Foram dois meses, sozinha, com Os Lusíadas e pouco mais na bagagem, por todos os lugares onde o poeta Luís de Camões parou, viveu e deixou marcas da sua passagem, ao longo dos 17 atribulados anos que andou mundo fora. Maria João Lopo de Carvalho é também ela escritora e decidiu, há anos, embarcar naquela viagem para encontrar a memória do poeta que agora dará nome ao novo aeroporto, em Alcochete. Até dobrou também ela o cabo da Boa Esperança, num veleiro.

Essa viagem deu um romance histórico: Até que o Amor me Mate (que é um verso do poeta), em que a história de Luís Vaz de Camões é contada através das vozes de sete mulheres da vida dele. Além da mãe (ou madrasta que o criou como filho), Ana de Sá, as vozes das possíveis amantes ou amadas (D. Violante de Andrade, condessa de Linhares, D. Catarina de Ataíde, D. Francisca de Aragão, Bárbara, Dinamene e Inês de Sousa) cruzam-se para contar a autêntica epopeia que foram os 55 anos de vida do poeta cujo dia da morte, 10 de junho, foi transformado em feriado nacional. Este dia que se tornou o Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas.

“Portugal é o único país do mundo que comemora o seu dia no dia da morte de um poeta. Nem Cervantes, em Espanha, nem Shakespeare, em Inglaterra, têm essa honra”, assinala a escritora.

Feita a apresentação, que nos levou a lugares distantes, do cabo da Boa Esperança à ilha de Moçambique, Mombaça, Melinde, Mascate, Ormuz, Damão, Diu, Goa, Cochim, Taprobana (hoje Sri Lanka), Malaca, Molucas, Vietname (foz do rio Mekong) e, por fim, Macau, é tempo de calcorrear a Lisboa de Camões.

500 anos depois de ele ter nascido, Lisboa está a celebrá-lo com o roteiro “Lisboa de Camões”, guiado por Maria João Lopo de Carvalho e inserido na programação da Câmara Municipal de Lisboa das Comemorações Municipais do V Centenário de Camões.

Do Camões ao Tronco

O ponto de encontro é na Biblioteca Camões, no Largo do Calhariz, 17. Numa sala do primeiro andar.

É muito pouco o que se sabe com certeza sobre o poeta, mas sabe-se que foi em Lisboa que passou os primeiros anos da idade adulta, entre a corte, onde exibia um talento e uma cultura literária raros, e as ruas, vielas e tabernas, onde levava uma vida boémia e desregrada, pontuada por bulhas e zaragatas, em que se envolvia frequentemente e que ditariam o exílio forçado no Oriente. Foi também aqui que passou os últimos de vida, pobre, desiludido e com um único objetivo: publicar a sua obra maior – Os Lusíadas.

É por essa Lisboa que seguimos:

A primeira paragem é óbvia: a Praça Luís de Camões, vulgarmente conhecida como Largo de Camões, onde, em 1867, foi inaugurada uma estátua ao poeta, da autoria do escultor Victor Bastos.

Maria João Lopo de Carvalho procura uma sombra, para falar da estátua tão familiar a todos os lisboetas, mas sobre a qual talvez saibamos quase nada. Com quatro metros de altura, em bronze, assenta num pedestal octogonal e está rodeada de oito estátuas menores de importantes figuras da cultura portuguesa dos séculos XV, XVI e XVII: os cronistas Fernão Lopes e Gomes Eanes de Azurara, o matemático e cosmógrafo Pedro Nunes, os historiadores João de Barros e Fernão Lopes de Castanheda e os poetas Vasco Mouzinho de Quevedo, Jerónimo Corte-Real e Francisco de Sá de Menezes.

Quando se celebram os 500 anos do nascimento de Luís de Camões, a praça com o nome do poeta engalanou-se com versos dele – “a mim bastava o amor somente”, lê-se num dos panos coloridos – pretexto para Maria João lançar os desafios que lança quando vai a escolas falar de Camões. Que verso dele melhor define o amor para si? Com que verso dele mais se identifica? “Erros meus, má fortuna, amor ardente” é o escolhido da escritora, diz ela a rir, notando que ele “é o príncipe dos poetas precisamente porque 500 anos depois continuamos a conseguir-nos identificar com o que escreveu”.

Próxima paragem: a estátua do poeta Chiado, no Largo do Chiado.

O passeio é atribulado. Os milhares de turistas que enchem a Baixa de Lisboa impedem a fluidez do percurso. E junto à estátua do poeta Chiado, um músico de rua canta Coldplay em volume máximo, dificultando a audição do que a escritora diz sobre o poeta feito estátua.

“For some reason, I can’t explain
I know Saint Peter won’t call my name
Never an honest word
But that was when I ruled the world.”

De certa forma, faz sentido. António Ribeiro, o poeta satírico quinhentista que ficou para a história como Chiado, também era um saltimbanco que fazia destas ruas, e deste largo em particular, palco e ganha-pão.

Contemporâneo de Luís de Camões, seria seu amigo ou pelo menos conhecido, uma vez que, conta Maria João Lopo de Carvalho, é referido por ele num dos autos que lhe são atribuídos (a Camões, bem entendido): o Auto de El-Rei Seleuco.

Sentado num banco, vestido com o hábito de monge com que sempre andava vestido, numa posição inclinada e com uma expressão de escárnio, representa, entre os maiores poetas da língua portuguesa, Camões, na praça acima, e Pessoa, em frente, à mesa d’A Brasileira do Chiado, os poetas populares da cidade, os poetas malditos, os artistas de rua.

A estátua, em bronze, é de Costa Motta e a base, em pedra de lioz, é de José Alexandre Soares. Aqui inaugurada em 1925, foi motivo de alguma polémica, com intelectuais da época a oporem-se à homenagem naquele lugar a um poeta menor. Mas que outro lugar poderia ter sido escolhido para a estátua de um poeta que se irmanou de tal forma com aquele território que a ele foi buscar o nome?

teatro nacional D. Maria II obras
Onde hoje está o Teatro Nacional D. Maria II, estava, no tempo de Luís de Camões, o Palácio dos Estaus. Lugar de boémia e afirmação poética na juventude do poeta, que ali frequentou a corte, foi depois palco de difíceis negociações com a censura da Inquisição para a publicação de Os Lusíadas, quando ali estava sedeado o Tribunal do Santo Ofício. Fotos: Catarina Ferreira.

Pelo meio da multidão, avançamos para a próxima paragem, no Rossio, junto ao Teatro Nacional D. Maria II. Ali, durante a vida de Luís de Camões, erguia-se um palácio, o Palácio dos Estaus, que hospedava embaixadores e outros nobres visitantes estrangeiros da corte, mas que também foi morada de D. João III – e, portanto, da corte – e finalmente albergou o Tribunal do Santo Ofício.

Camões tê-lo-á frequentado enquanto cortesão, na juventude, e depois para negociar com a Inquisição a edição e publicação de Os Lusíadas, nos últimos anos de vida.

Anos que terá vivido ali perto, na Calçada de Santana, mas não é lá que vamos a seguir. A seguir vamos ao Pátio do Tronco, com entrada na Rua das Portas de Santo Antão, onde Luís de Camões esteve preso durante nove meses por causa de uma zaragata em que se envolveu nas imediações, na noite do Corpo de Deus, 15 de junho de 1552.

A bulha foi séria e causou ferimentos graves a um criado do rei, Gonçalo Borges. Preso na Cadeia do Tronco, teve a pena comutada por D. João III na condição de partir para as Índias ao serviço deste, como determina uma carta régia de 7 de março de 1553.

O painel de azulejos que marca a importância deste lugar na vida de Camões é da autoria de Leonel Moura. O retrato do poeta ali reproduzido terá sido o único feito em vida. Barba ruiva, cego de um olho, circunspeto. Maria João Lopo de Carvalho lembra como o detestava, a ele e aos Lusíadas que a obrigavam a dividir em orações a Português, até que uma professora, daquelas que marcam a vida dos alunos, a fez querer seguir Línguas e Literaturas Modernas, ela que estava destinada a ser médica como o avô.

Foi na Universidade Nova de Lisboa que passou do ódio ao amor e se “apaixonou perdidamente por Luís Vaz de Camões, com quem, não fossem os insuperáveis 438 anos de diferença de idades, teria sido feliz”.

Na verdade, apesar disso, ou por causa disso, Maria João Lopo de Carvalho tem sido feliz com ele. E isso percebe-se quando fala dele. Mesmo no meio da confusão da cidade.

Maria João Lopo de Carvalho
Foto: Catarina Ferreira.

Maria João Lopo de Carvalho foi professora de Português e de Inglês, trabalhou como copywriter em publicidade e passou pelas áreas de Educação e Cultura da Câmara Municipal de Lisboa. Tem mais de setenta títulos editados, entre romances, livros de crónicas, manuais escolares e livros infantojuvenis. Escreveu cinco romances históricos: Marquesa de Alorna (2011), Padeira de Aljubarrota (2013), Até que o Amor me Mate (2016), O Fado da Severa (2018) e O Bisavô (2020).


Catarina Pires

É jornalista e mãe do João e da Rita. Nasceu há 49 anos, no Chiado, no Hospital Ordem Terceira, e considera uma injustiça que os pais a tenham arrancado daquele que, tem a certeza, é o seu território, para a criarem em Paço de Arcos, terra que, a bem da verdade, adora, sobretudo por causa do rio a chegar ao mar mesmo à porta de casa. Aos 30, a injustiça foi temporariamente corrigida – viveu no Bairro Alto –, mas a vida – e os preços das casas – levaram-na de novo, desta vez para a outra margem. De Almada, sempre uma nesga de Lisboa, o vértice central (se é que tal coisa existe) do seu triângulo afetivo-geográfico.

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