Há uma placa no nº55 da rua General Silva Freire, rua que começa nos Olivais Norte e termina na Encarnação, onde se lê: “Prémio Valmor 1967”. Foi na década de 1940 que Salazar mandou construir um novo bairro social na cidade de Lisboa: o bairro da Encarnação. Já nos anos 60, dava-se início ao primeiro projeto de habitação social nos Olivais Norte.

Nos Olivais Norte, surgiriam seis habitações de tipologia social, e uma delas (a torre mais alta das seis) venceria um dos galardões mais conhecidos da arquitetura: o Prémio Valmor. Os arquitetos por detrás desta e das outras casas foram Nuno Teotónio Pereira e António de Freitas.

O que há de especial nesta história é que foi a primeira vez que o mesmo foi atribuído a uma habitação social.

E uma das primeiras lições que aprendi do mestre Ferreira Fernandes é que jornalismo também são as coincidências. Por isso, no dia em que visitei o apartamento que viria a alugar neste bairro, depois de uma batalha já aqui relatada, fui inundada por uma grande sensação de déjà vu.

O que me levou ao bairro dos Olivais Norte deu uma história, mas aqui alojada tenho outra para contar: moro ao lado de um Prémio Valmor.

Eu nunca tinha vindo aos Olivais Norte ou ao bairro da Encarnação – conhecia a zona pelo nome de uma estação, a penúltima, da linha vermelha -, mas, ao transpor a porta do prédio que viria a ser a minha casa, senti que o conhecia.

Como se os edifícios falassem.

Alguns pormenores que me saltaram imediatamente à vista: o pavimento dos corredores em calçada portuguesa, os desenhos em relevo nas paredes, os vasos com flores e, finalmente, as caixas de correio, que me fizeram lembrar uma fotografia que a minha amiga Inês Leote captara há mais de um ano, no Bloco das Águas Livres.

Esta aqui:

Subi as escadas até ao primeiro andar. Entrei naquela que seria a minha futura casa, nesse dia ainda a respirar a vida de um outro inquilino. Mas não consegui deixar de pensar que a vida desse inquilino enleava-se numa outra. Quando regressei à entrada, as minhas suspeitas foram confirmadas.

Ali estava a placa:

A prova de que eu já respirara aquele ar antes.

É que, em janeiro do ano passado, eu e a Inês Leote, ainda recém-chegadas à Mensagem, celebrámos o centenário do arquiteto Nuno Teotónio Pereira e ficámos a conhecer uma das suas obras mais icónicas: o Bloco das Águas Livres.

Os lugares que habitamos sempre me fascinaram. Afinal, quatro paredes são capazes de resgatar essas vivências passadas que fazem parte de “nós”. Essa é uma sensação que vivo com grande intensidade quando regresso às escolas onde estudei ou à casa onde cresci. Ao quarto que me viu ser criança, adolescente e mulher adulta.

Nesse dia em que me sentei para ouvir os moradores do Bloco das Águas Livres, percebi que queria continuar a escrever sobre espaços. Ou melhor, sobre as memórias que as pessoas guardam dos espaços. De como uma maçaneta, uma escadaria, um corrimão podem fazer-nos viajar no tempo, remetendo-nos para esse outro espaço de memória: o passado.

Um ano mais tarde, ali estava eu, a visitar um edifício sonhado pelo homem que me fizera querer escrever sobre isso mesmo. Esse edifício viraria casa. Ali desempacotei a minha vida. Cobri as paredes das minhas fotografias, dos meus livros, das minhas memórias.

Fiz daquelas quatro paredes o meu lar.

Mas as coincidências não ficaram por aqui. Cedo descobri que não só vivia num edifício que tinha sido projetado por Nuno Teotónio Pereira, como era vizinha de um Prémio Valmor: esse mesmo de que vos falo no início do texto.

Decidi atravessar as suas portas e perceber quem, tal como eu, acabara num desses edifícios. Esse, o mais alto, o mais reputado, aquele que levava a placa que o condecorava. Quem eram as pessoas que ali construíam os seus dias?

O nº55 da rua General Silva Freire estava mergulhado em silêncio quando transpus a sua porta aberta. Tudo ali respirava esse mesmo ar do prédio onde eu vivia, esse mesmo ar que chegava ao Bloco das Águas Livres com toda a sua imensidão.

Lá fora, viam-se os espaços verdes dos Olivais Norte e da Encarnação, aqueles que comunicavam diretamente com o prédio, com os vizinhos, numa simbiose perfeita.

Bati às portas.

Muitos não responderam. Fora de casa, no trabalho, calculei.

Mas depois fui encontrando alguns dos vizinhos: a Ana Lúcia, que se mudara há três anos com o namorado para esta casa que era da família; a Camila, que todos os dias toma conta da senhora Antonieta, ali a morar desde a projeção do edifício; o Flórido e a Noémia que vieram em 1985 para este prédio onde moravam os seus padrinhos de casamento.

Uma casa é tudo aquilo que estas pessoas aqui constroem. A Ana Lúcia com o namorado, a Camila com a Antonieta, o Flórido com a Noémia.

Bartolomeu Costa Cabral, o sábio arquiteto que faleceu recentemente, mas que eu conheci no Bloco das Águas Livres que ele ajudou a projetar, disse-me: “A arquitetura fala com as pessoas e estabelece um diálogo que pode ser afetivo entre as pessoas que a usam.”

Daqui a uns anos, quando a minha casa encontrar uma outra morada, os tempos passados a contemplar o jardim verde dos Olivais Norte da minha janela serão evocados ao cruzar-me com o cheiro destas paredes.O cheiro, a textura. A calçada portuguesa, as flores… Essas caixinhas de correio antigas, que um dia a Inês fotografou.

Ao vê-las, recordarei o meu passado. Recordarei a Mensagem e a Inês. E todos aqueles que conheci nestes edifícios que Teotónio Pereira ergueu na cidade.


Ana da Cunha

Nasceu no Porto, há 27 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.

ana.cunha@amensagem.pt


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3 Comentários

  1. Este Prémio Valmor não fica no Bairro da Encarnação, como também não fica a estação de metro com o nome Encarnação. O Bairro da Encarnação é o bairro de vivendas vizinho deste que foi construído nos anos 30 e 40 do século passado através do programa público “Novos Bairros”. O nome do bairro onde fica este Prémio Valmor – e a estação de metro supracitada – é Olivais Norte. O lapso é comum desde que a estação de metro com esse nome abriu e induz agora em erro quem não conhece a zona, mas “o seu a seu dono”

  2. Tem toda a razão! Eu própria, que já aqui vivo há um ano, fui induzida em erro pela estação de metro! Obrigada pelo reparo, já clarifiquei no texto! Afinal, sou freguesa dos Olivais Norte 🙂

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