Era fim de tarde, um homem entrou na Pikikos e pediu um café. Falava inglês, era de Singapura, estava em Lisboa em trabalho, e ao perceber que naquele espaço também se cortava o cabelo, perguntou se poderia cortar o dele. Foi o método usado que despertou curiosidade ao consultor singapurense na área do jornalismo: ao lado, Carla, outra das cabeleireiras, cortava o cabelo a uma mulher, prendendo madeixas por elásticos, para depois serem cuidadosamente guardadas.

O homem perguntou a Ramona, uma outra funcionária, que método era aquele e, em inglês, a cabeleireira explicou que aquelas madeixas eram recolhidas e enviadas para uma organização em Inglaterra que fazia perucas de cabelo verdadeiro para doar a crianças e jovens com cancro – a Little Princess Trust. Estamos em Campo de Ourique.

A recolha de cabelo para doar a quem esteja a fazer tratamentos oncológicos foi um projeto que Natasha von Muhlen abraçou desde que criou a Pikikos. Agora quer alargá-lo e explica como. Imagem e edição de vídeo: Rita Ansone e Inês Leote

Sensibilizado, o homem, ao pagar o corte de cabelo, fez questão de pagar também o da mulher que estava a doar o cabelo dela. Sem saber, porque não falava português e não percebeu a conversa que estava a acontecer mesmo ao lado dele: que uma das razões que a levava a fazê-lo era que ela própria tinha um filho com leucemia.

Soube uns dias mais tarde, quando voltou à Pikikos, e Natasha, emocionada com a história da mulher e a solidariedade dele, fez questão de lhe contar. Natasha von Muhlen é a proprietária deste espaço.

E foi assim, através de alguém que vive em Singapura, a mostrar como o mundo é pequeno e grande, que soubemos que havia um cabeleireiro em Campo de Ourique que recolhe cabelo e o envia para Inglaterra, para fazer perucas de cabelo verdadeiro para doar a crianças e jovens com cancro.

  • Natasha von Muhlen, Pikikos, Campo de Ourique
  • Pikikos, Campo de Ourique
  • Pikikos, Campo de Ourique

“Temos muitas pessoas que fazem doação de cabelo, algumas vêm cá de propósito para isso”

A consciência de que as ações de cada um de nós podem fazer a diferença na vida dos outros e na sustentabilidade do planeta, sobretudo se se multiplicarem, tem norteado a vida de Natasha von Muhlen, 43 anos, metade holandesa, metade portuguesa.

Veio para Portugal em 2009, por amor. Tinha conhecido o marido, português, em 2005, quando fez um estágio cá. Voltou para a Holanda, acabou o curso de Ciências da Comunicação e começou a trabalhar na área da responsabilidade social corporativa – ramo em que se manteve quando se mudou para Lisboa, criando a própria empresa de consultoria.

Natasha von Muhlen, Pikikos, Campo de Ourique
Natasha von Muhlen chegou a Portugal em 2009. Foto: Rita Ansone

Durante uma década, desenvolveu projetos para grandes empresas como a EDP, a Novartis ou a Microsoft. Até que decidiu mudar de vida.

“Queria fazer alguma coisa diferente, mas sempre ligada ao impacto social e à sustentabilidade. Primeiro, ainda pensei numa quinta pedagógica, mesmo no centro de Lisboa, porque na Holanda temos muitas, quase uma em cada bairro. Gosto imenso de animais, mas não tinha formação nenhuma nessa área, e então lembrei-me de fazer um cabeleireiro para crianças, mas eco-friendly, porque o mercado dos cabelos e da beleza tem muitos produtos tóxicos. E foi à volta disso que criei todo o conceito”, conta Natasha, mãe de quatro filhos, a mais nova com 10 meses.

Assim nasceu a Pikikos, em 2019, na Rua 4 de Infantaria, 53 C, em Campo de Ourique. Cut-Care-Coffee: que é o mesmo que dizer cabeleireiro, loja e café. Tudo pensado para cumprir o 12.º dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, afixados numa das paredes do espaço: “Produção e Consumo Sustentáveis”.

  • Pikikos, Campo de Ourique
  • Natasha von Muhlen, Pikikos, Campo de Ourique
  • Natasha von Muhlen, Pikikos, Campo de Ourique
  • Pikikos, Campo de Ourique

“Toda a remodelação que fiz aqui teve essa preocupação. O chão da zona do cabeleireiro é feito de plástico reciclado de redes de pesca, os materiais são de uma empresa que não usa água na produção, as prateleiras e o bar são de madeira reaproveitada e fiz estes bancos com as madeiras que sobraram. As mesas e as cadeiras foram compradas em segunda mão e o elefante onde as crianças cortam o cabelo é de cortiça”, explica Natasha.

Tanto os produtos que vende como os que são utilizados no cabeleireiro são de marcas B Corp, o que significa que estão certificadas como empresas social e ambientalmente responsáveis – ou seja, com impacto positivo na área social, ambiental, laboral e comunitária.

As toalhas são de algodão orgânico, a lavandaria com a qual o Pikikos trabalha é da Ajuda de Mãe, uma instituição de solidariedade social. A água usada na lavagem dos cabelos é reutilizada para o autoclismo na casa de banho. E até as pratas usadas no cabeleireiro, a que evitam ao máximo recorrer, são pratas recicláveis.

  • Pikikos, Campo de Ourique
  • Pikikos, Campo de Ourique

Para quem, como Natasha, tem sempre presente o impacto, positivo ou negativo, das suas ações, a ideia de, tendo um cabeleireiro, recolher cabelo para fazer perucas de cabelo verdadeiro para pessoas que estão a fazer tratamentos oncológicos foi, por isso, natural.

Verificando que em Portugal não havia para onde enviar, todo o cabelo que recolhe é doado à organização britânica Little Princess Trust, mas Natasha quer criar um projeto que permita manter o cabelo cá.

“Temos muitas pessoas que fazem doação de cabelo, algumas vêm cá de propósito por isso e eu agora estou a estudar uma forma de fazer cá o que a Little Princess Trust faz em Inglaterra, mas para crianças e adultos. Só preciso é de tempo e de parceiros. A minha ideia é a Pikikos passar a receber cabelo de Portugal inteiro e ter uma estrutura montada para fazer as perucas, que serão doadas a crianças, jovens e adultos que perderam o cabelo”, explica Natasha.

“Desta forma, mantenho o cabelo cá, para pessoas que precisem, e crio postos de trabalho. Mas para isso, preciso de angariar fundos, porque não tenho como suportar os custos sozinha, e delinear um projeto”, diz. E adianta que espera ter tempo para o fazer a partir de fevereiro, quando entrar o parceiro para a exploração da parte do café, também de marca sustentável.

Combater a poluição do mar com cabelo humano

A escolha de Campo de Ourique foi estratégica.

É um bairro com muitas famílias e muitas crianças e embora a localização não seja a mais central, a Pikikos tem conseguido afirmar-se, sobretudo enquanto cabeleireiro e concept store na área dos produtos eco-friendly.

Sobreviveu à pandemia, que aconteceu um ano depois da abertura do espaço e tem clientes que vieram pela primeira vez com um ano e agora têm seis. Vir cortar o cabelo é um programa para eles.

“Vêm com os manos e ficam ali a brincar enquanto esperam. Os brinquedos nunca mudaram desde que abrimos e eles adoram. Pedem aos pais para vir aqui porque é especial para eles. Mas a maioria dos clientes são adultos, muitos vieram com a Ramona, outros vieram ‘atrás’ dos filhos. Mas temos sempre muitas coisas a acontecer, fazemos pop ups, workshops, iniciativas de solidariedade. Cria-se aqui uma comunidade”, conta Natasha.

As roupas em segunda mão, uma novidade na loja, resultam de um pop up. Também há os pijamas para crianças feitos de camisas de homem recicladas, uma ideia de Natasha concretizada pela SOUMA – instituição de solidariedade social de apoio a pessoas desfavorecidas -, as casinhas de madeira para combater a lagarta do pinheiro feitas noutra organização onde trabalham pessoas com défice intelectual, ou uma série de produtos de cosmética, e não só, eco-friendly.

Ideias não faltam a Natasha e outra delas é a criação de tapetes ou almofadas com enchimento de cabelo humano para reter as fugas de petróleo no mar e combater a poluição dos oceanos.

“Esse é um mega-projeto, mas que eu também gostaria de desenvolver, porque Portugal tem tanto mar, não é? Já está a fazer-se em vários países. Com meias ou collants de nylon cheios de cabelo cortado fazem uma espécie de tapetes que captam fugas de petróleo. Quero muito fazer isso, mas claro que não consigo fazer tudo sozinha”, diz Natasha.

As ações de cada um de nós podem fazer a diferença na vida dos outros e na sustentabilidade do planeta, sobretudo se se multiplicarem. Não está escrito em nenhuma das muitas frases expostas no espaço da Pikikos, mas é isso que se traz de lá. Além de um bom corte de cabelo.


Catarina Pires

É jornalista e mãe do João e da Rita. Nasceu há 49 anos, no Chiado, no Hospital Ordem Terceira, e considera uma injustiça que os pais a tenham arrancado daquele que, tem a certeza, é o seu território, para a criarem em Paço de Arcos, terra que, a bem da verdade, adora, sobretudo por causa do rio a chegar ao mar mesmo à porta de casa. Aos 30, a injustiça foi temporariamente corrigida – viveu no Bairro Alto –, mas a vida – e os preços das casas – levaram-na de novo, desta vez para a outra margem. De Almada, sempre uma nesga de Lisboa, o vértice central (se é que tal coisa existe) do seu triângulo afetivo-geográfico.


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