Catarina, 33 anos, abre a porta da pequena casa dela na Vila Travessa Paulo Jorge, em Belém, e cumprimenta com um sorriso a vizinha da frente, a “dona Rosa”, que lhe devolve o gesto. Catarina mora nesta vila desde a pandemia, numa casa que diz estar 150 euros “abaixo dos preços atuais do mercado” – escolhe não referir o valor exato. E conta não ser ali a única jovem. É assim que nos dá conta de um novo fenómeno em Lisboa: as velhas vilas operárias, casa de tantos idosos na cidade, viraram casa de muitos jovens também.

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Dona Rosa vive na Vila Travessa Paulo Jorge. Foto: Rita Ansone

“Os vizinhos aqui conhecem-se todos. Há pessoas mais antigas, há ali um casal mais jovem.” Mas o que os atrai para aqui?

Podia ser um fenómeno isolado, mas esta mistura geracional já se dá em algumas outras vilas da cidade – algumas privadas, outras municipais. Com as casas a vagar e a crise da habitação a afetar toda a cidade de Lisboa, são muitos os jovens que acabam por encontrar morada nestes lugares escondidos.

Embora, num outro ponto de Lisboa, na Vila Luz, em Arroios, a vinda dos mais novos pareça não ter sido instigada por preços baixos: quando a jovem Isabel descobriu que a família era proprietária da Vila Luz, não hesitou em mudar-se para lá e, aos poucos, foi trazendo amigos e os amigos mais amigos.

A Vila Travessa Paulo Jorge, em Belém, e a Vila Luz, em Arroios, foram, como muitas outras vilas em Lisboa, construídas entre finais do século XIX e inícios do século XX para albergar a população que chegava a Lisboa vinda das áreas rurais.

Como aconteceu com a “dona Luísa”, vizinha da Isabel. Tem 84 anos e vive aqui desde os 17. “Vim para Lisboa sozinha, estava farta de trabalhar no campo”, recorda. Do passado deste lugar antes pacato, só tem a dizer que muito mudou. “Isto antes era só velharia, agora sou só eu.”

Hoje, Isabel, a jovem vizinha, conta que “à medida que as pessoas mais antigas foram morrendo, os jovens foram aparecendo”.

“Espírito de comunidade”: o que eles encontram nas vilas

Em alguns casos, morar nestas vilas é encontrar casas com rendas ligeiramente abaixo do mercado. Noutros, a falta de oferta no resto da cidade acaba por empurrá-los para as vilas, algumas das quais já afetadas pela especulação imobiliária.

A jovem Mafalda encontrou um T2 dentro dos preços do mercado, na Vila Mendonça, em Arroios, que partilha com o namorado. Perante a crise de habitação que se vive em Lisboa, sentiu que aqui encontrou uma boa oportunidade.

“Neste momento, as pessoas não escolhem especificamente vir para uma vila, as pessoas precisam de casa, falta habitação.”

Mesmo não sendo uma escolha, como diz Mafalda, ela reconhece a importância do espírito comunitário que aqui se vive. “Acho giro viver aqui, proporciona um convívio diferente entre os vizinhos, estamos mais vezes aqui fora e há mais contacto”. E Catarina, na Travessa Paulo Jorge, diz o mesmo: “Antes, vivia num prédio em Santa Apolónia, não conhecia os meus vizinhos”.

Esta era uma ideia que já ecoava em 1996, quando, num programa da RTP sobre pátios e vilas de Lisboa, o arquiteto José Manuel Fernandes afirmava:

 “Este aspeto da vida recolhida e recatada, um pouco apartada da vivência direta da rua, terá o seu futuro. Terá uma dimensão de futuro, não sei se pela positiva ou pela negativa. Mas quando nós pensamos nos condomínios urbanos, nos novos condomínios, na questão dos espaços fortificados, protegidos do exterior, a ideia da vila, do pátio segregado, segregado no bom sentido, porque protege dos malefícios da vida urbana atual, é um tema em perfeita recuperação e aprendizagem.”

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A Travessa Paulo Jorge, em Belém. Foto: Rita Ansone

Catarina, que vive numa casa privada da Vila Travessa Paulo Jorge, aponta que a casa é bastante pequena e que provavelmente já teria saído dali, não fosse essa mais valia: o espírito comunitário.

“Esta casa ganha com a vida de rua. Eu entro aqui, parece que já não estou em Lisboa. Acaba por se manter uma cultura de aldeia viva.”

Se Paula Silva, que trabalha num armazém de fabrico de borracha na vila que a viu crescer, a Vila Paulo, em Arroios, diz que o espírito de comunidade nunca mais regressou, na Vila Luz, Isilda e Manuel falam com grande alegria dos jovens que agora lá moram: “Não temos razão de queixa dos mais novos que agora aqui vivem, são muito bem falantes!”, diz o casal.

Para Beatriz Marques, estudante de Teatro de 20 anos, este sentimento de comunidade é algo de que não quer abdicar, e ao qual está mais que habituada: vive e sempre viveu na Vila Amélia Gomes, no Beato, um tesouro esquecido na cidade de Lisboa. “Gosto de viver aqui”, diz ela.

Na Vila Luz, em Arroios, os mais jovens também procuram esta comunhão: “Antigamente havia aqui uma grande comunidade, os mais velhos contam que até se saltava à fogueira!”, partilha Isabel. “Mas é difícil viver em comunidade quando o espaço é ocupado por carros”, diz Isabel. Um cenário que se repete noutras vilas.

O que vai acontecer às vilas municipais?

Para facilitar o acesso à habitação e de dar nova vida às vilas da cidade, em 2017, a CML anunciava a reabilitação de nove dos 34 pátios e vilas municipais. Uma medida que englobava a requalificação das casas aqui devolutas, precisamente para atrair arrendamento acessível para a população mais jovem.

Dessas nove vilas, a CML diz que se completaram duas reabilitações: na Vila Bela Vista, no Beato, e no Largo do Marquês de Angeja, em Belém.

Fonte: CML

Segundo informações da CML, no Largo Marquês de Angeja, das seis habitações reabilitadas, duas foram atribuídas a candidatos com idades entre os 30 e os 35 anos e outras estão por atribuir em concursos.

Numa visita à Vila Bela Vista, Maria José Oliveira, que ali vive há 30 anos, conta que na vila tanto vivem jovens como pessoas mais antigas.

Em ambas as vilas municipais, os limites máximos de valores de renda estão fixados: os T0 nos 150-400 euros, os T1 nos 150-500 euros, os T2 nos 150-600 euros e os T3 nos 200-800 euros.

Entretanto, a CML prevê mais intervenções: a obra na Vila Romão da Silva, em Campolide, está já em execução. Em fase de lançamento de concurso encontra-se a Vila Elvira, também em Campolide. Em fase de projeto, a Travessa Paulo Jorge, em Belém, o Pátio do Paulino, em Alcântara, o Pátio do Beirão, em Marvila e o Pátio dos Bastos, na Estrela.

Para além destes, na Vila Macieira, demolida há vários anos, em São Vicente, está em estudo a construção de 71 habitações no âmbito do Programa Cooperativas 1ª Habitação Lisboa.

O passado das vilas e pátios de Lisboa

No documentário de 1996 da RTP sobre as vilas e os pátios de Lisboa, o arquiteto Nuno Teotónio Pereira descrevia estes conjuntos como “a face oculta” da cidade, e, para muitos lisboetas, elas continuam a sê-lo, de facto.

Mas há uma história por detrás.

Tal como hoje, há 100 anos, a cidade de Lisboa atravessava uma grave crise habitacional. Entre finais do século XIX e inícios do século XX, a Revolução Industrial impulsionara o êxodo rural, levando as populações a procurarem oportunidades nos grandes centros urbanos. Um fenómeno que foi também motivado pelas reformas administrativas e económico-sociais da chamada época da Regeneração (o período de vigência da monarquia constitucional em Portugal), que previam a abolição do sistema de morgadio e o desenvolvimento dos transportes e das telecomunicações.

Gonçalo Antunes estudou as vilas e os pátios de Lisboa.

O resultado: um grande crescimento populacional.

“Não havia habitação para as famílias, a carência sentia-se de uma forma ainda mais premente do que se sente hoje”, explica Gonçalo Antunes, investigador que se debruçou sobre a história dos pátios e vilas de Lisboa, identificando 696 pátios e 402 vilas operárias na cidade no século XIX.

É neste contexto que se acrescentam pisos às casas já existentes (surgem casas nas águas-furtadas, em mansardas), e criam-se entretanto os pátios, um tipo de habitação precária, que correspondia a um recinto descoberto no interior de um edifício – e que se disseminaram sobretudo no centro da cidade, em zonas como Alfama e a Mouraria.

No início do século XX, o Inquérito ao Pateos de Lisboa identificava mais de duas mil casas nestes pátios, onde viviam mais de 10 mil habitantes.

“Esse inquérito dizia que as condições dos pátios eram horríveis”, conta Gonçalo Antunes. “Toda a população vivia numa enorme precariedade que afetava a saúde de uma forma bastante gravosa.”

As melhorias na habitação acabariam por ser levadas a cabo não pelo Estado, mas por promotores privados, pequenos construtores civis e donos de indústrias, que criaram as vilas operárias, concentradas nas áreas de expansão da cidade, em dois grandes eixos industriais: no Vale de Alcântara e na zona oriental, nas freguesias de Marvila e do Beato.

Nestas vilas, passariam a viver muitos dos trabalhadores das fábricas. Apesar das suas condições habitacionais serem melhores que as dos pátios, não deixavam de ser lugares precários, muitas deles sem acesso a água potável, a saneamento básico, a eletricidade.

“Com a expansão da linha ferroviária do norte, que passa a atravessar ambas as freguesias [Marvila e Beato] a partir de 1856, estas tornam-se definitivamente locais de destaque para a fixação industrial e de grandes armazéns comerciais, com especial prevalência do fabrico de tecidos de algodão, tabacos, transformação de cortiça, moagens, tanoarias, ou comércio vinhateiro.”

Margarida Reis e Silva, “Pátios e vilas de Marvila e Beato: modos de vida de um movimento antigo”

Com o tempo, surgiriam ainda vilas destinadas à pequena burguesia, como a Vila Berta, na Graça, ou a Villa Luz Pereira, na Mouraria.

Mas o futuro das vilas seria ditado em 1930, quando a construção delas foi proibida pelo regulamento camarário. Três anos depois, lançava-se o programa de habitação Casas Económicas, através do qual se construíram bairros de habitação económica segundo o modelo da moradia unifamiliar com jardim, pelo qual o Estado Novo ficaria conhecido. 

As vilas que aguardam um futuro

Deixaram de ser construídos a partir dos anos 30, mas continuaram a existir e a bulir com vida. Foi com o fim da indústria que a sua vivência mudou, e a sua degradação acelerou…

Nos anos anos 80, publicava-se o “Estudo do Pátio e Vilas de Lisboa”, a partir do qual se apresentavam linhas orientadoras de atuação para a salvaguarda de alguns pátios e vilas. Na década seguinte, era criado o Gabinete dos Pátios e Vilas, pela CML, no âmbito da Direção Municipal da Reabilitação Urbana e elaborava-se o “Plano de Pormenor e Salvaguarda: Pátios e Vilas”.

Ao longo dos anos, houve pátios e vilas que foram reabilitados, e alguns até transformados em segmentos de luxo, como foi o caso do Pátio Bagatella, perto das Amoreiras.

Mas também houve conjuntos que desapareceram. Como a Vila Macieira, em São Vicente, que, por estar em risco de ruína, foi demolida em 2015 – aqui discute-se possibilidade da construção de uma cooperativa.

Muitas outras vilas foram sendo esquecidas. Um exemplo paradigmático disso mesmo é a Vila Dias, um conjunto de casas visivelmente degradadas, onde os moradores aguardam uma solução há anos.

Em 2020, perante a compra da vila por privados, a Câmara Municipal de Lisboa contestou a venda, argumentando que não teria tido a oportunidade de exercer o direito de preferência. Após dois anos de luta, autarquia e proprietários chegariam a acordo, com a Câmara a comprar a vila por 3,8 milhões. À Mensagem, a CML afirmou que a vila aguarda a elaboração do projeto.

Clotilde, que ali vive há 60 anos, desabafa: “Há muita gente de idade aqui, estamos à espera de obras, dizem que isto vai abaixo, não sei se vai ou se não vai. As casas são mais ou menos, são pequenas, se eu não arranjasse a minha, caía. De resto, vai-se andando.”

O lugar para viver e trabalhar: as memórias dos pátios e das vilas

Para muitos, o espírito das vilas foi-se perdendo com o passar dos anos. Paula Silva, da Vila Paulo, em Arroios, recorda essa vida passada.

A Vila Paulo é conhecida por ser uma vila de ofícios, onde em tempos se conjugava o local de trabalho com a habitação. Foi ali que a sua avó se instalou no início do século XX, vinda de Santa Comba Dão, e a casa onde vivia passou de pais para filhos e de filhos para netos.

“Em pequenina, havia aqui galinhas, as pessoas chegavam com a vivência da província, era quase tudo família”, conta Paula Silva.

O trabalho “Pátios e vilas de Marvila e Beato: modos de vida de um movimento antigo”, de Margarida Reis e Silva, procura traçar o passado de alguns destes lugares escondidos, onde se vivia com um grande sentido de comunidade: por exemplo, era no pátio da vila que as mulheres se juntavam para lavar e secar a roupa e para fazer arranjos de costura.

Tudo isso mudou, diz Paula. “Claro que os moradores novos não são nada como os velhos, não há convívio”, diz a antiga moradora. Ali, conta, vivem pessoas mais antigas e alguns casais jovens.

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A Vila Luz, em Arroios. Foto: Rita Ansone

Isilda e Manuel, ela de Pampilhosa da Serra, ele de Alcobaça, vieram ainda em jovens para Lisboa e conheceram-se em Arroios, onde moram desde então, na Vila Luz. Apesar da “casa escura e velha”, onde criaram os dois filhos, recordam a vida passada da vila com grande ânimo: “Fazíamos festas de Santo António com bailaricos! Todos se conheciam”.

Essa vida, dizem, desvaneceu. “Os velhos foram morrendo…”.

Hoje, muitas das casas municipais estão agora vazias, aguardando intervenção por parte da CML – assim o diz a mesma à Mensagem.

“Estas vilas têm um grande potencial para serem reabilitadas e  transformadas em conjuntos habitacionais bastante aprazíveis e bastante diferentes daquilo que nós vemos na maioria da cidade”, diz o investigador Gonçalo Antunes.

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Os carros que ocupam a Vila Luz. Foto: Rita Ansone

Ana da Cunha

Nasceu no Porto, há 27 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.

ana.cunha@amensagem.pt


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2 Comentários

  1. A história da aquisição da Vila Dias em Xabregas pela CML não foi assim como escrevem: não foi exercido nenhum direito de preferência, a Câmara chegou a acordo com o proprietário e comprou a Vila Dias, foi uma transação imobiliária e não foi através do mecanismo legal do direito de preferência. Podem confirmar pelas notícias publicadas nessa altura, nomeadamente no Público.

  2. Olá, Caetano! Pedimos desculpa por não termos sido completamente claros e agradecemos a chamada de atenção. De facto, a CML não teve tempo de exercer o direito de preferência, portanto, retificámos essa informação.

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