Foto: Rita Ansone

Uma amiga que integrava as equipas de sensibilização para as questões ambientais nas escolas públicas de Lisboa contava-me que, quando sentia que o público se começava a alhear do tema, enveredava por uma explicação mais dramatizada, demonstrando, a partir de alguns exemplos de catástrofes, que o planeta sobreviverá revoltando-se contra quem não o preserva. Ou seja, procurava demonstrar que a nossa acção ambiental era fundamental como forma de auto-sobrevivência. Explicava que a Natureza se reinventa a partir das cinzas de espécies que desaparecem.

Esta forma de captar a atenção das crianças para o tema tem a enorme vantagem de não falhar muito à verdade, arrasando as narrativas negacionistas, mas também confinando narrativas floreadas que colocam o ser humano no centro e tutelando a Natureza com bonomia.

Uma maior e mais efectiva consciência ambiental não deverá ser exigida para “salvar árvores”, mas para nos proporcionar condições de sobrevivência, para as quais as árvores são fundamentais. Entre outras coisas, todos sabemos que um carro utiliza combustíveis fósseis e polui o ar emitindo carbono (na forma de CO2) e outros gases e partículas prejudiciais à atmosfera e à nossa saúde. Devemos, por isso, diminuir a sua utilização. A partir da evidência científica, devemos concluir que a diminuição da circulação automóvel deva ser um objectivo das políticas públicas para as próximas décadas. 

Estas alterações não ocorrem da noite para o dia. As pessoas não vão deixar de usar o automóvel amanhã, nem vão deixar de  precisar dele, até pelo facto das outras soluções de mobilidade não darem resposta à maioria das circulações quotidianas. Mais: tão pouco quer dizer que as pessoas devam ter mais dificuldade em movimentarem-se dentro ou para a cidade. Implica, isso sim, que as políticas públicas passem a dar absoluta prioridade a outras formas de mobilidade, provavelmente por esta ordem: mobilidade pedonal, transportes públicos e colectivos, transporte individual de mobilidade suave como bicicletas, trotinetas ou outros  meios semelhantes. 

O recente levantamento de habitantes e comerciantes de Arroios, contra a decisão do executivo da Junta de Freguesia de Arroios em acabar com mais de três dezenas de esplanadas, recuperando mais espaço de estacionamento para automóveis, coloca um conjunto de  temas interessantes sobre o que devem ser as políticas públicas.

Comecemos por notar que uma esplanada não é, por si, um instrumento que qualifique o espaço público. Também em Arroios, no Largo do Intendente (por sinal em frente à sede da Junta de Freguesia), temos uns quantos casos de esplanadas sumptuosas e  progressivamente muradas que abusam do espaço público e dos valores que pedem por qualquer consumo, desenhando num Largo construído com o dinheiro de todos uns quantos condomínios de consumo a que poucos locais podem aceder.

Aliás, em fóruns académicos e de discussão de políticas de cidade, nacionais e internacionais, não raras vezes assisto à apresentação do Largo do Intendente como um caso de estudo sobre as formas abusivas de mercantilização de um espaço público que, por natureza, seria  apropriado por pessoas das vizinhanças e, sobretudo, crianças.

Mas não são estas as esplanadas que a Junta de Freguesia de Arroios pretende encerrar. São aquelas que foram construídas no decorrer do período da pandemia, substituindo lugares de estacionamento. Ou seja, troca-se um espaço privado de uso colectivo (não tão social e financeiramente exclusivo como as esplanadas do Intendente) por um espaço privado para parquear automóveis.

Sendo certo que Arroios tem carência de lugares de estacionamento e a circulação em busca de estacionamento é tremendamente nefasta para a vida dos bairros, a substituição de esplanadas por estacionamento é uma má prática urbanística. Podemos tratar o  tema do ruído com fiscalização, podemos tratar o tema do desenho das esplanadas com a exigência de licenciamento de um projecto de arquitectura adequado, podemos defender que as esplanadas sejam espaço público em determinadas horas, podemos verificar as condições da sua implantação, mas não a sua mera substituição por lugares para o automóvel.

Desta avaliação pode haver esplanadas que tenham de encerrar, mas haverá, certamente, muito mais que deverão nascer para construir novos lugares de usufruto colectivo. Não deverão ser espaços encerrados ou amuralhados, não deverão ser espaços com preços incomportáveis para a maioria das pessoas e não deverão ser espaços de “branding” urbano. Deverão ser espaços que qualifiquem as ruas em que se implantam. 

Arroios é uma das freguesias de Lisboa com menos qualidade nos seus espaços públicos e, sobretudo, nos seus passeios.

Veja-se a derrama de lixos na via pública, a falta de manutenção da calçada, os passeios exíguos, o estacionamento abusivo, a parafernália de elementos fixos dispostos de forma selvática e sem regra. Até as obras municipais decorrentes do plano de drenagem dão prioridade à circulação automóvel e desqualificam passeios e mobilidade pedonal. É importante um sobressalto popular que obrigue a políticas urbanísticas mais exigentes, sustentáveis e qualificadas.

*O autor escreve com o antigo Acordo Ortográfico


Tiago Mota Saraiva

Tiago Mota Saraiva

Arquiteto, urbanista e professor na Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa


O jornalismo que a Mensagem de Lisboa faz une comunidades,
conta histórias que ninguém conta e muda vidas.
Dantes pagava-se com publicidade,
mas isso agora é terreno das grandes plataformas.
Se gosta do que fazemos e acha que é importante,
se quer fazer parte desta comunidade cada vez maior,
apoie-nos com a sua contribuição:

Arquiteto, urbanista e professor na Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa

Deixe um comentário