Empreendedorismo feminino no Brasil

A menina que virou cientista para mudar o mundo

Aos 25 anos, Duda tem uma startup focada em resolver os desafios associados a disfunções neuromotoras. Foto: Paulo Liebert

Quando perguntaram para a menina Duda, na época com oito anos, o que ela gostaria de ser quando crescesse, a resposta estava na ponta da língua: “quero ser cientista e fazer algo que impacte o mundo”. Nessa época, seus projetos de ciência eram “levemente” diferentes dos criados pelos colegas de sala: “enquanto eles construíam maquetes de fazendas, eu apresentava um protótipo de tomógrafo!”, se diverte Duda Franklin, hoje com 25 anos.  

Nada contra maquetes de fazendas ou aspirações infantis menos articuladas. Duda sabe que cada criança, que cada menina, tem um sonho e uma vocação. A dela era fazer ciência e empreender. E ela estava certa de que para chegar lá, enfrentaria inúmeras barreiras. Acadêmicas, já que precisaria viver para os estudos; sociais, por ter nascido em um lar modesto; raciais, por ser negra e nordestina; e, finalmente, de gênero, pois atuaria num ambiente masculino e, muitas vezes, machista.  

Tudo isso de fato se concretizou. E quanto mais a cientista ascendia, mais enxergava o preconceito de gênero. “Esse é um problema que enfrentamos diariamente e varia de acordo com a localidade, a área de atuação e a posição hierárquica. No meu caso, sou CEO, mulher e cientista. Tenho de lidar com o ar de descrença, questionamentos da minha capacidade de entrega e até da autoria dos meus projetos. Um homem chegou a me perguntar sobre quem seria o ‘gênio’ responsável por um deles”, relata a empreendedora. Para ela, “o mecanismo do preconceito atua ainda na infância, quando às meninas é oferecido um papel e negado todos os outros. Isso permanece em toda a formação, e quando a mulher finalmente ascende profissionalmente, há uma tentativa de desqualificar seus méritos, procurando dar crédito aos homens”, reflete. 

Apesar disso, o que Duda viveu moldou o seu caráter e nada conseguiu fazer com que ela parasse. “Existe uma música chamada 'AmarElo', que foi produzida pelo rapper Emicida, e um dos trechos diz assim: ‘Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes. Elas são coadjuvantes, não, melhor, figurantes. Que nem devia tá aqui’ (sic.). Ela é bastante marcante, e acredito que também fala um pouco sobre mim. Durante nossa jornada, os desafios podem gerar cicatrizes que talvez nunca se curem completamente, mas é preciso persistir. Carregar todas elas é apenas parte do que somos, não aquilo que nos define”, conta a cientista. Hoje, sua brilhante trajetória inclui duas graduações, projetos e publicações internacionais relevantes. Em 2023, foi selecionada pela Forbes Under 30, lista que destaca os mais brilhantes empreendedores, criadores e game-changers de até 30 anos que revolucionam os negócios e transformam o mundo.

Além de mudar o mundo pela ciência, Duda também deseja transformar a maneira como a mulher se enxerga e se posiciona no ambiente de trabalho. Afinal, ela sabe que ainda poucas estão ao seu lado. “Me emocionei quando meu primo disse que agora a filha dele, que ainda é bebê, terá em quem se inspirar. Esse é o objetivo: que as mulheres vejam que é possível fazer ciência, ser CEO e mudar o mundo, como elas são”, se emociona a jovem empresária.

Ela subiu o morro para empoderar mulheres

Ana criou o Social Visão do Bem, programa de correção ocular acessível às favelas cariocas que empodera mulheres 40+. Foto: Acervo pessoal

Se Duda deseja dar voz às mulheres na ciência, a empreendedora social Ana Lúcia Santos quer mostrar que aquelas com baixa escolaridade e 40+ podem, sim, transformar o mundo e gerar renda. “Muitas mulheres, sobretudo nas favelas, cuidam da casa e de seus filhos, sem ter tempo ou recursos para investir em uma formação. Aos 40 anos, o mercado invisibiliza de vez essas pessoas e o ciclo da pobreza se mantém”, conta a empreendedora. Depois de participar do Sebrae Impacta em 2018, Ana começou a sonhar com um negócio de impacto (que busca beneficiar pessoas de renda mais baixa) para combater essa realidade, mas não sabia como.

Quando se lembrou de uma experiência vivida com a filha, anos antes, teve o insight que precisava. Na ocasião, Ana descobriu que sua filha de 14 anos tinha miopia severa, algo que lhe prejudicava nos estudos e nas relações sociais. Quando começou a usar óculos, a vida da adolescente mudou. “Ela começou a ir bem na escola, perdeu a timidez e, literalmente, passou a enxergar a vida de outra forma”, relata Ana. Ali estava a resposta: criaria uma empresa de impacto no pé de um morro do Rio de Janeiro e ofereceria exames de acuidade visual e óculos de grau a preços populares. Assim surgiu o projeto Social Visão do Bem (SVB).

Ainda faltava entender como promoveria a inclusão social das mulheres nas favelas, e mais uma vez, o Sebrae ajudou. Ana conheceu o modelo de nano franquia, e então o Visão do Bem ganhou as Agentes da Visão. “As mulheres recebem capacitação empreendedora, comercial, técnica e financeira para gerar renda com a revenda direta porta a porta dos óculos”, conta. Depois de formatar o negócio, Ana Lúcia sabia que teria de encarar grandes desafios comuns a qualquer empreendimento: “alta carga tributária, obtenção de crédito, ter um negócio atraente para permanência no mercado e manter uma equipe motivada para trazer resultados de alta performance” eram alguns deles, conforme relata. O que logo percebeu foi que além deles, precisaria enfrentar entraves adicionais. Todos, ligados ao preconceito de gênero. “Lembro de ter participado de uma rodada de negociações com diversas startups. A falta de entusiasmo por parte dos empreendedores homens quando a startup era apresentada por mulheres era notória. É triste! Hoje, lido com isso de forma forte e segura. Encaro como um desafio a ser vencido”, explica

Mensalmente, Ana Lúcia trabalha com cerca de 40 Agentes da Visão, que atuam em mais de 30 favelas, e faturam R$ 1,6 mil cada, “embora alguns consigam ganhar muito mais, enquanto outros têm ganhos menores”, esclarece Ana Lúcia. Por meio do trabalho autônomo, Ana possibilita que elas equilibrem, inclusive, o dilema enfrentado por muitas mulheres: a dupla jornada. Como cada uma decide o horário que vai atuar, elas se organizam para cuidar de si mesmas, da casa, dos filhos e familiares. Com a empreendedora, isso não é diferente. “A dupla jornada existe, é cansativa e às vezes me atrapalha tomando um tempo precioso. A verdade é que por mais que em casa as tarefas sejam divididas, ainda me sinto responsável por grande parte delas”, relata.

Renata Malheiros, em reportagem para a Agência Sebrae, aponta o caminho: “é urgente o avanço do debate sobre divisão de tarefas dentro dos lares e famílias, bem como políticas públicas como a de universalização de creches, melhoria de escolas e do sistema de transportes”. Segundo ela, são medidas que “contribuiriam para diminuir a sobrecarga das mulheres e fazer com que elas possam se dedicar mais aos próprios negócios”. É por conta dos desafios da dupla jornada que encontrar uma rede de apoio foi fundamental para Ana Lúcia. “Toda minha vida tive sorte de ter pessoas especiais ao meu lado que sempre me inspiraram e torceram por mim. Faço parte de várias redes empreendedoras como a Conexão Empreendedora Sebrae e me inspiro na história de diversas mulheres incríveis”, relata.

Hoje, Ana Lúcia também é rede de apoio para muitas mulheres, e isso torna o trabalho da empreendedora ainda mais significativo. “Nos treinamentos e formações, há mulheres que não conseguem pronunciar o próprio nome por timidez ou insegurança. Depois das mentorias, quando elas finalmente saem de casa para vender e se tornam referência nas comunidades, elas se transformam. Toda a potência que estava escondida se revela, e elas finalmente descobrem ou redescobrem quem são. É fabuloso acompanhar tanto crescimento”, completa Ana.

10 camisetas e uma vontade gigante de empreender

Os eventos, brechós e a loja de Carla Naiana movimentam a economia da pequena cidade de Ribeiro Gonçalves, no Piauí. Foto: Acervo pessoal

Carla Naiana passou 13 anos de sua vida em Goiânia, atuando numa empresa de sucesso. Enquanto via a companhia crescer, pensava na saudade da família e sonhava, ela mesma, em ter seu próprio negócio. Foi então que um dia tomou coragem, deixou o emprego e retornou para sua cidade. Foram 1,5 mil quilômetros de distância até Ribeiro Gonçalves, no Piauí.

Se estabeleceu e em 2019 começou a empreender. Criou uma venda de camisetas dentro do próprio quarto com 10 peças em estoque e R$ 100 em caixa. Assim nascia a Use Carla Naiana. Junto com o novo empreendimento, vieram também os julgamentos. “Pessoas próximas questionavam se eu realmente queria realizar aquele sonho. Diziam que outras já tinham tentado e não tinham conseguido. Algumas chegaram a oferecer vaga de emprego ou pedir meu currículo. A minha reação foi sempre ignorar e deixar muito claro aonde eu queria chegar”, conta a empreendedora.

Para diversificar, inaugurou também o seu brechó – o único num raio de 300 km de sua cidade. E, como rede de apoio, contou com a ajuda de outra mulher: sua mãe. “Ela abriu mão até do quarto que dormia para que, no lugar, eu abrisse uma porta para a rua e começasse minha primeira loja física”. Carla conta que sua mãe também foi a primeira investidora. “Ela me emprestou dinheiro para fazer estoque e me ajudou em muitas outras coisas no decorrer da minha história como empreendedora”, lembra.

Com uma parceira assim, o sucesso foi instantâneo. “O brechó está crescendo tanto que já estou sem local para colocar as peças. Atualmente, ele funciona na minha loja, mas em cômodos separados”, conta. E para puxar a mão de mais mulheres, Carla realiza, algumas vezes por ano, uma feira de empreendedores em sua cidade, que movimenta cerca de R$ 25 mil por edição

No meio desse caminho de sucesso está o Sebrae. “Sempre aproveitei todas as oportunidades oferecidas pelo Sebrae. Fiz cursos, oficinas, participei de palestras. Isso, com certeza, me ajudou muito a entender o mercado e, consequentemente, a alavancar minhas vendas e negócio. Todo o aprendizado que tive foi essencial para o meu crescimento.”, destaca Carla.

Tanto empenho rendeu à empreendedora o primeiro lugar no Prêmio Sebrae Mulher de Negócios na categoria MEI. “Comecei meu negócio com R$ 100 e 10 blusinhas. Enfrentei muitas dificuldades e ter recebido esse prêmio foi um marco na minha vida pessoal e profissional. Quero que a minha história sirva de exemplo e inspiração para outras mulheres, completa”.