Maria Toscano e Tomás Barroso só conheceram a vida do antigo Mercado Municipal da Tapada das Mercês, em Algueirão-Mem Martins, Sintra, através das memórias dos fregueses: “Era um mercado onde se vendia peixe, carne, havia a florista, havia um café…” Nunca imaginaram que esse espaço fechado, votado ao abandono, se tornaria um dia na sala de ensaios e até mesmo de espetáculos da companhia deles, o Teatro Corrente.

Onde antes se ouviam os pregões das peixeiras, há atores e criadores, a dar nova vida ao espaço, tirando partido das velhas bancadas e dos letreiros das antigas lojas.

O mercado é a nova morada desta companhia de teatro que remonta ao mesmo ano em que o último comerciante terá daqui saído: 2018. Por enquanto, a companhia aqui ficará até junho de 2024, quando se prevê que no mercado surja uma Loja do Cidadão.

“Aqui é o pulmão, à volta está toda a gente. O mercado foi construído aqui exatamente por isso, porque está no centro”, diz Tomás. 

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Foto: Frederico Raposo

A origem da corrente

A história do Teatro Corrente começa quando Maria Toscano se aventurou na primeira criação. Chamou-lhe “Transposto”, um espetáculo sobre uma artista que atravessa um bloqueio criativo quando é confrontada por dois seres: o realismo e o abstracionismo. Nessa altura, Maria precisou de um nome para a sua companhia. “Corrente” surgiu quase instintivamente:

“Queríamos que a comunidade fosse implicada no processo criativo do trabalho. Corrente por isso: corrente humana, corrente marítima, sempre em mudança…”.

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Maria Toscano fundou a companhia Teatro Corrente. Foto: Frederico Raposo

Entretanto, Maria, que já estudara teatro na Escola Secundária de Santa Maria, na Portela de Sintra, enveredou pela licenciatura na Escola Superior de Teatro e Cinema (ESTC), onde conheceu Tomás Barroso, que se tornaria o seu braço direito na gestão da companhia.

Hoje, já são 11 os membros.

Na pandemia, Maria começou a escrever a criação “Black Box”. E, com o levantamento das restrições da covid-19, surgia a questão de sempre: onde encenar o espetáculo? Foi então que a companhia se candidatou ao apoio para jovens artistas da Casa da Juventude da Tapada e conseguiu financiamento. O passo seguinte: encontrar um espaço.

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Maria conheceu Tomás na licenciatura na Escola Superior de Teatro e Cinema (ESTC). Foto: Sara Patrícia

Ficção científica num velho mercado

“Andei a ver vários espaços no concelho de Sintra. E, de repente, a Casa da Juventude propõe o mercado”, diz Maria. Pareceu-lhes o espaço perfeito para contar a história de “Blackbox” – um espetáculo que se tornaria uma verdadeira experiência de ficção científica.

O texto de Maria é “uma comparação entre a hierarquia humana e as formigas” que segue três personagens, às quais são atribuídos números. A cada número, corresponde uma fobia: fobia da passagem do tempo (cronofobia), fobia do olhar (escopofobia), fobia de estagnar (quifofobia).

“Acho que o facto de ter sido no mercado ajudou muito”, diz Tomás. Maria explica: “O espetáculo passava-se em toda a área do mercado e o público estava em 360°. Mesmo dentro das bancadas, havia cadeiras. Criámos também uma outra zona, com uma espécie de cápsulas.” 

Neste cenário distópico, surgia um outro elemento: bocas projetadas no teto. “Bocas com tintas de luz negra, sempre a dar inputs às personagens. Havia essa relação hierárquica entre as bocas e as personagens, e as personagens e o público”, recorda Tomás.

O mercado, abandonado, transformou-se, para uma nova vida lá dentro.

Unir a comunidade das Mercês através do teatro

Com o apoio da Casa da Juventude até junho, o trabalho do Teatro Corrente continua, e a companhia já tem tema para uma próxima criação: a história do mercado e as memórias da comunidade serão mote para o espetáculo com o título provisório “Bancadas”.

A vontade de trabalhar sobre este tema surgiu depois das oficinas de teatro que a companhia organizou durante o verão, nas quais a comunidade participou gratuitamente.

“Quando as pessoas nos vinham visitar, diziam ‘ah, a minha filha adorava ter formações em teatro, mas aqui nas Mercês não há nada’”, conta Maria. Aliás, já contámos como faltam espaços culturais nesta zona, na freguesia mais populosa do país.

Ao longo de várias semanas, jovens de Algueirão-Mem Martins e arredores aprenderam com módulos dirigidos por artistas convidados na área do texto, do teatro físico e do vídeo. Os membros do Teatro Corrente foram lecionando módulos globais, mas sempre “dentro desta questão da exploração das salas e do espaço”, explica Maria.

Com estas oficinas, que regressam em janeiro, a ideia de teatro comunitário começou a crescer no seio da companhia. “Antes, trabalhar com a comunidade significava as pessoas darem-me inputs para eu trabalhar em casa. Agora, é totalmente diferente: ao invés de ser eu a moldar, penso em como as pessoas também podem moldar o trabalho”, explica a criadora.

Com base nestas aprendizagens, a companhia começou a trabalhar neste “Bancadas”, estabelecendo parcerias com as associações locais e apostando no trabalho de pesquisa, que passa também por recolher documentação que resista da vida passada do mercado.

Tomás resume a missão com esta nova criação: “Acho que a cultura tem que ter um lugar importante e primário para o desenvolvimento da sociedade. Vemos o mundo do espetáculo como cultura, e não como um negócio.”

No fundo, democratizar a cultura. Fazê-la chegar a territórios com menos oferta cultural, como a Tapada das Mercês. 

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Para Tomás, o teatro tem de ter uma vocação democrática. Foto: Frederico Raposo

Entretanto, o Teatro Corrente estreou um outro espetáculo em dezembro, o “Poesia Bassus”, num espaço também ele reabilitado das ruínas: o Forno, em Rio de Mouro, também em Sintra. Mais uma prova de que é possível dar nova vida a espaços outrora abandonados.

Para Maria e Tomás, o mercado é o lugar perfeito para se dar nova vida a um antigo edifício e para se chamar a comunidade.

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O “pulmão” das Mercês. Foto: Frederico Raposo


Sara Patrícia

Sara Patrícia foi uma das correspondentes da redação pop-up da Mensagem em Mem-Martins, a bordo do projeto Narrativas.


Ana da Cunha

Nasceu no Porto, há 27 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.

ana.cunha@amensagem.pt


Frederico Raposo

Nasceu em Lisboa, há 30 anos, mas sempre fez a sua vida à porta da cidade. Raramente lá entrava. Foi quando iniciou a faculdade que começou a viver Lisboa. É uma cidade ainda por concretizar. Mais ou menos como as outras. Sustentável, progressista, com espaço e oportunidade para todas as pessoas – são ideias que moldam o seu passo pelas ruas. A forma como se desloca – quase sempre de bicicleta –, o uso que dá aos espaços, o jornalismo que produz.

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Sara Patrícia foi uma das correspondentes da redação pop-up da Mensagem em Mem-Martins, a bordo do projeto Narrativas.

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