espalhara numa galeria (como se isso fizesse alguma diferença). Seguiu-se então minha tréplica:

“Idéias fora do tempo

LUCIANO TRIGO

A obra “One and Three Chairs”, do artista plástico americano Joseph Kosuth, é emblemática do movimento chamado Arte Conceitual. Ela consiste de uma cadeira, da fotografia da mesma cadeira e da ampliação fotográfica da definição do dicionário de uma cadeira. O artista propunha à audiência a questão: em qual das três está a verdadeira identidade da cadeira: na coisa em si, na representação ou na descrição verbal?

É uma obra intrigante, que traz para o território da arte questões associadas à linguagem e à comunicação. O problema é que, como os ready-made de Marcel Duchamp dos quais é herdeira, a Arte Conceitual é datada. Parte de seu sentido e valor não pode ser dissociada do ano (no caso de Kosuth, 1965) e do contexto de sua produção. Repetir esse tipo de proposta hoje é tão anacrônico quanto imitar a pintura acadêmica pré-impressionista.

Duchamp se interessava mais pela idéia do objeto artístico que pela sua execução e pelo produto final. Essa “arte como idéia” abriu caminhos inteiramente novos (nas primeiras décadas do século passado) para a experimentação. Mal comparando, Duchamp teve um impacto, nas artes plásticas, semelhante ao que a obra de James Joyce (não por acaso sua
contemporânea) teve na literatura. Também gerou, é verdade, muita empulhação e impostura.

A Arte Conceitual estabeleceu, entre outras premissas, que a arte se realiza numa idéia; que a matéria-prima da arte é a linguagem; que não existe separação entre arte e teoria da arte; que a atividade artística consiste na investigação sobre a natureza da própria arte; que a arte é uma forma de linguagem. Tudo muito interessante. Para a época. E mais interessante como teoria que por seus resultados. Só sobre a questão de a arte ser ou não uma linguagem existe uma bibliografia imensa (e inconclusiva), mais relevante para a semiótica que para a própria arte.

Sintomaticamente, Kosuth produziu uma vasta obra ensaística sobre teoria da arte e sobre o papel do artista na sociedade. Levou adiante um debate necessário sobre a relação entre a estética e a representação, radicalizando questões de linguagem propostas por Duchamp e, mais tarde, por René Magritte, que com seu famoso “Ceci n’est pas une pipe” (1928) introduziu um paradoxo lingüístico essencial ao desenvolvimento da Arte Conceitual.

Ora, o percurso que começa em Duchamp, passa por Magritte e atinge sua realização radical na Arte Conceitual dos anos 60 e 70 (este é um recorte, é claro que existem outros) é um dos capítulos mais fascinantes da arte do século 20. Mas é apenas um capítulo, que já foi escrito e virou História. E reduzir a arte à expressão de uma boa idéia (a tal “arte Caninha 51″ de que fala Ferreira Gullar) tem um preço: como uma boa piada, a boa idéia só tem graça a primeira vez.  Não fosse assim, a idéia das cadeiras de Kosuth poderia ser reproduzida ad infinitum, com outros objetos (aliás, ele chegou a repetir o modelo com uma marreta e uma capa de chuva, sem sucesso). Essas propostas deixaram de ser vanguarda há muito tempo. Insistir nelas 40 anos depois, num contexto cultural radicalmente diferente, é irrelevante. Mais uma vez, mal comparando, seria como se prevalecesse entre os escritores de hoje o compromisso com a experimentação lingüística de Joyce – que, com seus herdeiros, também constituiu um capítulo fascinante da literatura do século 20, mas que não representou, de forma alguma, a linha de chegada da
literatura. Graças a Deus isso não aconteceu, e a literatura seguiu caminhos plurais.

Imaginem, por exemplo, se toda poesia fosse concreta.

PS. Este espaço seria destinado a uma resposta ao jornalista Marcos Augusto
Gonçalves e ao sr. Moacir dos Anjos. Mas, como um e outro deram razão à
minha tese de que qualquer questionamento da arte contemporânea é recebido
com pedradas, preferi utilizá-lo para desenvolver novas idéias. Mesmo assim,
alguns esclarecimentos são necessários:

1) O título do meu primeiro artigo era “Será arte?”, citação de um poema do Ferreira Gullar, mas a Folha preferiu pinçar uma frase do texto – o que é uma prática jornalística comum, mas acabou atraindo atenção desmedida para um detalhe lateral. O que não muda o fato de que não afirmei, em momento algum, que todos os artistas são movidos pela busca da fama e de dinheiro, mas sim questionei o sucesso como critério de qualidade num sistema de arte mercantilizado.

2) A tentativa de desqualificação do outro é o recurso mais pobre de um debate. Em todas as respostas (já foram três) os articulistas omitem os pontos relevantes para me atribuir coisas que não escrevi e intenções que não tive. E evitam, sugestivamente, dar sua opinião sobre a orelha implantada no braço e o cachorro que morre de fome, duas obras de arte
citadas em meu artigo.

3) A reação ao meu artigo, fora das páginas da Ilustrada, foi muito mais plural. Recebi mensagens estimulantes de centenas de pessoas interessadas em arte e de diversos artistas, entre eles Adriana Varejão, Antonio Veronese e Julia Cseko, para só citar os mais conhecidos. Eles leram minhas idéias sem antolhos – e entendem que qualquer discussão sobre arte contemporânea, potencialmente infinita, só tem graça se houver diálogo, e não troca de ofensas.

4) Por fim, não pretendi generalizar, mas sim falar de uma tendência recorrente em galerias. Em 1961, Piero Manzoni defecou em 90 latinhas, assinadas e numeradas, e as vendeu a peso de ouro, batizando a obra de “Merda d’Artista”. Era um ataque frontal e um comentário irônico ao mercantilismo da arte e à idéia, moderna no mau sentido, de que não há limites para a arte, de que a arte está em toda parte, de que tudo é arte. Mais de 40 anos depois, parece que a mensagem não foi compreendida, e a arte se mercantilizou de vez, premiando com freqüência a mediocridade. E ai de quem apontar o dedo para isso.”

O poeta da vida moderna

qui, 20/12/07
por Luciano Trigo |
categoria Literatura

Charles BaudelaireEm meados do século XIX, Charles Baudelaire (1821-1867) publicou em revistas variadas seus “Pequenos poemas em prosa” (reunidos em livro em 1869), que introduziram uma original utilização da prosa na literatura francesa. Poeta interessado em refletir a vida moderna, para Baudelaire a poesia podia se exprimir através da prosa, já que o poema, como a obra de arte em geral, não se definiria pela sua forma, mas pelo efeito produzido. O que importava era que os textos suscitassem no leitor o sonho e o devaneio. Ao mesmo tempo, nesses poemas breves e estranhos, o autor deixa entrever a sua concepção da arte e do artista, da natureza do belo, do amor e da morte, da ambivalência feminina, da passagem do tempo. A solidão, a evasão, as janelas e os espelhos também são elementos recorrentes. Seguem traduções livres de três poemas:
 
O estrangeiro

- De quem gostas mais, homem enigmático, diz? Teu pai, tua mãe, tua irmã ou teu irmão?
- Não tenho pai, nem mãe, nem irmã, nem irmão.
- Teus amigos?
- Você se serve de uma palavra cujo sentido até hoje desconheço.
- Tua pátria?
- Ignoro em que latitude ela está situada.
- A beleza?
- Eu a amaria de boa vontade, deusa e imortal.
- O ouro?
- Odeio-o tanto quanto você odeia Deus.
- Eita! Então o que te agrada, estrangeiro singular?
- Amo as nuvens… as nuvens que passam… Lá… Lá… As maravilhosas nuvens!

- Qui aimes-tu le mieux, homme enigmatique, dis? ton père, ta mère, ta soeur ou ton frère?
- Je n’ai ni père, ni mère, ni soeur, ni frère.
- Tes amis?
-Vous vous servez là d’une parole dont le sens m’est resté jusqu’à ce jour inconnu.
- Ta patrie?
- J’ignore sous quelle latitude elle est située.
- La beauté?
- Je l’aimerais volontiers, déesse et immortelle.
- L’or?
- Je le hais comme vous haïssez Dieu.
- Eh! qu’aimes-tu donc, extraordinaire étranger?
- J’aime les nuages… les nuages qui passent… là-bas… là-bas… les merveilleux nuages!
***

O espelho
 
Um homem horrível entra e olha-se ao espelho.
– Por que razão você se olha ao espelho, uma vez que só poderá se ver com desagrado?
O homem horrível me responde:
– Caro senhor, segundo os princípios imortais de 89, todos os homens são iguais perante a lei; portanto tenho o direito de me olhar; se é com agrado ou desagrado, isto só diz respeito à minha consciência.
Segundo o bom senso, eu tinha sem dúvida razão; mas, de acordo com a lei, ele não estava errado.
 
Un homme épouvantable entre et se regarde dans la glace.
 – Pourquoi vous regardez-vous au miroir, puisque vous ne pouvez vous y voir
qu’avec déplaisir ?
L’homme épouvantable me répond :
– Monsieur, d’après les immortels principes de 89, tous les hommes sont égaux en droits ; donc je possède le droit de
me mirer ; avec plaisir ou déplaisir, cela ne regarde que ma conscience.
Au nom du bon sens, j’avais sans doute raison ; mais, au point de vue de la loi, il n’avait pas tort.

***

O porto
 
Um porto é um lugar encantador para uma alma cansada das lutas da
vida. A amplitude do céu, a arquitetura móvel das nuvens, as tonalidades variáveis do
mar, a cintilação dos faróis, são um prisma maravilhosamente adequado para entreter
os olhos sem nunca aborrecê-los. As formas sinuosas dos navios, com mastros
complicados, aos quais a ondulação transmite oscilações harmoniosas, servem para
entreter na alma o gosto pelo ritmo e pela beleza. Além disso, existe sobretudo uma
espécie de prazer misterioso e aristocrático para quem já não tem curiosidade ou
ambição, em contemplar, inclinado no belvedere ou debruçado junto ao cais,
todos os movimentos dos que partem e dos que voltam, dos que ainda têm a força
de querer, o desejo de viajar ou de enriquecer.
 
Un port est un séjour charmant pour une âme fatiguée des luttes de la vie.
L’ampleur du ciel, l’architecture mobile des nuages, les colorations changeantes de la
mer, le scintillement des phares, sont un prisme merveilleusement propre à amuser les
yeux sans jamais les lasser. Les formes élancées des navires, au gréement compliqué,
auxquels la houle imprime des oscillations harmonieuses, servent à entretenir dans
l’âme le goût du rythme et de la beauté. Et puis, surtout, il y a une sorte de plaisir
mystérieux et aristocratique pour celui qui n’a plus ni curiosité ni ambition, à
contempler, couché dans le belvédère ou accoudé sur le môle, tous ces mouvements
de ceux qui partent et de ceux qui reviennent, de ceux qui ont encore la force de
vouloir, le désir de voyager ou de s’enrichir.

Pluralismo singular

ter, 18/12/07
por Luciano Trigo |

“Tentei incorporar à minha atividade como crítico lições que aprendi com a filosofia: escrever com clareza, concisão e coerência. Muito da crítica de arte não passava (e ainda não passa) de um amontoado de jargões e idéias vagas” (Arthur C. Danto)

“Talvez o que mais ouça tolices seja um quadro de museu!” (E. e J. de Goncourt)

Arthur C. Danto fez carreira acadêmica como filósofo (escreveu um livro interessante sobre Sartre, por exemplo, já lançado no Brasil), e ele mesmo conta que enveredeou pela crítica de arte por acaso, em 1984, quando foi convidado a assinar uma coluna na revista The Nation. (Curiosamente, no ano anterior, ele tinha escrito o ensaio em que inaugurava sua reflexão sobre o fim da arte). Mais ou menos na mesma época, outro crítico, Hans Belting, publicou o ensaio O fim da História da arte?, em que desenvolve idéias parecidas, mas chega a conclusões diferentes. Danto procura fazer um diagnóstico mais ou menos imparcial da situação atual da arte, enquanto Belting endossa as conseqüências do seu “fim”. Para os dois, o que se esgotou não foi a arte em si, mas um tipo de pensamento sobre a arte, que já não daria conta da produção atual, isto é, pós década de 60. Quais as conseqüências disso?

Considerados figuras de proa na reflexão sobre a arte contemporânea, Danto e Belting são pensadores sérios, cuja leitura faria bem a muitos praticantes da arte “Caninha 51”. Há quem diga que eles chegaram no Brasil com atraso, e que já existem outros debates em curso na Europa e nos Estados Unidos, o que é verdade. Mas mesmo assim eles estão muito adiante da mentalidade que prevalece no Brasil, onde até mesmo discutir a idéia do fim da arte é uma heresia. Por outro lado, o que eles escrevem não deve ser recebido como as sagradas escrituras: seus ensaios só serão úteis se servirem a um debate inteligente e livre de preconceitos. Em outro momento vou resenhar livro de Belting; por ora vou desenvolver a análise das idéias de Danto iniciada dois posts atrás.

Recapitulando, Danto resume a história da arte em três períodos. O primeiro, gigantesco, vai desde os primórdios, na Grécia antiga, até os artistas acadêmicos franceses do século XIX: a questão ali era a representação do mundo tal como ele se apresentava aos nossos olhos. O segundo período correspondeu ao Modernismo, que colocou em evidência os próprios mecanismos da representação e ampliou o papel e os limites da arte; abandonou-se a pretensão ilusionista na pintura, por exemplo, com as pinceladas se tornando visíveis, e a cor passando a denotar mais expressão que autenticidade. Isso culminaria na arte abstrata e nos diversos movimentos de vanguarda dos anos 60 (Pop Art, Minimalismo, Arte Conceitual etc).

Quando os valores do Modernismo deixaram de se aplicar à arte que estava sendo produzida, começou o terceiro período, “pós-histórico”, marcado pelo pluralismo e pala liberdade absoluta do artista. Fim da progressão linear, fim dos movimentos hegemônicos, fim, num certo sentido, das próprias teorias da arte. Por outro lado, predomínio de uma “estética do sentido” em detrimento de uma “estética da forma”.

Danto teve seu primeiro insight sobre o fim da arte em 1964, quando viu uma exposição de Andy Warhol em Nova York. “Eu pensei: se isso é possível [uma caixa de sabão em pó, Brillo Box, ser vista como arte], qualquer coisa é possível”. Na década de 70, ele sistematizou suas idéias, e de lá para cá vem publicando livros em que combina a crítica de artistas contemporâneos com reflexões filosóficas sobre este período “pós-histórico” da arte. Os últimos foram The Madonna of the future e Unnatural wonders: essays from the gap between art and life.

São textos intelectualmente estimulantes, mas que partem de uma premissa que a realidade do mundo da arte vem desmentindo. Danto afirma que vivemos numa época de pluralismo, mas numa entrevista recente ele próprio declarou o seguinte: “Hoje, grande parte da arte é conceitual”. Ora, este é um ponto fundamental do debate: adota-se um discurso do pluralismo para justificar uma série de coisas, mas o que se vê na prática nas galerias e exposições que contam é um predomínio absoluto da arte de matriz conceitual. Nesse caso se incluem, naturalmente, as quatro obras que deram início a toda esta polêmica sobre arte contemporânea: as maçãs, a paçoca, a orelha e o cachorro. Que pluralismo é esse, em que uma vertente é quase homogênea?

Mais uma vez, não se trata de negar a História, nem de negar valor a toda arte conceitual. Meu problema em relação às quatro obras citadas não é a resistência ao novo, mas a resistência ao velho: elas usam uma gramática e um vocabulário de 40 anos atrás. A “transfiguração do banal”, isto é, apresentar objetos comuns como arte, é um procedimento que já foi usado até a exaustão: será que ainda pensam que isso é novidade? Pior: as obras que insistem nisso hoje não discutem nenhuma das questões urgentes enfrentadas pela sociedade contemporânea, mas se encerram sobre si mesmas, segundo modelos ultrapassados, num sinal de evidente esterilidade criativa. Ora, a valorização desse tipo de obra no sistema da arte não é casual: para esse sistema, o que importa é fazer o mercado girar; a obra e o artista se reduzem a meros pretextos para que a engrenagem não pare de funcionar num mercado globalizado no qual, cada vez mais, os mesmos valores artísticos são impostos e compartilhados num nível planetário.

Respondendo à pergunta que fiz lá no alto (“quais as conseqüências disso?”): não é à toa que a idéia do “fim da arte”, intelectualmente tão atraente, é mais ou menos contemporânea da idéia do “fim da História”, lançada por Francis Fukuyama, funcionário do Departamento de Estado americano. No livro O fim da História e o último homem, o triunfo do liberalismo capitalista foi apresentado como o encerramento da luta imemorial por uma sociedade mais justa e estável. Ou seja, o fim da História nada mais seria que a interrupção da busca histórica por um mundo melhor. Na arte, é a mesma coisa: o sistema neoliberal está satisfeito com a circulação permanente de modelos velhos em novas roupagens, que faz funcionar o mercado de compra e venda de obras e de estrelas. A esse sistema não interessa que se continue buscando uma arte melhor.

Resultados desanimadores

sáb, 15/12/07
por Luciano Trigo |
categoria Todas

Muita gente reclama, e com razão, que faltam no Brasil prêmios literários e outras formas de reconhecimento e incentivo ao escritor. Mas acho que o problema não é tanto a falta de prêmios e bolsas em si, mas a forma como eles são realizados, sobretudo os que envolvem dinheiro público.

Saíram quinta no Diário Oficial da União os resultados dos prêmios literários da Biblioteca Nacional e da bolsa de incentivo à criação literária da Funarte – neste caso, os resultados saíram com uma rapidez impressionante, já que as inscrições terminaram no dia 10 de dezembro…

Pois bem, entre os premiados pela Biblioteca Nacional, com o Prêmio Sergio Buarque de Holanda, categoria Ensaio Social (coitado do Sergio Buarque!) está o livro

José Genoino – escolhas políticas, de Maria Francisca Pinheiro Coelho

Ora, será que não se publicou nenhum ensaio social melhor que este no Brasil em 2007? José Genoíno não era um dos chefes do Mensalão, como foi apontado pelo próprio procurador geral da República? Será que o livro da Maria Francisca toca nesse assunto?

Já entre os contemplados com a bolsa da Funarte, que receberão R$ 30 mil cada um, está o projeto 68 motivos de 68, de Luiz Arthur Toríbio, que foi assessor de comunicação social do Minc até abril de 2006.

Talvez o projeto do Toribio seja até meritório, não duvido, mas não fica estranho a Funarte, um órgão do próprio Minc, premiá-lo? Ainda mais se pensarmos que o resultado saiu 48 horas após o fim das inscrições? Ora, a inscrição incluía obrigatoriamente trechos do livro em produção. Será que a comissão julgadora teve tempo de avaliar as centenas (talvez milhares) de obras enviadas? Duvido muito.

Resultados desanimadores para quem insiste em se dedicar à literatura. Bater na porta das editoras é cada vez mais inútil; mesmo quando se consegue publicar, as livrarias não expõem; mesmo no caso em que o autor é apadrinhado por alguma estrela e recebe atenção da mídia, vende muito pouco. Aí aparecem os prêmios e bolsas, que poderiam servir de consolo, mas o brilho nos olhos dura pouco: os critérios de seleção são incompreensíveis em alguns casos, ou compreensíveis até demais, em outros.

A lista completa de premiados, incluindo as comissões julgadoras, está no link.

Olhando bem, devem aparecer outros absurdos.

PS. Complementando: Maria Francisca é co-autora de um livro sobre a Bárbara Freitag (Itinerários de Bárbara Freitag, UnB, 2005), que fez parte da comissão que premiou a Maria Francisca. Ação entre amigas? Êta, Brasil…

PS2. A vencedora da categoria melhor romance de 2007 foi Idalina Azevedo Silva (quem?), pelo livro O tempo físico. Na comissão que a premiou, seu colega do departamento de Letras da UFRJ, Manuel Antônio de Castro, que justificou a escolha pelo “modo de narrar aliciante” e por uma “oralidade muito difícil de realizar”. Dizer o quê?

Segue a sinopse fornecida pela editora de O tempo físico, o melhor romance do ano segundo a Biblioteca Nacional:

Em uma degustação rápida de leitura do livro O Tempo Físico da autora Idalina Azevedo da Silva, o leitor se vê envolvido com o curso e o percurso de Maria, sua infância e adolescência, sua fase adulta e, finalmente, a experienciação mais palpável de que é uma peregrina no tempo, pelo advento da morte de muitos daqueles que constituíram seu mundo. Se ficasse aí não haveria muita novidade, pelo contrario, isso se torna o previsível para cada um de nós. Porém, aí não passamos ainda do tempo cronológico. Mas há outros, e estes estão nos interstícios da sua obra, convidando e provocando os leitores mais exigentes, que queiram um alimento mais substancial.

O fim da arte segundo Arthur Danto

sex, 14/12/07
por Luciano Trigo |

Capa do livroEm Após o fim da arte , Arthur C. Danto afirma que a arte – ou pelo menos uma determinada idéia de arte – chegou ao fim. A tese não é nova: Hegel já havia anunciado algo parecido no começo do século XIX. Nem Hegel nem Danto estavam anunciando um tempo em que não se fazem mais obras de arte, ou onde os artistas deixariam de existir ou de ter um papel relevante: isso seria uma idiotice, pois, como na época de Hegel, hoje artistas continuam produzindo obras de arte – cada vez mais, é verdade, dentro de um sistema de relações cada vez mais movido pela lógica do mercado e da mercadoria, o que caracterizaria um período ��neoliberal” da arte.

O fim da arte, segundo Danto, não significa o fim das obras de artes, mas sim de um tipo de arte que fazia parte de uma história (ou de uma narrativa), pautada pelas noções de estilos e movimentos, e pela crença de que existia uma linha evolutiva entre eles – linha que seria preciso compreender para interpretar e avaliar qualquer obra de arte particular. Em outras palavras, o que acabou foi o laço que unia a arte à História, laço que estava na base de todos os manifestos e movimentos do século 20, pelo menos até meados dos anos 60. A partir daquele momento, e cada vez mais, o único compromisso dos artistas seria com a liberdade absoluta, liberdade inclusive de repetir, colar, reler, citar etc, do jeito que quiserem.

Sabão em pó, de Andy WarholExiste até uma corrente pomposamente chamada de “apropriacionista”, a que se filia, por exemplo, o artista Mike Bildo, que se apropria de imagens alheias para supostamente lhes atribuir um novo sentido. Desta forma, Bildo faz cópias idênticas de obras de Marcel Duchamp e Andy Warhol e as intitula ”No Duchamp” e “No Warhol”, por exemplo. Entenderam? Para mim, sinceramente, isso é um embuste, uma palhaçada, uma tolice. Jorge Luis Borges, no conto Pierre Menard, autor del Quijote, cria um personagem que reescreve palavra por palavra o Dom Quixote de Cervantes, atribuindo assim um novo sentido à obra. É, evidentemente, uma ironia. Bildo é uma espécie de Menard que se levou a sério – e o mais grave é que todo mundo bateu palmas.

Aspas de Danto: “É parte do que define a arte contemporânea que a arte do passado esteja disponível para qualquer uso que os artistas queiram lhe dar. O que não lhes está disponível é o espírito em que a arte foi realizada.” [e isso faz toda diferença].

Urinol, de DuchampOra, levando-se Danto a sério, a implicação direta disso é que não existe mais critério para se estabelecer o que é ou não é arte. Se a técnica e o talento deixaram de ter importância, se não existe diferença visível, por exemplo, entre um objeto do cotidiano e um objeto de arte, o que determina o valor de um artista passa a ser sua capacidade de inserção no sistema da arte, através de uma rede de relacionamentos com marchands, galeristas, curadores, colecinadores – sistema que expeliu, por desnecessários, os críticos. Esse sistema dita o que vale e o que deixa de valer, segundo movimentos que têm muito mais a ver com a Bolsa de Valores do que com a idéia convencional de arte. Ao mesmo tempo, o aspecto sensorial da arte perdeu importância frente ao seu aspecto filosófico: o papel da arte passou a ser refletir sobre si mesma. O próprio Danto assume que o modelo vigente “impossibilita a definição de obras de arte com base em certas propriedades visuais que elas possam ter”. Ele vai além, numa sentença que considero verdadeira e estarrecedora (estarrecedora porque tristemente verdadeira): “O que quer seja a arte, ela já não é basicamente algo para ser visto”.

Danto – e, como ele, Hans Belting, em O fim da História da Arte – sugere que o fim da arte começou a acontecer nos anos 60, com a Pop Art e Andy Warhol. Até ali, as obras de arte eram pensadas e avaliadas fundamentalmente em termos estéticos. Toda a arte moderna apresentou questões estéticas, mesmo quando discutia as condições, os meios e os métodos da representação. E foi quando esse predomínio da estética, por algum motivo, deixou de corresponder ao que se produzia, é que o conceito de moderno se tornou insuficiente, e se buscou um substituto: pós-moderno ou contemporâneo (mas não contemporâneo no sentido puramente temporal, já que continuaram existindo artistas preocupados com a estética).

Danto sugere que existiram duas grandes narrativas sobre a arte, isto é, duas grandes modelos que estabeleciam como a arte deve ser: a de Giorgio Vasari, no sec. XVI, correspondente à arte mimética, e a de Clement Greenberg no século 20, correspondente à arte moderna. Os dois modelos bastam para entender a arte de vários séculos, sua natureza e sua função. A narrativa de Greenberg, responsável pela teorização do modernismo, teria deixado de fazer sentido para a arte dos nossos dias. “Contemporâneo”, escreve Danto, “passou a significar uma arte produzida dentro de uma estrutura de produção jamais antes vista em toda a História da Arte”. A minha conclusão é que hoje não existe mais uma narrativa que permita compreender o passado, o presente e o futuro da arte – a não ser a narrativa do mercado.

É por isso que, desligada da História, uma boa parcela da arte contemporânea caiu num processo de repetição vazia. Para muita gente, a superação das questões modernas representou um vale-tudo, um contexto em que tudo é arbitrário. A questão é: quem arbitra o valor nesse cenário, que Danto descreve como sendo de “desordem informativa” e “entropia estética”? O artista, para ter uma existência social neste modelo, não estaria abrindo mão de sua soberania para se tornar mais facilmente assimilável pelas correntes da moda? Esse pacto econômico que fundamenta o sistema da arte e excluiu a reflexão crítica – a ponto de hoje qualquer pensamento questionador ser recebido a pedradas pelos próprios artistas – não estaria mergulhando num divórcio suicida entre arte e sociedade? A anunciada Bienal do Vazio não seria um sintoma de que algo vai mal?

Após o fim da arte – A arte contemporânea e os limites da História, de Arthur C. Danto. Tradução de Saulo Krieger. Edusp, 294 páginas, R$ 49

O eixo e o motor de uma vida

qua, 12/12/07
por Luciano Trigo |
categoria Literatura

Capa do livroMinha leitura desta semana foi O ano I da Revolução Russa, de Victor Serge, de quem já tinha lido Memórias de um revolucionário. São dois livros complementares, que dão uma dimensão e um sentido pessoais à idéia de revolução, idéia que o autor transformou no eixo e no motor de sua vida.

Publicado em 1930, O ano I da Revolução Russa reconstitui o período entre 7 de novembro de 1917 e 7 de novembro de 1918, das batalhas ideológicas e debates políticos aos desafios de organização econômica (como o abastecimento das cidades) e militar (a criação do Exército Vermelho). Serge traça perfis psicologicamente ricos de Lenin e Trotski, que intercala com descrições da vida cotidiana e análises da situação russa. É a revolução vista literalmente de dentro.

Filho de um exilado político que teve que deixar a Rússia após o assassinato do Tzar Alexandre II em 1881, Victor Serge nasceu em Bruxelas em 1890. Aderiu ao anarquismo aos 18 anos, em Paris, passando a escrever assiduamente nos jornais Le Revolté e L’Anarchie. Acusado de envolvimento em atos de terrorismo, foi condenado em 1910 a cinco anos de prisão e viu vários de seus amigos serem executados. Solto, participou da tentativa de revolução em Barcelona em 1917, depois voltou à França e foi novamente preso. Em 1918, foi trocado por franceses anti-bolcheviques presos em Moscou e finalmente conheceu a terra de seus pais.

Na Rússia, Victor Serge aderiu ao bolchevismo sem abrir mão de sua consciência crítica. Rapidamente ele percebeu o caráter autoritário da revolução, que conduzia a passos largos a uma tirania, sobretudo após a morte de Lenin. Atacou a política secreta soviética e a repressão ao levante dos marinheiros do Kronstadt. Em 1923, como representante do Comintern na Alemanha, ajudou a preparar a malograda insurreição de 1923.

Em 1928 foi expulso do Partido Comunista. Amigo de Trotsky, voltaria a ser preso em 1933. Solto e deportado devido a presões internacionais (era um intelectual reconhecido por seus livros em toda a Europa), Serge foi para a França, de onde teve que fugir em 1940, com a invasão alemã. Como Trotsky, foi morar no México, onde morreu em 1947, não assassinado como Trotsky, mas isolado e na miséria, com o terno puído e os sapatos furados.

Apesar de tudo que sofreu, na prisão e fora dela, Victor Serge não abriu mão de suas convicções socialistas, exaltando até o fim da vida a entrega sincera da velha guarda bolchevique à causa da revolução mundial (velha guarda esmagada pelo próprio governo soviético). Reconheceu, por outro lado, a sucessão de erros cometidos por Lenin e pela burocracia stalinista que o sucedeu, erros que transformaram a utopia socialista num pesadelo de terror e opressão.

“O único significado da vida é a participação consciente na formação da história”, Victor Serge escreveu em seu diário, já no fim da vida, acrescentando: “É preciso alinhar-se ativamente contra tudo o que apequena o homem e envolver-se em todas as lutas que tendem a libertá-lo, e engrandecê-lo”. É uma lição de vida notável, do ponto de vista de uma trajetória humana. Mas a dura realidade é que a História, que não tem sentimentos, jogou na sua lata de lixo o projeto pelo qual Serge e milhares de outras pessoas deram a vida.

O ANO I DA REVOLUÇAO RUSSA, de Victor Serge 
Tradução de Lolio Lourenço de Oliveira.

Boitempo Editorial, 528 páginas, R$ 69

Arte é o que se chama de arte?

ter, 11/12/07
por Luciano Trigo |

No dia 19 de novembro passado publiquei na Folha de S.Paulo um artigo sobre arte contemporânea. Como o artigo já gerou três réplicas e uma tréplica, no próprio jornal, e dezenas de mensagens e outras manifestações (a favor e contra), na antiga versão deste blog, acho interessante trazer para o G1 o debate, que está longe de se encerrar.

Não vou transcrever os posts e artigos, mas destacar seus trechos mais relevantes. Tudo começou quando li uma matéria do repórter Ivan Claudio na revista Isto é, que tomava como pretexto duas exposições para levantar questões sobre os rumos da arte contemporânea. Na instalação Ainda viva, a artista Laura Vinci espalhou sete mil maçãs sobre uma mesa de mármore branco e o chão de cimento de uma galeria; já Quebra-molas, de Débora Bolsoni, reproduzia um redutor de velocidade de automóveis feito com uma tonelada de massa de paçoca de amendoim. As duas instalações tinham em comum a deliberada efemeridade e o recurso a comestíveis como matéria-prima.

A revista pediu a Ferreira Gullar, poeta e crítico de arte, que comentasse as obras. Aspas:

Essa produção vai morrer aí e nem tem mesmo como sobreviver. (…) Trata-se da arte da boa idéia, da Caninha 51. Esse tipo de trabalho não tem artesanato, não tem técnica, não tem linguagem. Já se usou de tudo: balde, bacia, ovo frito. É uma falta de imaginação, uma grande bobagem que não me interessa. Prefiro ficar em casa lendo Hamlet.

As artistas se justificaram falando da transitoriedade das coisas vivas, de tentativas de simbolização etc.

Eu escrevi:

“A arte contemporânea é um tema em que é difícil tornar produtivo qualquer debate, pois sempre se cai num Fla-Flu, isto é, vira uma questão de adesão incondicional de torcedor, mais que de reflexão crítica. Dando nome aos bois, o que temos hoje são, de um lado, críticos, como Ferreira Gullar e Affonso Romano de Sant’Anna, que contestam a legitimidade e o valor de instalações como as de Laura e Débora, e de outro lado artistas que rejeitam em bloco este julgamento como reacionário e conservador. O problema não é saber quem está com a razão, mas constatar que desse atrito não sai nenhum desdobramento interessante. Por quê? Algumas hipóteses:

- Os artistas são auto-suficientes: ignoram solenemente crítica que os contesta.
- Os críticos perderam a importância que tinham no processo de legitimação da produção artística.
- Hoje, para um artista, importa muito mais se inserir numa rede de relações composta de curadores, marchands e galeristas do que obter reconhecimento crítico.

A noção de valor em artes plásticas é altamente subjetiva. Mas é também condicionada pelo contexto histórico-cultural e pelo modelo de relação entre economia e cultura que estiver prevalecendo. O sucesso de um artista hoje não depende somente, nem mesmo principalmente, do valor intrínseco do que ele produz, dos méritos plásticos ou estéticos de sua obra, mas sobretudo de sua capacidade de inserção num sistema complexo de seleção, que está cada vez mais distante da arte e cada vez mais próximo do mercado, do consumo e da moda – mesmo quando veste o surrado disfarce da transgressão, aliás outra palavra assimilada pelo mercado, pelo consumo e pela moda.

Tendo a simpatizar com as sete mil maçãs de Laura, o quebra-molas de paçoca de Débora me interessa menos. Mas isto é questão de gosto. O que parece preocupante é que esse tipo de produção – desligada da realidade, das questões contemporâneas, de compromissos, da História, do presente, em suma, da vida real – quase monopolize os espaços da arte hoje. É uma produção cujo principal defeito, para mim, é ser inofensiva. Pode até trazer fama, viagens e dinheiro a quem a faz, mas é disso que se trata?”

Ou seja, sem falar mal de ninguém, minha preocupação era analisar por que uma tendência dominante na arte contemporânea não reverbera e é recebida com indiferença fora de círculos fechados. Para minha surpresa, mesmo antes de sair no jornal este texto foi recebido a pedradas por um bocado de gente. O que de certa forma me dava razão: o debate sobre arte no Brasil era mesmo um diálogo de surdos.

No segundo capítulo da novela, já apoquentado pela leitura torta que estavam fazendo do meu texto, me atribuindo coisas que não disse e intenções que não tive, expliquei que só tinha levantado algumas hipóteses, sem em momento algum condenar, em bloco, a produção artística atual – o que seria uma idiotice. Escrevi:

“As duas instalações citadas (as maçãs e o quebra-molas de paçoca) pecam não pela controvérsia gratuita, ao contrário: pecam por serem obras inofensivas, fechadas em si mesmas, que não se articulam com nenhum processo exterior a elas próprias. As artistas têm obrigação de vincular suas obras à realidade? Não. Mas quando instalações desse tido se tornam a tendência dominante da arte, isto causa uma impressão de esgotamento e alienação. Nesta altura, aliás, as sete mil maçãs já devem ter apodrecido na galeria. E daí?

Todos os movimentos de vanguarda do século 20 que resistiram à prova do tempo – e foram vários – devem boa parte de seu êxito ao fato de terem mobilizado a sociedade em debates produtivos, porque estavam associados a transformações sociais, culturais, psicológicas e tecnológicas que tinham um impacto direto na vida das pessoas. Basta pensar na relação do futurismo com a guerra e com velocidade trazida pela máquina ao cotidiano das pessoas para constatar que o novo não era uma manifestação espontânea e gratuita de gênios individuais. Mesmo o surrealismo, com seu projeto de libertar a criação de qualquer controle racional, só foi possível num contexto de consolidação da idéia de inconsciente concebida por Freud; além disso, numa segunda etapa, o surrealismo foi associado por André Breton a um projeto político de esquerda, o que é uma contradição em termos, mas confirma o papel do contexto histórico na arte de cada época.

Quando Marcel Duchamp expôs um urinol ou desenhou um bigode na Monalisa, fez um gesto revolucionário, que rompia com as convenções e abria possibilidades infinitas para a arte. Mas, como todos os gestos fundadores, é irrepetível, porque o contexto já passou: desenhar um bigode na Monalisa hoje seria apenas ridículo. Abolidos os cânones, qualquer adolescente é capaz de transgressões parecidas.

O problema é que as fronteiras entre a criação artística e a empulhação pura e simples se tornam muito tênues em alguns momentos. A falência da crítica como fator relevante apenas agrava esse quadro, já que quem legitima o artista hoje não é mais o reconhecimento crítico, mas o sucesso em si: se faz sucesso, é bom. Nada mais capitalista. Mas talvez seja mesmo este o destino de todas as artes (a literatura, a música etc), isto é, enquadrar-se numa lógica de mercado ou morrer.

Mais grave que a repetição anódina de fórmulas que fizeram sentido na primeira metade do século passado é o esforço, igualmente ultrapassado, de épater a qualquer custo. Como é cada vez mais difícil chocar as pessoas, alguns artistas “perdem o senso de noção”, numa tentativa desesperada de ganhar projeção num mercado (pois é) cada vez mais competitivo. Duas obras recentes são bastante representativas desse fenômeno:

1) Numa exposição em Manágua, em agosto passado, o artista plástico costa-riquenho Guillermo Vargas Habacuc amarrou um cachorro num canto da galeria e o deixou lá sem comida, até morrer de fome, diante dos olhos perplexos dos visitantes. Habacuc se justificou: “O importante para mim era constatar a hipocrisia alheia. Um animal torna-se foco de atenção quando o ponho em um local onde pessoas esperam ver arte, mas não quando está no meio da rua morto de fome. Este cachorro está mais vivo do que nunca, porque continua dando o que falar”.

2) Em outubro, o artista plástico cipriota Stelarc convocou a imprensa para mostrar sua obra mais recente: ele implantou uma orelha no próprio braço. Stelarc utiliza o próprio corpo como plataforma para os seus trabalhos, que envolvem instrumentos médicos, próteses, biotecnologia, elementos de robótica e sistemas de realidade virtual. Não satisfeito, ele anunciou que quer implantar um microfone próximo à orelha, para captar o que estiver sendo “escutado”.

Será arte?”

Voltarei ao tema.

Prezado(a) leitor(a)

seg, 10/12/07
por Luciano Trigo |
categoria Todas

Sou jornalista, escritor e editor de livros, não necessariamente nessa ordem. Nas três atividades criei o hábito de olhar criticamente para as coisas da cultura, isto é, o hábito de me perguntar por que determinadas coisas são como são, e não de outro jeito, ou o que faz uma coisa ser considerada boa e outra ruim, ou qual a relação entre qualidade e sucesso etc.

Por isso não espere encontrar nesta Máquina de escrever resenhas convencionais ou comentários neutros sobre livros, filmes ou exposições. Serão sempre textos questionadores (que provavelmente também serão questionados) – mas, na medida do possível, livres de preconceitos. Prometo também escrever de maneira clara, sem esoterismos, de forma que meus inevitáveis erros também ficarão mais evidentes.

 Por fim, assumo o compromisso de, por pessoais que sejam as minhas leituras da produção cultural contemporânea, jamais transformar este blog num divã de auto-análise, como tem acontecido por aí. Por melhor que seja o crítico, seu olhar só é interessante quando se volta para além do próprio umbigo.

 Seja bem-vindo(a)!

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sex, 07/12/07
por Globomail |
categoria Todas

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