'É punição aos pobres', diz padre Julio Lancellotti sobre projeto que prevê multa e limita doação de comida à população de rua de SP

Texto foi aprovado em primeira votação na Câmara de SP e estabelece inúmeras exigências para entidades e pessoas físicas doarem alimentos, sob o argumento de garantir 'segurança alimentar'. Coordenador da Pastoral do Povo da Rua, padre afirma que segurança de quem tem fome 'é um prato de comida'.

Por Lívia Machado, g1 SP — São Paulo


Padre Julio Lancellotti viralizou ao tentar quebrar pedras sob viaduto — Foto: Reprodução

O padre Julio Lancellotti, coordenador da Pastoral do Povo de Rua de São Paulo, disse nesta sexta-feira (28), em entrevista ao g1, que o projeto de lei que prevê multa de R$ 17 mil a quem descumprir determinados requisitos sobre doação de alimentos a pessoas em situação de rua na capital é uma forma de tentar punir a população carente.

"É mais um projeto aporofóbico, de punição aos pobres e daqueles que estão a seu serviço'."

O PL foi proposto pelo vereador Rubinho Nunes (União), autor de um pedido de abertura de CPI contra ONGs que atuam na Cracolândia especialmente o Padre Júlio e o movimento 'A Craco Resiste'.

Em nota, Rubinho Nunes afirmou que o objetivo do projeto "é garantir protocolos de segurança alimentar na distribuição, prestigiando a higiene e acolhimento das pessoas vulneráveis durante a alimentação".

Na avaliação do padre, segurança alimentar é garantir acesso à alimentação.

"Segurança alimentar em momento de fome, de crise, e de tanta gente sem condições, se chama prato de comida".

Vereadores de SP aprovam em 25 segundos projeto que prevê multa de R$ 17 mil a quem doar comida a morador de rua

A proposta também quer exigir a quem for doar os alimentos, que assuma a limpeza de toda a área onde será realizada a distribuição.

O padre Julio destaca que tal serviço é de responsabilidade do município, e que não há sentido em tal exigência.

"A limpeza pública: os feirantes não limpam a rua. Por que eles não limpam? Porque é o serviço público que limpa", cita como exemplo.

Logo após a aprovação do projeto, a prefeitura afirmou que analisaria a proposta, caso ela fosse aprovada em segunda votação. Entretanto, nesta sexta, após a repercussão negativa do caso, o prefeito Ricardo Nunes (MDB) disse que irá vetá-lo.

O que prevê o projeto?

Para doar alimentos, as pessoas físicas deverão:

  • Limpar toda a área onde será realizada a distribuição dos alimentos e disponibilizar tendas, mesas, cadeiras, talheres, guardanapos e "demais ferramentas necessárias à alimentação segura e digna, responsabilizando-se posteriormente pela adequada limpeza e asseio do local onde se realizou a ação";
  • Autorização da Secretaria Municipal de Subprefeituras;
  • Autorização da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS);
  • Cadastro de todos os voluntários presentes na ação junto à SMADS.

Além dos requisitos descritos acima, as entidades e ONGs deverão:

  • Apresentar a razão social da entidade registrada e reconhecida por órgãos competentes do município;
  • Apresentar documento atualizado com informações sobre o quadro administrativo da entidade, com nomes e cargos dos membros e as devidas comprovações de identidade;
  • Fazer cadastro das pessoas em situação de vulnerabilidade social com informações atualizadas;
  • Identificar com crachá da entidade os voluntários do momento da entrega do alimento;
  • Autenticar em cartório ou incluir atestado de veracidade nas documentações apresentadas pelas ONGs e entidades.

O texto também estabelece que o local em que os alimentos serão preparados deverão passar por vistoria da Vigilância Sanitária.

A Prefeitura de São Paulo informou que, atualmente, não existe obrigação de TPU (Termo de Permissão de Uso) para entrega de alimentação às pessoas em situação de rua. Disse também que o projeto será analisado pelo prefeito, caso seja aprovado em segunda votação.

Inconstitucional e abuso de poder

A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de São Paulo disse nesta sexta-feira (28), por meio de nota, que a projeto é inconstitucional.

"Se todos são iguais perante à lei e aos poderes públicos constituídos, não pode o Município se sobrepor às relações humanas e às relações interpessoais. Desta forma, a Câmara não pode, em hipótese alguma, proibir que pessoas doem a outras pessoas, seja alimentos, bens ou afetos."

No texto, a Comissão Permanente de Direitos Humanos da OAB-SP aponta que a proposta, configura "em uma ação de abuso de poder por parte da Câmara ao requerer que doadores e pessoas atendidas tenham que solicitar autorização para tal ato."

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