A Villa Sousa, um palacete prémio Valmor de 1912 projetado pelo arquiteto Norte Júnior, um edifício imponente no n.º 22 da Alameda das Linhas de Torres, no Lumiar, foi esquecido durante anos a fio. Hoje, desse palacete antigo, só sobrevivem a fachada e as paredes.

Mas as obras ali recentemente iniciadas vieram reavivar a memória aos lisboetas. O alarme soou no Fórum Cidadania Lx, um grupo de Facebook que reúne vários residentes em Lisboa: estaria o que resta da Villa Sousa, ou Palacete da Alameda das Linhas de Torres (como também é conhecido), em risco de ser demolido?

À Mensagem, a Câmara Municipal de Lisboa esclareceu que naquele terreno se procede a uma operação de loteamento, ou seja, na constituição de vários lotes para edificação urbana. Um processo que foi iniciado em 2010, e cujo pedido de obras foi discutido e aprovado em reunião de Câmara Municipal no dia 19 de julho de 2023. Nele, identifica-se o edifício Villa Sousa como património a manter. 

Mas, afinal, em que consiste este novo projeto que está para nascer na Alameda das Linhas de Torres?

Trata-se de uma operação delimitada a norte pela rua Joaquim Agostinho, a sul pela rua Agostinho Neto, a nascente pela rua Embaixador Martins Janeira e a poente pela Alameda das Linhas de Torres. Uma operação levada a cabo pelas sociedades PGCG 1, 2, 3, 4, 5 – Investimentos Imobiliários, S.A., a SOLATU (Sociedade de Administração de Propriedades, Lda.), a EMPCO – Empreendimentos Comerciais e Urbanísticos, Lda. e a ODIVE-LAR.

Ali, estão previstos 11 lotes dedicados à habitação e ao setor terciário, com comércio, prevendo-se um número máximo de 405 fogos ao todo, numa área total de construção de 67 958,25 m2.

Deverá nascer também um espaço verde – cedido pelo município – para utilização coletiva, assim como espaços pedonais, passeios, zonas de vias e circulação e lugares de estacionamento público de superfície.

Planta da operação de loteamento (o lote E2 abrange a Villa Sousa). Fonte: Metodologia de reabilitação arquitetónica Palacete Villa Sousa

Quanto ao que resiste do Palacete das Alamedas das Linhas de Torres, essa estrutura permanecerá, integrada num lote destinado ao uso terciário. Qual? Segundo a CML, estando neste momento em causa uma fase de loteamento, não é ainda possível licenciar-se uma atividade específica para o edifício.

A operação de loteamento em vigor identifica a estrutura da Villa Sousa num lote com uma área de 1568,29 m2, dos quais 902,60 m2 se destinam ao uso terciário.

O que é certo é que este edifício é ainda um guardador de histórias sobre a cidade antiga e a conservação do património de outros tempos – e por isso fez soar os alarmes dos vizinhos e curiosos lisboetas.

“A mais bella casa edificada na cidade de Lisboa no anno de 1912

Para se contar a história da Villa Sousa, ou Palacete da Alameda das Linhas de Torres, é preciso recuar a um tempo em que ele ainda não existia.

Esse tempo está lembrado no trabalho “Metodologia de reabilitação arquitetónica: Palacete Villa Sousa”, de José Luís Camões Tavares. No século XVI, o lugar onde hoje se encontra a Villa Sousa era conhecido como o “Campo 28 de Maio”. Aí instalou-se um passeio público, que passaria a chamar-se “Campo Grande”, onde se plantou arvoredo num jardim de estilo romântico que chega até ao século XIX com o mesmo traçado, tornando-se palco das primeiras corridas de cavalos.

Até ao século XX, a Alameda do Lumiar, como então se chamava a Alameda das Linhas de Torres, era considerada um lugar “fora de portas”. Em 1911, ganharia o nome pelo qual hoje a conhecemos. Nada mais nada menos que uma alusão às linhas de Torres Vedras que, durante as invasões francesas, impossibilitaram a progressão do exército do comandante Massena, obrigando à sua retirada de Portugal.

O Jardim do Campo Grande, antigo Campo 28 de Maio. Foto: Arquivo Municipal de Lisboa

Foi no início do século XX que José Carreira de Sousa, um banqueiro sobre o qual pouca informação se encontra, encomendou ao arquiteto Norte Júnior um projeto de um palacete nessa mesma alameda, tendo como construtor civil Zacharias Gomes Lima. O projeto deu entrada nos serviços camarários a 15 de outubro de 1910.

Em 1912, o Palacete Villa Sousa, caracterizado pela elegância do torreão, o trabalho escultórico das cantarias e o recurso ao arco pleno e aos colunelos, arrecadou um Prémio Valmor – o segundo vencido pelo seu arquiteto – com os membros do júri a considerar o palacete a mais bella casa edificada na cidade de Lisboa no anno de 1912”. Um prémio que distingue a qualidade arquitetónica do edificado da cidade de Lisboa.

Foto: Arquivo Municipal de Lisboa

Projetada pelo recordista dos Prémios Valmor

Por detrás deste edifício, está a história do arquiteto que mais prémios Valmor arrecadou ao longo da sua carreira.

Manuel Joaquim Norte Júnior foi um dos mais conhecidos arquitetos da sua geração, com um estilo que tanto se pautava pela estética eclética, como pelo geometrismo, pelo luxo e os elementos decorativos inspirados na Arte Nova.

O arquiteto Norte Júnior.

Foi ele quem projetou a Casa Malhoa (hoje Casa-Museu Dr. Anastácio Gonçalves), moradias na Avenida da República, o Café Nicola, no Rossio, o Royal Cine, na Graça, a Pensão Tivoli, na Avenida da Liberdade e A Brasileira do Chiado, sede emocional da Mensagem. 

No trabalho “Das Avenidas Novas à Avenida de Berna”, da historiadora de arte Raquel Henriques da Silva, a autora descreve-o: 

“O seu estilo é também incerto, manejando recursos da decoração ‘à segundo Império’ (francês, claro), mas também ecos superficiais de Arte Nova e de exotismos diversos, externos (mouriscos, orientalizantes e ruralistas, quer suíços, quer ingleses) e internos (os “neo manuelinos” e romântico, os ruralismos e, crescentemente, marcas pouco rigorosas da ‘Casa Portuguesa’ que Raul Lino estava então a elaborar).” 

“Curiosamente, Norte Júnior que, na juventude, fora um dos arquitetos mais bem sucedidos na estética eclética e revivalista, reconverte-se, com grande facilidade e eficácia, ao modernismo. Dentro deste gosto construiu dezenas de casas unifamiliares e, sobretudo, prédios, muitas vezes em parceria com empresas de engenheiros civis.” 

Um palacete votado ao abandono

O Palacete Villa Sousa foi sofrendo alterações ao longo dos anos.

Em 1920, José Carreira de Sousa mandou construir cocheiras (casas que guardavam carruagens) nos terrenos anexos à propriedade. Mas, nos anos 60, seriam demolidas por se “encontrarem em estado de ruína com perigo para a vida dos que lá vivem”, como se pode ler no Arquivo Municipal.

Uma década depois, a Villa Sousa mudava de proprietário: passaria a pertencer a José Maria Gonçalves e Joaquim Dias Pinho, residentes na Avenida Almirante Gago Coutinho. Cinco anos mais tarde, estava já na posse da SOLATU (a empresa que ainda hoje a detém).  Nesse ano, a empresa manifestou interesse em ali elaborar um projeto, como se pode ler através de requerimentos no arquivo.

Mas nada parece ter avançado, e o edifício foi sendo esquecido.

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Palacete Villa Sousa. Foto: Líbia Florentino

Em 2010, o fotógrafo Brito Gastão e Silva fez uma publicação no seu blog “Ruin’arte”, onde fotografa ruínas do país, sobre este palacete que virara ruína.

“Quando vejo uma jóia do património naquele estado, sinto que é um crime histórico, artístico, económico, social e ambiental”, diz o fotógrafo.

Ao entrar na casa, “do tamanho de uma piscina olímpica”, como a descreve no seu blog, apercebeu-se que o seu jardim fora transformado numa horta. “Deve ser a horta mais cara e mais chique de Lisboa, a avaliar pelo preço do metro quadrado nesta zona da cidade, além de se poder gabar de ser uma horta Valmor…”, escrevia ele. 

No final do século XX, um comunicado do Regimento Sapadores Bombeiros alertava já para o facto de o imóvel se encontrar devoluto, “em estado de ruína e com os vãos das portas e janelas abertos”.

No novo milénio, em 2004, a CML comunicou aos proprietários a intenção de tomar posse administrativa do imóvel para a execução coerciva de obras de conservação, que entretanto já teriam sido levadas a cabo pelos proprietários – em causa estava o abatimento de uma parte do muro envolvente e a sua reposição, o arranque e a replantação de duas palmeiras e a limpeza das plantas existentes nas paredes do edifício. 

Mas o edifício nunca mais voltou a conhecer o seu antigo esplendor… até agora?

Como manter a memória?

No trabalho de 2017 de José Luís Camões Tavares, já se anunciava a operação de loteamento que agora finalmente avança:

“O atual proprietário do imóvel é a Sociedade Familiar de Administração de Propriedades para Lavoura e Turismo SOLATU. Conjuntamente com outras entidades lotadoras dos prédios envolventes, de que a CML também faz parte, foi feito um projeto de loteamento, em que o imóvel em análise se encontra incluído, não estando previsto nesse projeto a sua demolição.”

O fotógrafo Brito Gastão e Silva defende que património como a Villa Sousa devia ser mobilizado para a habitação. “A habitação é um problema neste momento”, remata. Já José Luís Camões Tavares defendia na sua tese a conversão do Palacete numa pousada ou num albergue para estudantes.

Mas, tratando-se de uma operação de loteamento, ainda não é claro como a Villa Sousa será reabilitada e transformada.

Madalena Romão Mira, editora e investigadora nas áreas da História e das Ciências Documentais que se debruçou sobre a obra do arquiteto Norte Júnior, considera fundamental que se preserve a Villa Sousa. “Hoje, o edifício está muito sujo e deteriorado, mas, basta olhar para fotografias antigas, para ver que o edifício é de uma elegância, é muito harmoniosa aquela fachada…”, começa por dizer.

Para a investigadora, o mais importante é manter a memória.

“No fundo, é integrar este resíduo da história da arquitetura de Lisboa.” Mas não é só a fachada que tem de ser mantida e integrada, defende. “Em frente à casa, há um muro com um portão, e esse portão é muito importante, é um portão borboleta, tão característico do Norte Júnior.”

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O portão borboleta do Palacete Villa Sousa. Foto: Líbia Florentino

Para a reabilitação, a editora propõe que se preste atenção a exemplos de sucesso de preservação do património: “Quais são as situações de sucesso? O que é que fizeram? Quais foram as suas premissas, os valores, as formas de compromisso para manterem a dita memória?”, questiona.

E dá o exemplo do Projeto Fábrica, no Barreiro, que deu nova vida ao património industrial da CUF (Companhia União Fabril), acolhendo atividades artísticas e culturais. “Há preservação efetiva, com uma utilização que se liga inexoravelmente ao passado, mas que é de utilização diária”, conclui.


Ana da Cunha

Nasceu no Porto, há 27 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.

ana.cunha@amensagem.pt


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3 Comentários

  1. Eu não sou de Lisboa, mas sou portuguesa e como tal, penso que é importante manter o património local, seja de Lisboa , da Gafanha da Nazaré, cidade onde vivo ou de qualquer outro local, uma vez que é parte da nossa história, seja em termos históricos, artísticos, económicos, sociais e ambientais, é um pedaço de coração que representa uma época e como tal deve ser preservado, se não mantivermos essas joias do passado, como evocaremos a mesma, através de imagens de arquivo?, de fotografias?, que não mostram a verdadeira dimensão do palacete Villa Sousa. Há que preservar o palacete de uma forma inteligente e efetiva , com uma utilização que se ligue inexoravelmente ao passado, mas que seja de utilização diária”.

  2. Talvez fosse oportuno acrescentar que este projecto se desenvolve no local em que se situavam os Estúdios do Lumiar. Muito embora tenha sido pilhado e esventrado ao longo de sensivelmente uma década, nem A Mensagem nem sobretudo o Fórum Cidadania Lx mostraram o menor interesse pelo que de mais deplorável e abjecto se ia passando neste espaço, em que a RTP deu início às suas emissões regulares, no longínquo mês de Março de 1957. Façamos votos para que os tapumes que surgiram recentemente em redor da Villa Sousa nos permitam um dia evocar condignamente a história de tudo o que existiu nas suas traseiras.

  3. O que aqui escrevi há pouco parece confirmar-se: não existe o menor interesse da comunicação social em relatar o que foi se foi passando ao longo de sensivelmente uma década nas traseiras da Villa Sousa.

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