Concentração, força e precisão. A pegada firme na gola do quimono em sincronia com o jogo de perna, o pé esquerdo a cruzar por trás da perna direita do adversário, a força dos músculos e a pressão do peso do próprio corpo para encaixar o golpe, o osoto-gari aplicado como deve ser, a provocar o desequilíbrio e levar à queda do oponente ao tatame. A levar à vitória. Em mais de uma década, o judo tem sido desporto, filosofia de vida e alternativa à dura realidade da rotina num bairro social para Taís Pina e Letícia Martins.

Moradoras do Casal da Boba, na Amadora, as judocas encararam cada luta não só como um percurso natural rumo ao pódio, mas também como um golpe nos perigos que normalmente rondam os jovens da área.

Foto: Rita Ansone.

“O judo deu-me bons amigos, confiança e disciplina para conciliar as atividades com a escola”, reconhece Taís, ajustando a cinta preta no próprio quimono.

Aos 19 anos, a judoca ainda em idade júnior segue na luta para ser uma das representantes entre os lutadores seniores de Portugal nos Jogos Olímpicos de Paris, em julho.

Um caminho que a amiga Letícia, igualmente com 19 anos e cinta preta na modalidade, também persegue. Embora não ainda para esta edição dos jogos. A sensação de vitória, porém, Letícia conhece muito bem.

“A prática do judo amadureceu-me mais rápido, tirou-me da zona de conforto e ensinou-me a fazer as escolhas certas na vida”, diz Letícia. 

As duas jóias do judo de Portugal ainda trazem no rosto os sinais da adolescência, mas já andam nos tatamis há mais de uma década. Ambas foram apresentadas à arte marcial aos seis anos, no segundo ano da primária onde estudavam, na Escola Básica Ricardo Alberty, no Casal da Boba.

“Éramos de turmas diferentes, eu do 2.º A e a Taís do 2.º B, mas as nossas professoras eram bastante amigas e nos incentivaram a conhecer o judo, que começava a estar disponível aos alunos naquele ano”, recorda-se Letícia, que ainda levou um tempo a ouvir o conselho da docente. “Quando comecei, a Taís já estava lá”, conta.

A partir daí, as duas amigas não se separaram mais.

Das salas de aula da Ricardo Alberty foram para a vizinha Escola Miguel Torga, onde a arte marcial também era praticada entre os alunos numa parceria com a escola de judo Nuno Delgado. Em seguida, à medida que as competições começaram a virar rotina, sentiram a necessidade de dar um salto nos treinos.

Taís e Letícia vêem no judo uma via para amadurecerem, adquirirem confiança e fazerem novos amigos. Foto: Rita Ansone.

Taís e Letícia passaram então a frequentar as aulas de judo na mesma Nuno Delgado, mas em unidades fora da escola onde estudavam na Amadora, na tal saída da zona de conforto. Primeiro, em Telheiras, depois na Lapa, ambas em Lisboa. Foi nessa última onde conheceram o atual treinador, Miguel Santos.  

Nos últimos dois anos, as duas atletas seguiram o treinador para outro destino, o Clube Sport Algés e Dafundo, em Oeiras. É lá onde continuam a rotina diária de dois turnos de treinos, pela manhã e à noite, orientadas pelo exigente Miguel Santos, ao lado de outras quatro dezenas de judocas com o mesmo sonho. 

De entre golpes, quedas e cabeças novamente erguidas, fazer da brincadeira de infância um futuro.  

A Amadora no peito, mas ainda sem apoio

A intensa sessão de aquecimento inicia-se com a tradicional e obrigatória saudação entre atletas e os mestres no centro do tatame, seguida dos alongamentos, flexões de braços e pernas, e uma série de sprints. Só a partir daí começa a prática das sequências de golpes que fazem tremer o chão da sala de treinos no segundo andar do Clube Algés e Dafundo.  

Taís e Letícia treinam em par, a fim de facilitar o registo de imagens para esta reportagem. As duas atletas, porém, apesar da mesma idade, competem em categorias diferentes (menos 70 e menos 63 quilos, respetivamente). A diferença de peso, contudo, dilui-se com a técnica e os golpes sucedem-se naturalmente, as quedas aparadas por um espesso colchão.

Apesar de ainda ser um judoca júnior, Taís já combate entre os seniores e luta por uma vaga nos Jogos Olímpicos de Paris. Foto: Rita Ansone.

Letícia teve um início nas competições mais avassalador do que a colega. Foram sete pódios, em competições juvenil, júnior e sub-23 e até entre seniors. Uma série de contusões, porém, tem interrompido a sequência de treinos e disputas da atleta, que viu a amiga Taís seguir com mais estabilidade e tranquilidade para conseguir até o momento chegar mais longe.

Ainda com chances de fazer parte da equipa de Portugal nos Jogos Olímpicos de Paris, Taís já subiu em nove pódios, igualmente em competições juvenis, cadetes, sub-23 e seniores. É justamente a prestação entre os mais velhos, principalmente nas últimas edições do Grand Prix de Judo, que abriram uma porta olímpica para a atleta da Amadora.

A sequência de bons resultados no passado que antevê bons resultados também no futuro já rendeu a Taís um apoio da associação portuguesa Meritis, que consiste em cobrir os custos com os equipamentos de treino. É o único tipo de ajuda que conta. Levar o nome da Amadora para o mundo ainda não rendeu nenhuma ajuda oficial do município à atleta.

“Uma vez, convidaram-nos para fazer uma sessão de treinos com os miúdos da zona. Até agora, foi o nosso único contacto com a Câmara da Amadora”, lembra-se Taís. A falta de algum apoio do município onde nasceu, cresceu e criou raízes ao ponto da judoca não se ver a morar em um outro sítio, parece apenas mais um dos adversários a ser superado.

“O judo tem-me dado uma outra vida, mas foi na Amadora que sempre vivi, comecei a treinar e cresci e tenho todo o orgulho de dizer que sou de lá”, garante Taís, a judoca de poucas palavras e semblante sereno.

Sempre concentrada no próximo adversário que vem pela frente

A força de “quem vem de baixo

Miguel Santos grita e bate as palmas das mãos com força. “Vamos, vamos!”, incentiva, atento aos atletas que sistematicamente executam golpes entre si. 

“Elas dedicam-se e merecem todas as oportunidades. O nosso trabalho aqui é para que não percam essas oportunidades por falta de dinheiro”, reconhece o treinador de 39 anos, que conheceu Taís e Letícia quando as duas tinham 14 anos. 

A perseverança das miúdas da Amadora no tatami, para o treinador Miguel Santos, justifica-se também pela origem das judocas, vindas de zonas marginalizadas, que no caso do desporto, antes de ser um problema, para o treinador é sinónimo de mais dedicação. 

O treinador Miguel Santos acredita que os atletas oriundos de zonas mais desfavorecidas agarram melhor as oportunidades. Foto: Rita Ansone.

“A minha experiência diz que atletas sem problemas financeiros e com mais acesso a tudo também têm mais hipóteses de se dispersarem e o normal é que não dêem tanta importância aos treinos”, avalia o treinador, acostumado aos diferentes perfis que surgem à sua frente. Para ele, o judo exige que se agarre ao adversário como se agarrasse às oportunidades da vida.

“Quem vem de baixo normalmente está acostumado a enfrentar a vida com coragem. E o judo é um desporto de contato, que envolve uma certa dose de coragem. Os atletas acostumados à uma realidade mais dura costumam ser mais rijos e agarram aquilo com mais força, pois sabem que o futuro pode depender da sua dedicação”, afirma.

Miguel Santos lembra ainda que o judo, como uma arte marcial dotada de um código moral, serviu de baliza para que as duas atletas da Amadora não respondessem ao ambiente hostil com mais hostilidade. “O judo reforça os bons princípios e ensina a quem o pratica manter o autocontrole ao responder às ameaças e desafios da vida.”

Um exemplo para os jovens do Casal da Boba

Vida fácil é o que os atletas não têm no “tapete”.

O treino cumpre quase duas horas, mas apesar de extenuadas, as duas judocas da Amadora mantêm a pica do início. Principalmente Letícia, que não vê problema em girar pelo ar o corpo da colega, mais pesado do que o dela, até a queda ser amortizada pelo colchão.

Letícia leva a colega Taís ao tatame: sonho em ser psicóloga e formação para treinadora de judo. Foto: Rita Ansone.

Aos músculos, Letícia adiciona a força do raciocínio. A atleta não esconde uma certa curiosidade com os meandros do funcionamento do cérebro e das emoções humanas. Entre os golpes que encaixa nas sessões de treino, a judoca encaixa os estudos para um dia poder formar-se em psicologia.

Mais pragmática, como nos combates, Taís pondera a área de finanças e contabilidade. 

Mas as duas, seja com a psicologia ou com os números, pretendem utilizar o conhecimento adquirido até hoje, dentro e fora dos treinos, em benefício da comunidade.

Temos a noção que somos um pouco de exemplos aos jovens do Casal da Boba e que a nossa história de uma forma ou de outra acaba por servir de incentivo para eles”, reconhece Letícia.

Uma das formas de ajudar à comunidade de onde são pode ser no garimpo de novas taíses e letícias na Amadora, para alegria do treinador. Enquanto não se dedica às técnicas do divã, Letícia aprimora as técnicas da modalidade, num curso de formação contínua para treinador, ministrado pela Associação de Judo do Algarve. 

“Ela tem imenso jeito para isso”, atesta o treinador da futura treinadora. “Quando fazemos as nossas atividades com alunos de escolas ou crianças em geral, ela tem sido uma das nossas melhores monitoras”, reforça Miguel Santos. 

O treinador elogioso lamenta as últimas lesões que têm atrasado o percurso de Letícia como atleta, mas está confiante que a judoca vai superar as dores e as frustrações e alcançar o nível da colega de tatami. O pormenor não diminui a admiração de Miguel Santos pela dupla de atletas da Amadora.

“A Taís e a Letícia são um super caso de sucesso. Para mim é um privilégio tê-las no tapete. Quem me dera se contasse com mais atletas com esse espírito, pois a minha vida seria muito mais fácil”, remata.



Álvaro Filho

Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.

alvaro@amensagem.pt


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2 Comentários

  1. Não consigo perceber como o Casal da Boba é descrito como um local marginalizado. Está bem construído, sofreu obras de melhoramento recentemente, tem ao lado a área comercial Ubbo e está a poucos minutos de autocarro do metro. Autocarro esse que com a Carris Metropolitana tem muito mais oferta. A discrição do local não faz sentido não minha opinião.

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