“Tenho saudades de tudo: do cheiro, das pessoas…”, diz Vanessa Rocha, 47 anos, nascida e criada em Alfama, território da freguesia de Santa Maria Maior que não lhe sai do sangue. Mesmo que, há cerca de sete anos, tenha sido obrigada a abandoná-lo. “Vivia com o meu companheiro e o meu filho num andar na rua dos Remédios. O senhorio faleceu e o filho terminou o contrato. Transformou a casa em alojamento local.”

A história que conta não é única na freguesia.

Vanessa Rocha teve de abandonar Alfama. Foto: Inês Leote

Há dias, a esperança de um dia poder voltar reacendeu-se para Vanessa, ao ver uma publicação da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior sobre um programa que mostrava querer trazer de volta os moradores – o “Regresso ao Bairro”. Desatou a partilhar a iniciativa nas redes sociais.

“Tenho saudades de ver as crianças a brincar na rua. Aqui o meu filho não brinca”, desabafa ela, que agora vive com a família na Penha de França. 

Para já, “Regresso ao Bairro” é só uma ideia, mas uma ideia pela qual o presidente da Junta, Miguel Coelho, já luta há alguns anos: a de recuperar casas municipais que estejam devolutas para trazer de volta os que, como Vanessa, foram empurrados para fora do bairro.

Mas sobre este número, o de devolutos que aqui existem, nem a Junta de Freguesia nem a Câmara Municipal de Lisboa conseguem ainda adiantar.

O presidente da freguesia, Miguel Coelho, sabe apenas o que a cidade já notou também: “perdemos muito tecido social, e muita autenticidade”. “Esta é uma forma de combatermos a gentrificação”, diz. E, por isso, a Junta de Freguesia lançou o desafio à Câmara Municipal de Lisboa, para que se avance com um modelo através do qual seja atribuída uma verba à junta para que se recuperem as habitações desocupadas.

Vídeo: Inês Leote e Frederico Raposo

Em 11 anos, Santa Maria Maior perdeu 28% da sua população

“Eu saio morta, que eu não saio da minha casa.” É esta a frase que se pode ouvir numa reportagem de 2018 da RTP, pela boca de Felicidade, uma mulher que viveu toda a vida no bairro de Alfama.

Felicidade, tal como muitos outros, via-se obrigada a sair do Centro Histórico de Lisboa, um drama ao qual o presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior diz que já estava atento: foi nessa altura que lançou a iniciativa “Os Rostos dos Despejos”, que decorreu entre 2018 e 2019, procurando respostas para a problemática.

Segundo dados relativos ao recenseamento eleitoral, entre 2013 e 2024, a freguesia de Santa Maria Maior perdeu 28% da sua população. Tal como já demos conta anteriormente, esta perda de população foi acompanhada pela diminuição do número de casas disponíveis e mais alojamento local. Alda Botelho Azevedo, demógrafa e investigadora no Instituto de Ciências Sociais (ICS-UL), apontava:

“No mínimo, deu-se uma coincidência muito grande entre as freguesias em que houve uma maior quebra de população, e uma maior quebra de alojamentos familiares, e a atividade do Alojamento Local.” 

Em 2018, Santa Maria Maior registava 3666 unidades de alojamento local.

Entretanto, seis anos passados sobre a iniciativa “Os Rostos dos Despejos”, a cidade – e o país – sofreram transformações: reforçaram-se os direitos dos inquilinos, ao alterar-se o paradigma da polémica “Lei Cristas” de 2012, e aumentou-se o controlo e a fiscalização do alojamento local, criando-se zonas de contenção na cidade (Alfama, Mouraria, Castelo, Bairro Alto, Madragoa, Graça, Colina de Santana).

Mas não foi suficiente para travar a saída dos antigos moradores.

E porquê? No trabalho “Histórias de despejo e resistência: ser idoso no centro de Lisboa”, Fabiana Pavel e Ana Estevens explicam como se perpetuaram os despejos: em alguns casos, os interesses económicos no centro de Lisboa levaram os proprietários a praticar atos menos éticos – um fenómeno que passaria a ser conhecido como “bullying imobiliário” -, servindo-se da iliteracia de inquilinos e de pressão até emocional para conseguirem o despejo.

Em 2021, as redes sociais da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior davam conta de um destes casos, em que, durante um período de cinco anos, um morador da rua do Ouro se terá visto privado de iluminação nas escadas de acesso, tendo-lhe sido retirado o elevador e a caixa de correio. O caso terá culminado no dia em que a porta da habitação terá sido arrombada e destruídos os bens que lá estavam dentro.

Para ajudar quem não sabe o que fazer nestas situações, a Junta de Freguesia de Santa Maria Maior criou um gabinete de apoio jurídico. Mas, para Miguel Coelho, não chega ficar por aqui. É preciso reverter o panorama, permitindo o regresso dos moradores.

Um projeto piloto com 20 casas

A ideia do “Regresso ao Bairro” começou a ser desenvolvida ainda no final do mandato anterior, em conjunto com o então presidente da Câmara de Lisboa, Fernando Medina. Ao perceber a quantidade de casas municipais vazias que existia na freguesia, Miguel Coelho propôs que a própria Junta fizesse parte da solução para o problema da perda de moradores.

“A proximidade dá sempre melhores resultados do que uma intervenção mais distante”, esclarece Miguel Coelho. “Enquanto um engenheiro e um fiscal da Câmara têm de fiscalizar ‘N’ obras na cidade inteira, aqui tudo anda mais rápido, detetam-se as falhas, os erros, pode fazer-se mais pressão sobre as empresas.” 

Recentemente, também a Junta de Freguesia de Benfica deu um passo para responder à crise habitacional, ao propor a alienação de um terreno da Câmara Municipal para ali construir 50 fogos de habitação acessível, ao abrigo do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) – uma proposta que foi aprovada em Assembleia Municipal no dia 16 de abril.

Santa Maria Maior regresso ao bairro
A ideia parte do presidente da Junta de Freguesia, Miguel Coelho. Foto: Frederico Raposo

Em Santa Maria Maior, o trabalhou avançou: através da observação e de conversas com fregueses, a Junta de Freguesia de Santa Maria Maior identificou cerca de 100 fogos desocupados –  alguns dispersos, outros em edifícios -, concentrados sobretudo no eixo Mouraria-Castelo-Alfama. Porém, com a mudança de executivo, não se chegou à concretização do programa.

Mas a ideia não morreu.

Para já, o presidente sugere começar com um projeto-piloto de 20 casas para se testar o modelo. Através de protocolos estabelecidos com a Câmara, a ideia é atribuir-se uma verba à Junta para se recuperarem as habitações que seriam depois postas em concurso de arrendamento acessível. Para serem elegíveis a este concurso, os candidatos teriam de ter sido efetivamente alvos de despejo, de bullying imobiliário ou de um aumento da renda que fosse incomportável para o agregado familiar, nos últimos 15-20 anos. Todas estas situações terão de ser comprovadas através de documentação, diz o presidente, que não adianta quais os critérios para a verificação da veracidade destas situações.

“O desafio é que a Câmara se chegue à frente, fale com as Juntas de Freguesia que queiram ter um programa deste género, e combine connosco uma metodologia”, resume Miguel Coelho. Ele que diz já ter dialogado com a Câmara, de quem obteve “respostas evasivas” – quer isto dizer: sem avanços.

Contactámos a autarquia sobre o assunto, mas não obtivemos resposta até à hora de publicação deste artigo. Porém, na sétima reunião do Conselho Municipal de Habitação, que se deu no dia 19 de abril, Filipa Roseta, vereadora da Habitação, propôs medidas de discriminação positiva nos programas de renda acessível para residentes de longo prazo em freguesias afetadas pela pressão habitacional.

“Iremos propor programas de renda acessível, em que 50% das casas em cada concurso sejam destinadas exclusivamente a quem vive ou trabalha em Lisboa”, afirmou a vereadora, sugerindo uma percentagem de 75% para as cinco freguesias do Centro Histórico, uma solução para os que se veem obrigados a abandonar a cidade e para os profissionais deslocados de profissões essenciais (enfermeiros, professores, polícias…) que, por falta de habitação, recusam propostas de trabalho em Lisboa.

Uma ideia nova? Como se faz lá fora?

Para Fabiana Pavel, arquiteta e especialista nas áreas da reabilitação, da gentrificação e do direito à cidade, o programa “Regresso ao Bairro” é uma boa ideia para se combater a gentrificação vivida nos bairros históricos de Lisboa. “Eu acho uma ideia excelente e exequível, já que existem programas municipais de renda acessível. No fundo, é usar aquilo que já existe e aplicar a um caso específico.”

Embora a ideia do regresso de antigos residentes ao Centro Histórico não pareça ter sido implementada em nenhuma outra cidade, tomar partido de casas desocupadas para as transformar em habitação a preços acessíveis é um conceito já muito discutido e que algumas cidades concretizaram.

Santa Maria Maior regresso ao bairro
Mobilizar casas vagas para habitação acessível é uma ideia empreendida noutras cidades. Foto: Frederico Raposo

Na Irlanda, um portal convida os cidadãos a identificar casas desocupadas, com o objetivo de pressionar proprietários e órgãos locais a dar-lhes um novo uso.

Em Birmingham, no Reino Unido, entre abril de 2023 e fevereiro de 2024, a Câmara Municipal deu novo uso a 340 casas vagas.

Em Baltimore, nos Estados Unidos, a startup Parity está a renovar casas devolutas para depois vendê-las aos residentes a preços acessíveis – tudo para responder ao fenómeno da gentrificação na cidade.

Melhorar a qualidade de vida no Centro Histórico de Lisboa: pode o plano resultar?

Urge, então, colocar uma questão: quererão as pessoas voltar?

Fabiana Pavel acredita que a maioria sim. “Basta lembrar as marchas populares. As pessoas vêm da Margem Sul de volta aos seus bairros para as marchas populares. É um exemplo simples e evidente de que as pessoas continuam a ter laços com o bairro e a sentir-se parte do bairro.”

É isso mesmo que acontece com Vanessa Rocha, que há 14 anos ensaia as marchas populares de Alfama, uma paixão que herdou do pai, que as organizou durante 20 anos. “Acho que toda a gente gostaria de voltar”, diz ela.

Mas este é um programa que tem de ser complementado por outras políticas, até porque não são só os despejos diretos que estão a afetar o centro de Lisboa, são também os despejos indiretos, explica Fabiana Pavel. O que é que isto quer dizer?

“Há pessoas que decidem ir embora por causa do ruído, da falta de equipamentos… a vida no centro histórico está cada vez pior. A Câmara tem dado mais valor e importância aos empreendimentos imobiliários, de restauração e bebidas e o comércio tradicional tem vindo a desaparecer.” 

Ela própria, que vive no Bairro Alto, aponta algumas ideias para melhorar a qualidade de vida no Centro Histórico: regular os valores das rendas, criar um gabinete que faça controlo do alojamento local e promover mais programas de habitação acessível. Para além disso, remata, “é preciso fazer um trabalho sobre a qualidade dos bairros, sobre o comércio, sobre a higiene e o ruído, sobre os equipamentos públicos”.

Foto: Inês Leote

Ana da Cunha

Nasceu no Porto, há 27 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.

ana.cunha@amensagem.pt


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1 Comentário

  1. O sr. Miguel Coelho é presidente da JF de Santa Maria Maior há mais de 10 anos e só agora é que se apercebeu que na freguesia existem mais de 100 imóveis municipais devolutos?

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