Classificada como truculenta e racista, a abordagem de policiais militares a um grupo de quatro jovens — um brasileiro branco e três estrangeiros, filhos de diplomatas, negros — na noite de quarta-feira, em Ipanema, na Zona Sul do Rio, não é incomum no Brasil, especialmente no Rio e ainda mais nas regiões consideradas periféricas da cidade. O caso ganhou contornos de crise diplomática com pedido formal de desculpas do Itamaraty aos embaixadores do Gabão, de Burkina Faso e do Canadá, países de origem dos jovens, e abriu espaço para uma discussão sobre racismo estrutural e despreparo de policiais na abordagem a negros.
— A atitude dos policiais é uma reprodução da sociedade racista que existe no nosso país. O caso está tendo maior repercussão, obviamente, por se tratar de jovens estrangeiros. Mas essa abordagem acontece a todo momento em vários lugares do Brasil — diz o jornalista Rene Silva, da ONG Voz das Comunidades. — As atitudes racistas acontecem de forma natural, e ninguém mais questiona porque o branco tem um tratamento diferente em comparação a um preto. Já tivemos muitos casos de jovens negros inocentes que morreram e nada mudou. A sociedade não se choca — diz.
A Polícia Civil investiga se houve o crime de racismo na ação dos PMs, que seriam sargentes da UPP do Vidigal.
Para o ex-secretário nacional de Segurança Pública José Vicente da Silva Filho, o episódio deixa claro que há falhas no treinamento dos policiais do Rio, em que, segundo diz, a questão racial não é tratada com a devida importância:
— A origem disso está no próprio processo de formação dos policiais e nas falhas na supervisão da tropa. Além disso, é preciso que, desde a sua formação, o policial seja preparado para não avaliar situações apenas por questões de raça e cor.
O caso repercutiu em Brasília. O Ministério de Relações Exteriores afirmou que “acionará o governo do Estado do Rio, solicitando apuração rigorosa e responsabilização adequada dos policiais envolvidos na abordagem”. Já o Ministério da Igualdade Racial repudiou a abordagem policial, que classificou como “violenta e irresponsável”, e expressou solidariedade com as vítimas e suas famílias.
Um dos rapazes estrangeiros falou sobre a violência da abordagem.
— Eles empurram na parede, com força. Até que machucou um pouco. Eu não estava preparado para o policial, estava mais preparado para ser roubado pelos bandidos — disse se referindo às suas expectativas ao visitar o Rio.
Encontro com os jovens
Integrantes da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Alerj estiveram ontem com os adolescentes e preparam um relatório sobre o caso. Presidente da comissão, a deputada estadual Dani Monteiro (PSOL) escreveu em suas redes sociais que, “infelizmente, esse não é um caso isolado; todos os dias jovens negros são abordados com truculência e até mesmo agredidos por agentes da PM. Mas sem pais influentes, esses casos não repercutem e nenhum agente responde por isso”. A parlamentar afirmou ainda que desculpas oficiais são fundamentais, porém são necessárias “medidas efetivas que evitem que isto se repita”.
De janeiro de 2022 a março de 2024, 1.435 pessoas registraram nas delegacias do Estado do Rio denúncias de preconceito de raça ou cor, o equivalente a 53 vítimas por mês, segundo dados do Instituto de Segurança Pública (ISP). Apenas no primeiro trimestre de 2024 foram 223 relatos nas delegacias, ou 74 casos por mês.
Segundo informou o RJ2, da TV Globo, o porteiro do prédio, que presenciou a ação, foi ouvido e disse que a abordagem foi dura, mas que não ouviu expressões racistas por parte dos policiais. Dois dos adolescentes também já foram ouvidos. A PM informou que as imagens das câmaras corporais usadas pelos policiais serão analisadas para constatar se houve algum excesso.