Flávio Gil e João Paulo Soares fitam o Tejo ao pé da ponte 25 de Abril, o rio que é ao mesmo tempo inspiração e motivo de alegria e orgulho. Com a música O Tejo Afinal, a dupla de letristas venceu o concurso das Marchas de Lisboa deste ano, a Grande Marcha de Lisboa de 2024, e escreveram a letra que vai ser entoada por todas os bairros no desfile na Avenida da Liberdade, a 12 de junho.

Os vencedores foram escolhidos pelo júri da Lisboa Cultura (ex-EGEAC) da Câmara de Lisboa entre 34 outras composições candidatas, por terem conseguido refletir nas águas do Tejo – o rio, o tema proposto aos concorrentes neste ano – as múltiplas cores das “gentes, costumes e tradição de Lisboa”, lê-se no site da EGEAC.

A letra vencedora da Grande Marcha de Lisboa em 2024, O Tejo Afinal.

Uma sensibilidade construída por uma dupla com experiência musical, tanto no ofício de escrever e compor as Marchas de Lisboa como na capacidade de trazer para esse universo a vivência noutros ofícios – enriquecendo assim uma tradição quase secular, iniciada em 1932. No caso de Flávio Gil e João Paulo Soares, falamos dos anos de dedicação ao teatro.

A mesma receita foi utilizada por uma estreante neste ano nos desfiles, a poeta Maria do Rosário Pedreira, à espera de pisar na Avenida da Liberdade com o pé direito.

A escritora e cronista de fado da Mensagem aceitou o desafio de Alfama para escrever a marcha de 2024 e recorreu à semelhante experiência de quando foi desafiada por Carlos do Carmo a emprestar o talento dos seus versos à poesia de um fado: uma imersão na alma do género.

A poeta Maria do Rosário Pedreira estreia-se ano como letrista da Marcha de Alfama. Foto: Rita Ansone.

8 Marchas de Lisboa no mesmo ano

Para o ator e encenador Flávio Gil, 33 anos, os anos no teatro de Revista à portuguesa foram fundamentais na sua versão como autor de marchas. “Escrevi e ainda escrevo bastante… e parte da lírica das Marchas já estava lá”, conta o homem dos palcos e do ecrã, nascido em Lourinhã, mas lisboeta desde cedo, sempre interessado nas suas tradições.

“Na adolescência, comecei a frequentar o Grupo Dramático e Escolar Os Combatentes, no bairro da Fonte Santa, em Campo de Ourique, e a prestar atenção às conversas e às histórias dos vizinhos. Foi esse o meu primeiro contato com uma Lisboa popular”, conta Flávio, sobre os dias de convivência entre os Combas

O ator Flávio Gil aproveita o turismo que faz por Lisboa, a cidade onde vive, para conseguir inspiração. Foto: Líbia Florentino.

O contacto seguinte com a cidade surgiu de forma inusitada: através de passeios turísticos… na cidade onde o ator vive. “Devo ser o lisboeta que mais faz turismo por Lisboa!” Um turista-local, às margens do Tejo, tema da marcha campeã de 2024. 

“A minha relação com Lisboa é a minha relação com o Tejo. Lisboa não seria o que é sem o Tejo. Uma cidade beijada por um rio tem um encanto diferente.” 

A experiência da observação dos vizinhos Combas, somada aos passeios turísticos na própria cidade, estão na essência das dezenas de Marchas de Lisboa escritas por Flávio Gil, desde 2010. A primeira para o Lumiar, seguida de tantas outras, muitas delas simultâneas numa mesma edição do desfile. 

Como em 2022, quando voltou a assinar a letra da marcha do Lumiar, mas também do Castelo, Mouraria, Bairro Alto, Boa Vista, Baixa, do Mercado e Belém. Portanto, oito Marchas diferentes para oito bairros distintos, num mesmo ano – três delas já em parceria com o João Paulo Soares.

Convites que chegaram impulsionados pela fama de bom letrista obtida após a primeira vitória num concurso para uma Grande Marcha, em 2017, com Lisboa, Mar de Encontros, ao lado do compositor Carlos Dionísio, outro frequentador assíduo nas fichas técnicas das Marchas lisboetas. 

“A inspiração é um bicho esquisito. Às vezes, leva-se uma semana para redigir uma Marcha, noutras passa-se um mês só no refrão. No caso de O Tejo Afinal, foi tudo muito rápido e o refrão veio em apenas uma hora.” 

A produção de letras de Marchas de Lisboa em série, porém, cobraria o preço da fadiga e levaria Flávio Gil a tomar a drástica decisão, em 2023, de dar por encerrada a carreira de letrista. “Às vezes, o resultado final não corresponde por completo, não traz tantas alegrias, mas algumas frustrações”, justifica.

A pausa estava, então, decidida. Mas quem é do ramo não resiste por muito tempo às ausências. Bastou uma tarde de almoço na companhia do velho amigo para, entre copos e pratos de choco frito, a inspiração lhe bater à porta. 

Um almoço ali mesmo, em frente ao Tejo.

O compositor que conhece os humores do Tejo

Todas as manhãs, João Paulo Soares dá os “bons dias” ao rio, o companheiro nos passeios matinais. Morador do Restelo, caminha seis quilómetros à beira Tejo, não como turista na própria cidade, mas para manter a saúde em dia. Uma intimidade que lhe garante alguns privilégios, como conhecer os humores do rio pela cor, que serve de inspiração à letra vencedora da Grande Marcha.

João Paulo Soares e o seu companheiro matinal de caminhadas: de vez em quando, o rio sopra-lhe algo aos ouvidos. Foto: Líbia Florentino.

Às vezes o Tejo sopra-lhe algo ao ouvido, mas não veio do rio a ideia de voltar a escrever uma marcha com o amigo. “Foi o Flávio quem espicaçou”, diz o compositor de 62 anos, nascido no Porto, lisboeta desde 1981.

Autor de dezenas de peças para o teatro e para produções na televisão, onde trabalhou, na RTP, (de outros pares de mãos cheias de Marchas, a primeira delas em 2000, para Madragoa), João Paulo Soares também caiu na armadilha da rotina das produções em sequência. E, como o amigo, também cogitava pendurar as partituras. 

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O vídeo com a letra e melodia da vencedora da Grande Marcha de Lisboa 2024

“Até que num certo dia, durante um almoço, o Flávio subitamente virou-se e disse: Eh pá, vamos só mais este ano. E vamos concorrer à grande!”, recorda-se da conversa travada em sua casa no Restelo, tendo o Tejo por testemunha. 

João Paulo não teve tempo nem de digerir o choco frito nem a proposta do amigo. Logo após o almoço, um esboço da letra chegava ao seu e-mail. “Nós já tínhamos trabalhado juntos bastante, tanto nas Marchas como no teatro, e sempre correu tudo muito bem. Ficou aquele desejo de continuar e aceitei”, afirma.

Pesou também na decisão a certeza de que o processo criativo não seria penoso.

“Há várias formas de aproximação da composição a uma letra, algumas mais fáceis e outras que nos exigem mais. Porém, já conhecia o trabalho de criação de Flávio, sabia por onde ir. Ele mandou um esboço no mesmo dia do almoço e pensei num tema que falasse ao coração dos lisboetas sobre o Tejo, uma relação que não se pode ignorar”, explica o compositor. 

A dupla tem levado a experiência do teatro para as marchas, numa parceria que venceu a Grande Marcha de 2024. Foto: Líbia Florentino.

Do esboço inicial à marcha composta, bastaram apenas um par de dias. Durante o inspira e expira da caminhada matinal à beira do rio, a inspiração das musas tratou de completar o serviço. 

“Pensei naquela imagem do rio, a lentamente cumprir o seu percurso e a construção veio de forma redonda”, conta o compositor que conversa com o Tejo.

O encontro da poesia com a Marcha

Maria do Rosário Pedreira não sofre da mesma fadiga provocada por anos a fio a escrever Marchas para o Santo António. A posar na varanda do seu apartamento para as fotografias da reportagem, com a praça do Areeiro em cenário, o sentimento que tem rondado a poeta nos dias que antecedem a estreia como autora de uma marcha é outro: o de ansiedade. 

“Já ouvi a marcha numa gravação, mas só devo vê-la em ação com os marchantes, entre gestos e adereços, no ensaio geral. Tenho ansiedades, mas foi a sugestão dos coordenadores e achei por bem assim”, conta a poeta que já escreveu dezenas de letras de fado e uma biografia de Amália para miúdos.

Maria do Rosário Pedreira: da poesia para o fado e, agora, para as marchas: retorno às origens às inspirações de infància. Foto: Rita Ansone.

Amália, que começou a carreira como cantora de Marchas, lembra Maria do Rosário Pedreira, estabelecendo a ligação entre os dois géneros, mais próxima do que se pode imaginar. 

“O Fado e a Marcha estão muito ligados desde sempre. A Marcha é um género de Fado em quatro quadras, um pouco mais acelerado, embora o Fado possa ser cantado no ritmo de uma Marcha. A diferença é que a Marcha tem um refrão e o Fado, geralmente, não.”

Maria do Rosário Pedreira vê a estreia nas Marchas de Lisboa como um processo natural de quem começou a escrever os primeiros versos ainda em criança.

“Quem escreve poesia desde cedo fá-lo copiando os modelos. E, nessa idade, os modelos são a rima e a métrica, que se metem no armário do Fado e da canção, como as Marchas. A poesia não é assim. Digamos que foi um regresso àquela infância”, comenta a poeta, há tempos uma consultora informal da Marcha de Alfama.

“O coordenador da Marcha de Alfama, o João Ramos, é meu amigo de longa data e desde que lá está tem pedido a minha opinião. Liga-me e pergunta: vê se soa bem? No início do ano, ele ligou-me. Disse que de ano para ano a exigência em relação às letras é maior e convidou-me a escrever a música deste ano”, conta. 

Desafio semelhante ao proposto em 2007 pelo fadista Carlos do Carmo para que Maria do Rosário Pedreira (e outros poetas) escrevesse um fado para o disco A Noite, aproximando um género literário considerado erudito a um estilo popular. O que não era uma novidade, tendo Amália – sempre ela – já se atrevido anteriormente.

Para a poeta, o erudito pode muito bem dialogar com o popular, e vice-versa. Foto: Rita Ansone.

“Em Com que voz, Amália ousou levar Camões para fado. Foi um escândalo entre os estudiosos camonianos, ainda mais quando ela decidiu retirar uma das estrofes por achar que não fazia sentido”, diverte-se Maria do Rosário Pedreira. 

Sem ferir suscetibilidades, desde o convite de Carlos do Carmo, a poeta já escreveu mais de 70 fados e outras canções, cantadas por artistas como Aldina Duarte, Pedro Moutinho, Ana Moura, Ricardo Ribeiro, António Zambujo e Salvador Sobral, entre tantos outros. 

A nova aventura musical exigiu disciplina de Maria do Rosário Pedreira, apesar da proximidade de estilo entre o fado e as marchas. 

“O tamanho semelhante dos versos é um ponto positivo, mas tive de perceber melhor a mecânica da Marcha, principalmente em relação ao refrão. Ouvi as Marchas anteriores de Alfama, até como uma forma de me situar ainda mais no bairro. Escrevi duas versões, mas como uma tratava do Tejo, o tema da Grande Marcha, usei-a para um fado.”

Depois de um mês de trabalho, foi só fazer os pequenos ajustes para retirar “as coisas que estavam a ranger” e dar o trabalho por concluído.

Agora, é controlar a ansiedade para ouvir a letra escrita por ela ecoar poesia na Avenida da Liberdade. 


Álvaro Filho

Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.

alvaro@amensagem.pt

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3 Comentários

  1. Modestamente quero informar que já ganhei por duas vezes a Grande Marcha de Lisboa Em 2009 Lisboa é uma Festa”
    e em 2022 “Amália é Lisboa” evoca os 100 anos do seu nascimento Meu nome é José Reza , autor/compositor e tive a parceria de um grande poeta , embora não conhecido nestas lides , de nome Joaquim Isqueiro

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