Todos a Bordo

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Reportagem

Jornada de 14 horas para pilotos afetará segurança dos voos, diz sindicato

A Anac (Agência Nacional de Aviação Civil) está discutindo o possível aumento da jornada dos aeronautas, categoria que abarca pilotos e comissários de voo no Brasil. A medida, vista como um aceno às empresas aéreas, é reconhecida pelo órgão como uma tentativa de alinhamento com a regulação do setor nos Estados Unidos.

O procedimento está aberto para consulta pública até 12 de agosto, e será alvo de uma audiência pública marcada para 28 de junho, mas não sem a manifestação contrária de diversos sindicatos e entidades ligadas ao setor.

Tipos de tripulação

A legislação prevê três tipos de tripulação, dependendo do tipo de avião e da duração do voo.

A Simples é formada por dois pilotos. Na prática, os voos domésticos no Brasil se enquadram nessa modalidade. Na Composta, dois comandantes e um primeiro oficial, também chamado de copiloto, se revezam no comando do avião.
Por fim, a tripulação de revezamento é formada por dois comandantes e dois copilotos. Cada uma tem uma duração de jornada própria de acordo com a hora de início da jornada.

Quem trabalha 14 horas?

A proposta da Anac prevê que pilotos em tripulação simples, ou seja, apenas o comandante e o copiloto do avião a bordo, possam trabalhar até 14 horas por dia. Essa carga inclui as horas voadas e aquelas que devem ser cumpridas com atividades no solo, e só poderiam ultrapassar as 12 horas por meio de convenção ou acordo coletivo de trabalho entre as empresas e o sindicato.

Essa jornada de 14 horas está fora da realidade de grande parte dos brasileiros, segundo o presidente do SNA (Sindicato Nacional dos Aeronautas), Henrique Hacklaender. Para ele, a categoria já está trabalhando no limite.

"Na rotina de um tripulante, há situações em que o tempo de trabalho não é contabilizado nem remunerado adequadamente. Por exemplo, quando há voos partindo de aeroportos diferentes da base, como de Congonhas para Guarulhos, apenas a jornada a partir de 30 minutos antes do voo em Guarulhos é considerada. O deslocamento entre a base [Congonhas] e o aeroporto [de onde o voo irá decolar] pode levar mais de duas horas, e esse tempo não é remunerado", diz o piloto.

Outro ponto que ocorre frequentemente com os pilotos e comissários é a sua chegada ao local de trabalho com muita antecedência. Quando os aeronautas estão fora de sua base de trabalho, as companhias deslocam esses profissionais muito antes do horário correto de apresentação para o voo.

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Quando chega ao serviço, diz Hacklander, ele já inicia suas atividades de preparo da aeronave, mas esse tempo não é contabilizado, tanto para seu necessário descanso quanto para o pagamento.

Como é hoje?

O limite proposto é de 100 horas a cada 28 dias e 1000 ao ano, como em alguns outros países. Hoje, há a limitação de 90 horas de jornada a cada 28 dias e 900 horas ao ano no Brasil.

Sobre as horas de voo, uma tripulação simples hoje tem uma jornada de 13 horas, sendo até 10 delas voadas, dependendo da hora de início da jornada. A proposta da Anac quer que essa jornada suba para até 14 horas, com limite de 9 horas de voo, e sem aumento do descanso mínimo, que é de 12 horas.

Apesar de ficar menos horas voando, o cansaço está em ficar mais horas ainda à disposição para o trabalho, diz Hacklander. "Não é só o voar, é a jornada de trabalho como um todo. Em outras categorias, quem trabalha 12 horas tende a descansar 36 horas em seguida. Na aviação, a cada 14 horas de trabalho, haveria apenas 12 horas de descanso, e não há ninguém que cumpra essa carga horária no Brasil", diz o dirigente sindical.

Essa escala ainda poderia ser realizada por seis períodos consecutivos. Após esse ciclo, o aeronauta pode ter apenas um dia de folga e volte a trabalhar mais cinco dias.

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Medida não é inédita no mundo

Além da tentativa de alinhamento com as regras dos EUA, outros locais mundo afora já adotam jornadas com limites de trabalho maiores.

Na Austrália, na Argentina, no Chile e em países da Europa, a cada 28 dias consecutivos, o limite de trabalho é de até 100 horas de voo. Em 365 dias, o limite de jornada é de 1.000 horas.

A Anac afirma que a medida proposta tem como base o Relatório de Avaliação Concorrencial da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Segundo a agência, o documento recomendou às autoridades brasileiras "a revisão dos parâmetros de tempo de voo e de jornada de trabalho vigentes no Brasil, pois, em geral, são mais restritivos do que a de países vizinhos, sem uma motivação clara em termos de segurança operacional".

Pode causar demissões

Apesar da recomendação da OCDE, os aeronautas acreditam que a medida poderá causar uma maior fadiga dos tripulantes. Isso pode afetar a segurança operacional, inclusive, destaca o sindicato.

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Caso haja um aumento na quantidade de horas voadas atualmente, poderá haver uma redução de postos de trabalho, diz Hacklander. "Quanto mais horas de voo atribuídas a um único tripulante as companhias aéreas puderem utilizar para otimizar recursos e reduzir custos operacionais, menor a necessidade de manutenção de seus atuais quadros laborais e futuras contratações", afirma o sindicalista.

Pilotos "apagam" durante o voo

Pesquisa de fadiga realizada no início de 2023 pelo SNA revelou dados preocupantes sobre o nível de cansaço da categoria. Entre os pilotos, 83,73% afirmam que, já pegaram no sono de forma involuntária durante o período de trabalho.

Ao todo, 61,32% desses tripulantes afirmaram que foi por poucos segundos. Já 22,41% assumem que caíram no sono por alguns minutos.

Apenas 16,26% afirmam nunca terem pegado no sono de forma involuntária durante o trabalho.

Ao mesmo tempo em que há um sistema para reportar situações de fadiga entre os pilotos, 92,84 dos pilotos afirmam já terem se sentido fatigados e não terem avisado de sua situação.

Errata:

o conteúdo foi alterado

  • Diferentemente do informado anteriormente, hoje, há a limitação de 90 horas de jornada a cada 28 dias, e não 90 dias. O texto foi corrigido.

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