Saltar para o conte�do principal Saltar para o menu
 
 

Lista de textos do jornal de hoje Navegue por editoria

Ilustrada

Marcelo Coelho

Os dois Barbosas

Num pa�s em que se esconde o racismo, o racismo surge mesmo onde ele n�o est�

Ainda prossegue o julgamento do mensal�o, e h� muitos ajustes de penas, revis�es, recursos e intercorr�ncias institucionais pela frente.

De todo modo, um clima de trabalho encerrado, coincidindo talvez com as festas de fim de ano, tomou conta do STF na �ltima semana.

O esp�rito comemorativo pairou sobre a despedida do presidente Ayres Britto; alargou-se, em dia de casa cheia, com a posse de Joaquim Barbosa no cargo; irradiou-se, finalmente, numa explos�o estrobosc�pica, com as cenas do ministro Luiz Fux tocando guitarra el�trica na festa em homenagem ao colega.

Tenho comentado bastante o julgamento do mensal�o no caderno "Poder", de modo que n�o entro aqui no conte�do das decis�es do tribunal. Mas o STF tamb�m � cultura, e h� algo a dizer, sem d�vida, sobre algumas imagens que v�o ficando do julgamento em curso.

Numa foto que faz sucesso, Joaquim Barbosa aparece de costas, com a capa drapejante, no estilo homem-morcego. � a figura do vingador, um tanto curvado e cabisbaixo pelo peso da pr�pria obstina��o, mas ao mesmo tempo r�pido e decidido no passo. As dobras da capa sinalizam velocidade, altitude, independ�ncia e solid�o.

O reverso da medalha s�o as m�scaras que se fabricam para o Carnaval. Onde t�nhamos a toga de Barbosa, temos agora o rosto de Joaquim. As rugas na testa e a express�o severa n�o tiram, claro, o sentido debochado da ideia, ou melhor, a falta de qualquer sentido na ideia.

Em outros anos, apareceram m�scaras de Saddam Hussein, de Obama, de Lula e de Bin Laden. Tanto faz o personagem; o que importa � desloc�-lo do contexto, sublinhando que o Carnaval pode engolir tudo na mesma falta de l�gica.

Seja como for, o Joaquim Barbosa tr�gico, esp�cie de Batman perseguido, convive com o Joaquim Barbosa c�mico, camarada, ao alcance de todos. N�o h� maior sinal dessa ambiguidade do que o modo com que v�rias pessoas se referem a ele.

Imagino que n�o revelo segredo nenhum ao publicar isto: chamam Joaquim Barbosa de "Juiz Neg�o".

O curioso � que a denomina��o, de �bvio hist�rico racista, vem em contexto positivo. Do g�nero: "Tomara que o Neg�o ponha todo mundo na cadeia mesmo". Ou: "Se fosse por mim, dava plenos poderes para o Juiz Neg�o resolver logo essa parada". Numa sociedade como a nossa, o racismo por vezes est� onde menos aparece, e vice-versa.

Os que chamam Barbosa de "Neg�o" parecem inconscientemente atribuir-lhe uma for�a vingadora e revolucion�ria, que admiram, mas da qual tamb�m gostariam de se afastar.

� o sim�trico, digamos assim, da frase "voc�s s�o brancos, que se entendam". Algo que sempre pareceu aplicar-se, por sinal, ao mundo altamente codificado e t�cnico de uma corte superior de Justi�a.

Nesse aspecto, os dois Barbosas se combinam. O Barbosa vingador, sozinho num mundo de "brancos", se identifica com o Barbosa carnavalesco, da m�scara que est� "na boca do povo". O branco de classe m�dia, com raiva de Lula e Jos� Dirceu, torna-se "negro" como Barbosa em sua luta contra "os poderosos" que fazem e desfazem em Bras�lia.

O termo "Neg�o", certamente "incorreto", torna-se estranhamente "correto" nesse contexto. E o contr�rio acontece com alguns termos "politicamente corretos".

Foi o caso do discurso feito pelo presidente da OAB, Ophir Cavalcante, homenageando Barbosa na semana passada. A situa��o, naturalmente, sugeria celebrar o fato de pela primeira vez se ter um negro na presid�ncia do tribunal. Ao mesmo tempo, como fez o pr�prio Barbosa, cabia passar por cima desse fato: ver os m�ritos da pessoa, n�o a cor de sua pele.

Cavalcante saiu-se com uma refer�ncia ao "multiculturalismo da brava gente brasileira", que "se faz presente com o ministro Joaquim Barbosa".

Como assim, "multiculturalismo"? Tendo estudado em Paris e dado aulas nos Estados Unidos, por que seria Barbosa mais "multicultural", ou menos, do que Gilmar Mendes ou Celso de Mello?

De modo parecido, a severidade de Barbosa � frequentemente relacionada a alguma dose de revolta ou rancor que traga do pr�prio passado. Talvez; mas por que n�o culpar a sua dor nas costas, por exemplo, pelo mau humor que o acompanha?

Num pa�s em que se esconde o racismo, o racismo surge mesmo onde ele n�o est�. O fato � que ningu�m fecha os olhos para o fato de ele ser negro; e fingir que se ignora o fato tende a ser muito revelador tamb�m.

coelhofsp@uol.com.br


Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da p�gina