Marcelo Ninio
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Marcelo Ninio

Repórter desde 1989, passou por O GLOBO, Jornal do Brasil, EFE e Folha de São Paulo.

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Marcelo Ninio

Passou pelas redações do Jornal do Brasil, Agência EFE e Folha de S.Paulo. Tem mestrado em relações internacionais pela Universidade de Jerusalém.

Por Marcelo Ninio


Mais de um mês após entrar em alerta máximo diante do aumento de casos de Covid-19, Pequim começa a voltar ao normal. Ou quase. Os testes diários continuam e algumas áreas da capital onde há transmissão comunitária ainda estão sob restrições. Mas na maior parte da cidade a reabertura nesta segunda-feira de restaurantes, cinemas, escolas e outros estabelecimentos, afasta, por enquanto, a possibilidade de um drástico confinamento coletivo, como o imposto em Xangai por dois meses.

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É um alívio, ainda que todos o considerem temporário. Afinal, a política de Covid zero não tem data para acabar. Para a população da capital, ao que parece, nada foi mais sofrido neste período que o fechamento dos restaurantes, o local favorito de lazer e congregação. Comida é coisa séria na China, e mesmo entre as pessoas mais humildes uma refeição trivial muitas vezes ganha ares de banquete.

Bares tradicionalmente não fazem parte da cultura do país, embora eles sejam cada vez mais numerosos nas grandes cidades por influência estrangeira. Os chineses bebem em torno da mesa, de preferência com uma infinidade de pratos rodando na frente.

Sem restaurantes, o jeito foi improvisar. Nos 36 dias em que durou o lockdown gastronômico, Pequim redescobriu um prazer antigo, que fazia parte da paisagem da cidade mas que foi desaparecendo aos poucos: a comida de rua. Para diminuir o prejuízo, cardápios de todo tipo foram oferecidos em bancas montadas nas portas dos restaurantes, e os piqueniques se alastraram. Mesinhas dobráveis viraram item popular, cercadas de grupos de cócoras dividindo comes e bebes. Eram cenas raras nos últimos anos, em que um choque de ordem fez praticamente desaparecer a comida de rua que costumava ser onipresente, da sopa picante que acordava os notívagos ao café da manhã que espantava a ressaca com o popular e delicioso “jianbing”, espécie de crepe chinês. Por um momento, Pequim voltou às suas raízes.

Diante do endurecimento das medidas de controle do vírus, os moradores de Pequim reagiram à ansiedade de formas diferentes, e basicamente se dividiram em dois grupos: os que procuravam sair pouco de casa, para evitar o contato com um caso positivo e o risco de quarentena; e os que passavam o maior tempo possível fora, para curtir o verão e aproveitar enquanto podiam uma liberdade talvez efêmera, antes que Pequim virasse Xangai. Entre extremos, a cidade ganhou um ar insólito de feriado prolongado, com ruas vazias e algumas bolhas de animação.

A maior delas foi a margem do rio Liangma, que tornou-se o lugar favorito para caminhadas, refeições ao ar livre e festas de arromba que vararam a madrugada. Poluído e inacessível até alguns anos atrás, ele renasceu após passar por uma revitalização radical, que devolveu as águas aos nadadores e suas margens às famílias como uma das mais disputadas áreas de lazer.

O iminente lockdown também resultou no reaparecimento de um personagem que já fora típico na cidade e que estava ausente, o vendedor de rua. Ele também havia quase desaparecido na “limpeza” promovida pelas autoridades municipais desde 2014, mas agora está de volta em muitas esquinas de Pequim. Vendem de tudo, de roupas a quentinhas, de frutas a antiguidades e amuletos, sem contar os ambulantes que viram um jeito de ganhar um troco abastecendo os festeiros na beira do rio com bebidas, isopor a tiracolo. Faz parte do jeito empreendedor dos chineses, mas também do desemprego que aumentou com as medidas de restrição. As autoridades fazem vista grossa, por enquanto.

Quem tem idade suficiente e vivência em Pequim costuma lembrar em especial de dois momentos de euforia na cidade nas últimas décadas. O primeiro foi na década de 1980, quando a China se reerguia da década perdida na Revolução Cultural e dava os primeiros passos na abertura econômica que transformou o país na potência que é hoje. O segundo momento foi o período anterior às Olimpíadas de Pequim, em 2008, em que o entusiasmo tomou conta da cidade, como num espetáculo prestes a estrear. Os últimos 36 dias não chegaram perto disso, mas deram vez a um renascimento das ruas, o melhor de Pequim.

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