Quando eu era criança, foi lançado um jogo chamado Leilão de Arte, com cartões que reproduziam telas de grandes artistas, a maioria delas pertencente ao acervo do Masp. Entre os quadros de que eu mais gostava – e para os quais fazia os lances mais altos, naturalmente, com meu dinheiro de mentirinha – estavam o Picasso e o Portinari que, em apenas três minutos, foram levados do maior museu da América Latina. Há outro crime por trás desse crime: o descaso de anos das autoridades com os acervos culturais. Nunca antes na história deste país a cultura valeu tão pouco.
As duas obras estão sendo avaliadas em R$ 120 milhões de reais, mas este é apenas um valor de referência: não estavam à venda, e não há dinheiro que pague seu desaparecimento. São peças únicas, insubstituíveis. Substituíveis, felizmente, são as pessoas a quem foi entregue a gestão de algumas instituições. Está mais do que na hora de se fazer uma devassa no Masp e na Fundação que organiza a Bienal de Arte de São Paulo, que estão devolvendo com episódios vergonhosos à população os volumosos recursos públicos repassados pelo Governo.
PS. Agora a roupa suja começa a aparecer. O Masp está em crise financeira, endividado até o pescoço, e, em maio passado, a energia foi cortada por falta de pagamento. Evidentemente, a crise também afetou a segurança. O museu não tem alarme. No dia do assalto, as luzes estavam apagadas para economizar energia. No escuro, o sistema de câmeras teve pouca utilidade. Os vigilantes do museu trabalham sem treinamento nem licença, sendo preparados apenas para orientar o público. Apesar de tudo isso, há 14 anos o Masp não muda de presidente. Falta de oposição dá nisso, nos museus como nos países.
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No post “Arte é o que se chama de arte?“, comecei a recapitulação de uma polêmica, na qual inadvertidamente me meti, sobre os rumos da arte contemporânea, e acabei não levando a novela adiante. Segue um resumo rápido dos capítulos que se seguiram.
Meus primeiros textos provocaram uma enxurrada de reações: centenas de interessados em arte e um bocado de artistas de manifestaram – a grande maioria endossando minhas idéias, mas também chegaram mensagens surpreendentemente agressivas e autoritárias. O que de certa forma me deu razão: este é um terreno em que as pessoas se aferram às opiniões de forma quase religiosa, transformando o debate num diálogo de surdos. Mesmo assim, essas reações me estimularam a continuar sistematizando algumas hipóteses
sobre os rumos da arte contemporânea.
Escrevi então sobre o escândalo como recurso de marketing:
“A característica mais aflitiva de boa parcela da arte contemporânea é ser inofensiva, anódina, fechada em si mesma, presa a modelos que fizeram sentido 50 anos atrás. Mas também existe uma vertente, bastante em voga, que procura se afirmar, justamente, ofendendo crenças religiosas e valores coletivos. É o caso das obras “Orientais barbudos criando o império da cruz”, de autoria da australiana Priscilla Bracks, que funde as imagens de Bin Laden e Jesus Cristo, e “O Quarto Segredo de Fátima”, de Luke Sullivan,
também australiano, uma estátua que mostra a Virgem Maria de burka. As duas provocaram consternação e protestos em seu país, o que, desnecessário dizer, atraiu a atenção da mídia e deu projeção internacional aos artistas.
No Rio, no ano passado, um “pênis-crucifixo”, da artista plástica Márcia X., causou tantos protestos que obrigou a direção do Centro Cultural Banco do Brasil a retirar a peça da exposição Erótica – Os sentidos da arte. O que, por sua vez, gerou protestos dos artistas contra a censura. No último caso, vale observar o seguinte: a peça foi retirada em função de milhares de correntistas do Banco do Brasil (entre os quais dezenas de empresas
poderosas) terem pressionado o banco – que, afinal de contas, custeou a exposição com dinheiro dos correntistas. Essa forma de pressão foi muito mais eloqüente que o barulho feito por vinte ou trinta artistas na porta do CCBB. Isto não é uma opinião, é um fato. Mas será que os artistas que protestaram contra a censura recusariam, no dia seguinte ao protesto, um patrocínio do banco? Acho que não. Mas isto não é um fato, é uma opinião.
Não estou tomando partido, apenas levantando questões. Pessoalmente, acho as três obras citadas infantis. Um adolescente revoltado poderia muito bem ter produzido o Bin Laden/Jesus, com auxílio de um programa banal de manipulação de imagens, ou ter dado vazão às suas fantasias eróticas, desenhando um pênis com o terço da tia, na intimidade de seu quarto. O que implica dizer o seguinte: o que dá status de arte a essas peças é exterior a elas, é o fato de serem referendadas por um sistema que segue regras de mercado, incluindo a lógica do marketing e a própria participação da mídia. Rendendo-se a esse
sistema, o artista pode pagar um preço alto demais: ao se desligar do diálogo com aquilo que o determina, social e culturalmente, o indivíduo criador abre mão também de qualquer relevância que não seja mercadológica.”
Ao mesmo tempo, a Folha de S.Paulo publico três (!) réplicas ao meu primeiro artigo. A primeira, do jornalista Marcos Augusto Gonçalves, comparava a minha posição à de Monteiro Lobato diante das telas de Anita Malfatti. Ora, Lobato reagiu, equivocadamente, é claro, a algo novo, enquanto eu estava questionando algo velho e esgotado. Na segunda, um curador fazia uma leitura tão torta e distorcida do meu texto que nem merece citação. Na terceira, a artista Débora Bolsoni reagia aos comentários de Ferreira Gullar, citados
por mim, com o argumento de que não eram 300, mas sim 7.000 maçãs que ela espalhara numa galeria (como se isso fizesse alguma diferença). Seguiu-se então minha tréplica:
“Idéias fora do tempo
LUCIANO TRIGO
A obra “One and Three Chairs”, do artista plástico americano Joseph Kosuth, é emblemática do movimento chamado Arte Conceitual. Ela consiste de uma cadeira, da fotografia da mesma cadeira e da ampliação fotográfica da definição do dicionário de uma cadeira. O artista propunha à audiência a questão: em qual das três está a verdadeira identidade da cadeira: na coisa em si, na representação ou na descrição verbal?
É uma obra intrigante, que traz para o território da arte questões associadas à linguagem e à comunicação. O problema é que, como os ready-made de Marcel Duchamp dos quais é herdeira, a Arte Conceitual é datada. Parte de seu sentido e valor não pode ser dissociada do ano (no caso de Kosuth, 1965) e do contexto de sua produção. Repetir esse tipo de proposta hoje é tão anacrônico quanto imitar a pintura acadêmica pré-impressionista.
Duchamp se interessava mais pela idéia do objeto artístico que pela sua execução e pelo produto final. Essa “arte como idéia” abriu caminhos inteiramente novos (nas primeiras décadas do século passado) para a experimentação. Mal comparando, Duchamp teve um impacto, nas artes plásticas, semelhante ao que a obra de James Joyce (não por acaso sua
contemporânea) teve na literatura. Também gerou, é verdade, muita empulhação e impostura.
A Arte Conceitual estabeleceu, entre outras premissas, que a arte se realiza numa idéia; que a matéria-prima da arte é a linguagem; que não existe separação entre arte e teoria da arte; que a atividade artística consiste na investigação sobre a natureza da própria arte; que a arte é uma forma de linguagem. Tudo muito interessante. Para a época. E mais interessante como teoria que por seus resultados. Só sobre a questão de a arte ser ou não uma linguagem existe uma bibliografia imensa (e inconclusiva), mais relevante para a semiótica que para a própria arte.
Sintomaticamente, Kosuth produziu uma vasta obra ensaística sobre teoria da arte e sobre o papel do artista na sociedade. Levou adiante um debate necessário sobre a relação entre a estética e a representação, radicalizando questões de linguagem propostas por Duchamp e, mais tarde, por René Magritte, que com seu famoso “Ceci n’est pas une pipe” (1928) introduziu um paradoxo lingüístico essencial ao desenvolvimento da Arte Conceitual.
Ora, o percurso que começa em Duchamp, passa por Magritte e atinge sua realização radical na Arte Conceitual dos anos 60 e 70 (este é um recorte, é claro que existem outros) é um dos capítulos mais fascinantes da arte do século 20. Mas é apenas um capítulo, que já foi escrito e virou História. E reduzir a arte à expressão de uma boa idéia (a tal “arte Caninha 51″ de que fala Ferreira Gullar) tem um preço: como uma boa piada, a boa idéia só tem graça a primeira vez. Não fosse assim, a idéia das cadeiras de Kosuth poderia ser reproduzida ad infinitum, com outros objetos (aliás, ele chegou a repetir o modelo com uma marreta e uma capa de chuva, sem sucesso). Essas propostas deixaram de ser vanguarda há muito tempo. Insistir nelas 40 anos depois, num contexto cultural radicalmente diferente, é irrelevante. Mais uma vez, mal comparando, seria como se prevalecesse entre os escritores de hoje o compromisso com a experimentação lingüística de Joyce – que, com seus herdeiros, também constituiu um capítulo fascinante da literatura do século 20, mas que não representou, de forma alguma, a linha de chegada da
literatura. Graças a Deus isso não aconteceu, e a literatura seguiu caminhos plurais.
Imaginem, por exemplo, se toda poesia fosse concreta.
PS. Este espaço seria destinado a uma resposta ao jornalista Marcos Augusto
Gonçalves e ao sr. Moacir dos Anjos. Mas, como um e outro deram razão à
minha tese de que qualquer questionamento da arte contemporânea é recebido
com pedradas, preferi utilizá-lo para desenvolver novas idéias. Mesmo assim,
alguns esclarecimentos são necessários:
1) O título do meu primeiro artigo era “Será arte?”, citação de um poema do Ferreira Gullar, mas a Folha preferiu pinçar uma frase do texto – o que é uma prática jornalística comum, mas acabou atraindo atenção desmedida para um detalhe lateral. O que não muda o fato de que não afirmei, em momento algum, que todos os artistas são movidos pela busca da fama e de dinheiro, mas sim questionei o sucesso como critério de qualidade num sistema de arte mercantilizado.
2) A tentativa de desqualificação do outro é o recurso mais pobre de um debate. Em todas as respostas (já foram três) os articulistas omitem os pontos relevantes para me atribuir coisas que não escrevi e intenções que não tive. E evitam, sugestivamente, dar sua opinião sobre a orelha implantada no braço e o cachorro que morre de fome, duas obras de arte
citadas em meu artigo.
3) A reação ao meu artigo, fora das páginas da Ilustrada, foi muito mais plural. Recebi mensagens estimulantes de centenas de pessoas interessadas em arte e de diversos artistas, entre eles Adriana Varejão, Antonio Veronese e Julia Cseko, para só citar os mais conhecidos. Eles leram minhas idéias sem antolhos – e entendem que qualquer discussão sobre arte contemporânea, potencialmente infinita, só tem graça se houver diálogo, e não troca de ofensas.
4) Por fim, não pretendi generalizar, mas sim falar de uma tendência recorrente em galerias. Em 1961, Piero Manzoni defecou em 90 latinhas, assinadas e numeradas, e as vendeu a peso de ouro, batizando a obra de “Merda d’Artista”. Era um ataque frontal e um comentário irônico ao mercantilismo da arte e à idéia, moderna no mau sentido, de que não há limites para a arte, de que a arte está em toda parte, de que tudo é arte. Mais de 40 anos depois, parece que a mensagem não foi compreendida, e a arte se mercantilizou de vez, premiando com freqüência a mediocridade. E ai de quem apontar o dedo para isso.”