‘Bate duas, pra garantir’
Não sei se acontece assim com todo mundo, mas eu, pelo menos, tenho um álbum oficial que reúne boa parte das fotografias que tirei na vida. Baseados em critério desconhecido – quem sabe jogando para cima e vendo onde caíam – meus pais resolveram distribuir entre os três filhos os instantâneos acumulados em d��cadas de cliques, organizando-os em coleções que definiam cada um como protagonista. Na que recebi, por exemplo, estão os registros do meu nascimento, dos aniversários, e de alguns momentos familiares salpicados, que datam de épocas variadas.
As vantagens do método são a organização e a praticidade, pois trata-se de um minucioso apanhado de melhores momentos, compilados em um só volume. O inconveniente, claro, fica por conta da questão diplomática, afinal tanta democracia foi determinante para que as fotos terminassem espalhadas por diversos lares. Assim sendo, desde o ritual de separação, aprendi a aceitar minha sorte e amar incondicionalmente a coletânea que me foi designada, inclusive por acreditar que qualquer tentativa de colocar em xeque o sistema seria um pesadelo.
Portanto, ao folhear as páginas repletas de imagens que resumem minha trajetória, consigo apontar virtudes mesmo entre aquelas em que ninguém além de mim conseguiria enxergar valor. São cenas triviais, capturadas sem nenhuma pretensão ou preocupação estética, mas pelas quais nos afeiçoamos e elegemos como preferidas.Vocês sabem do que estou falando…
Nesse quesito, aliás, meu álbum é um prato cheio, devido a espantosa incidência de registros que contrariam todos os preceitos básicos da boa fotografia: cabeças cortadas, bocas falantes, olhos que se fecham, rostos virados, tremidos, borrados, escuros ou claros demais, enfim, uma gama infindável de exemplos do que não fazer quando se tem uma câmera nas mãos.
Atualmente, sempre que pode, meu pai delega aos outros a função, mas isso só após ter passado ao menos vinte anos atuando incólume por detrás das lentes. Ele sabe que no mundo de hoje é a tecnologia que se encarrega de expor fotógrafos dotados de tão pouca habilidade. Entretanto, não faz muito tempo, para os bons ou maus, que outro jeito havia senão largar o dedo no disparador e rezar?
Buscar o filme era sempre uma incógnita, porque bastava o carretel não ter enrolado como deveria para que eventos importantíssimos fossem relegados apenas à memória dos que lá estiveram. A menor suspeita de irregularidade sentenciava o cruel dilema: abrir ou não a tampa da máquina? Trancado no quarto escuro, tateava-se o rolo como banana de dinamite, na esperança de que as fotos já tiradas não fossem comprometidas. O suspense seguia até o dia da revelação, e o desespero podia verter-se em lágrimas quando o funcionário da loja vinha lá de dentro trazendo debaixo do braço um envelope magrelo e dizia: “velou tudo”.
“Velou tudo” era duro de engolir, mas esse foi o destino de nossas férias no Simba Safári. Ao invés de leões, macaquinhos e elefantes, metros de uma desoladora e profunda escuridão. O acordo tácito que havia entre clientes e laboratório determinava a ampliação de tudo que coubesse dentro da definição de fotografia, e esse já foi, com certeza, um conceito mais flexível.
Era o suficiente para justificar a existência de fotos como as que estão no meu (e provavelmente no seu) álbum, mas que não teriam qualquer chance na era digital. Agora o excesso de recursos e o controle preciso dos resultados provoca aquela chatice, capaz de estragar momentos de fato espontâneos. Não importa quantas forem as tentativas, haverá sempre alguém pedindo um repeteco, calcado na própria impressão de que não saiu bem. E quando esse se dá por satisfeito, chega a vez de outro reclamar. Quando se vê, o momento que deveria ter sido registrado passou já faz cinco minutos.
Nessas horas é que me dá saudade dos idos em que o fotógrafo era meu pai, e daquela frase, há muito aposentada, que sempre parecia decidir a questão: “bate duas, pra garantir”.