Marcelo Ninio
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Marcelo Ninio

Repórter desde 1989, passou por O GLOBO, Jornal do Brasil, EFE e Folha de São Paulo.

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Marcelo Ninio

Passou pelas redações do Jornal do Brasil, Agência EFE e Folha de S.Paulo. Tem mestrado em relações internacionais pela Universidade de Jerusalém.

Por Marcelo Ninio


Vista geral do distrito financeiro de Xangai — Foto: Hector RETAMAL / AFP
Vista geral do distrito financeiro de Xangai — Foto: Hector RETAMAL / AFP



No combate à Covid-19, o que parece surreal aos olhos do mundo nada mais é que a realidade para os chineses. É o que acontece agora em Xangai. As ruas desertas da capital financeira da China são uma imagem que poucos esperavam ver a essa altura, mas elas não chegam a causar surpresa num país que nunca deu como vencida a guerra contra o vírus. Se há uma zona de conforto criada pelo sucesso na contenção da doença, ela pode mudar num piscar de olhos. Quando os moradores de Xangai achavam que a cidade havia encontrado um jeito de conviver com a pandemia (não com o vírus), mantendo baixos níveis de transmissão por dois anos e evitando interrupções nos negócios, veio o choque de realidade.

No domingo a variante Ômicron provocou um número recorde de casos diários em Xangai — 3.500, sendo 50 sintomáticos —, estilhaçou de vez a imagem de vida normal e levou a cidade de 25 milhões de pessoas a declarar lockdown parcial. É uma variação da estratégia de Covid zero, e está sendo vista pelas autoridades como um experimento que pode servir para outras grandes cidades, sem a necessidade de um confinamento total.

Em Xangai, a cidade foi dividida por uma linha demarcada pelo rio Huangpu: a região ao leste, Pudong, fica sob lockdown até sexta para a realização de testes em massa num esforço para cortar a transmissão do vírus. Em seguida será a vez de Puxi, a oeste do rio. Outro método vinha sendo usado na cidade nas últimas semanas, em que cada distrito tinha autoridade para isolar áreas onde foram detectados casos. Isso gerou situações insólitas, como pessoas trancadas por 48 horas em bares, lojas e escritórios, mas n��o baixou o nível de contágio. Daí o amplo lockdown em duas etapas iniciado domingo.

É uma mudança em relação às táticas mais rígidas adotadas em outros surtos como o de Xian, na virada do ano, quando a cidade inteira ficou mais de um mês sob confinamento. Num país vasto, com uma população imensa e espaço mínimo para manifestações públicas de crítica ao desempenho do governo, é quase impossível saber ao certo para onde pende a opinião pública. Mas a impressão é de que a maioria dos chineses continua apoiando a estratégia de tolerância zero com o vírus — mesmo que isso signifique sacrifícios coletivos.

No fim das contas, um dos maiores sucessos do governo foi não apenas conter o vírus, mas convencer boa parte da população de que o custo de baixar a guarda seria bem mais alto. Certamente há uma fadiga na população depois de dois anos de restrições, com fronteiras fechadas, testes frequentes e quarentenas. Não é incomum ouvir queixas, mas elas geralmente não são direcionadas contra a estratégia oficial, e se parecem mais com os lamentos impessoais que alguém faria sobre o mau tempo.

Uma nova mania é adaptar clássicos da literatura aos tempos da pandemia, como o início de “A metamorfose”, de Franz Kafka: “Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonos intranquilos, descobriu que seu bairro estava isolado.” Muitos chamariam de kafkiano o relaxamento das regras contra a Covid-19 em outros países, apesar do alto número de casos. O tapa do ator Will Smith no comediante Chris Rock na cerimônia de entrega do Oscar também foi destaque nas redes sociais chinesas, mas entre os comentários mais comuns estava o espanto com o fato de ninguém estar usando máscara.

O governo não admite que a política de Covid zero tenha ficado para trás, mas na imprensa estatal há cada vez mais sinais de que novos caminhos estão sendo explorados. Ainda é cedo para dizer se a mudança que está sendo implementada em Xangai indica que as táticas anteriores estavam erradas, o certo é que todas as experiências “são válidas para o país”, disse o imunologista Zhung Shilihe ao jornal “Global Times”. Toda política de combate ao vírus tem seu preço, acrescentou, a questão é qual deles é o escolhido a ser pago.

No caso de Xangai, a escolha foi não pagar o preço de uma paralisia total do maior centro financeiro do país, uma cidade com PIB equivalente ao da Argentina e do Chile somados e onde fica o maior porto do mundo. Por isso a decisão foi dividir o lockdown em duas fases, algo que não havia sido ainda tentado em dois anos de pandemia. Jun Taichi, sócio da rede de restaurantes brasileiros mais conhecida da China, a churrascaria Latina, acredita que a economia em Xangai logo voltará ao normal após a paralisação.

Sua confiança vem da rapidez com que os negócios foram retomados após o fim do recente lockdown na cidade de Shenzhen, conhecida como o “Vale do Silício” da China, onde funcionam duas filiais do seu restaurante. Para a rede Latina, a pandemia trouxe mais altos do que baixos. No ano passado, o faturamento foi 25% maior do que em 2020 e em maio a rede abrirá o décimo-primeiro restaurante na China, que será o segundo em Pequim. O crescimento da receita se deve às restrições a viagens ao exterior. Elas direcionaram o dinheiro que seria gasto em outros países para opções de lazer domésticas, como os restaurantes. Apesar das dificuldades, Jun acha que a maioria dos chineses apoia a política do governo.

— Muitos estrangeiros reclamam. Mas entre os chineses a opinião em geral é que é preciso cooperar com o governo, porque no fim das contas o resultado da política de Covid zero é bom para todo mundo.

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