David e Beniko, na redação da Mensagem com o livro. Foto: Inês Leote

David Lopes é gestor, ex-administrador da Fundação Francisco Manuel dos Santos e durante dois anos viveu em Tóquio onde foi administrador da empresa de supermercados Aeon Topval. Escreveu um livro sobre esta experiência bem pessoal, Varanda Sobre Tóquio (Avenida da Liberdade Editora). Beniko Tanaka, artista japonesa de teatro de sombras, vive em Lisboa há 18 anos. Encontraram-se na redação da Mensagem para cruzar diferenças e semelhanças entre as duas cidades: Tóquio e Lisboa. Uma conversa saborosa e cheias de ideias para ficar a pensar.  

O Valter Hugo Mãe no prefácio diz que este livro tem “alegria no relato” e uma “amorosidade maravilhada”. Em alturas diferentes usa estas duas palavras. No sentido em que já viveste em muitas cidades, David, porque é que esta foi especial, tanto que deu um livro? 

David Lopes – Eu senti-me menos perdido em Tóquio do que, por exemplo, da primeira vez que vivi fora, há muito tempo, numa cidade que foi o meu primeiro expatriamento sério e profundo que foi Poznań na Polónia. Era uma cidade muito mais pequena. Mas senti-me mais perdido em Poznań do que em Tóquio. Se calhar havia menos indicações em inglês do que encontrei em Tóquio. O metro também está em japonês, mas também está em inglês agora, não é? E, portanto, a certa altura, eu diria que me senti menos perdido no sentido em que, fosse para onde fosse, havia sempre uma forma de saber onde estava. E, obviamente, quando temos a internet no bolso, também ajuda, não é? É verdade. E depois também já conseguimos ler o que vamos comprar no supermercado. Não conseguia distinguir, se calhar, às vezes, uma caixa de cereais de pequeno-almoço de um detergente. Podia ser assim, estou a exagerar, mas é um pouco esta imagem. 

De facto tu não te sentes sozinho em lado nenhum. Nem estranho em lado nenhum.

Beniko Tanaka – É esse sentimento que eu precisava de sentir, por isso, em 2005, portanto, há 18 anos, comecei a viver aqui. Em Tóquio é tudo quase automático. Até abrir a porta. Até entrar na casa de banho. Abrir a tampa. Tudo. Tudo automático. Tudo automático. E eu queria aprender o que é que podia fazer…

E Lisboa era bastante diferente do que é hoje, em 2005. 

BT – A primeira vez que viajei para Lisboa foi em 2002. Então… Sim, lembro-me perfeitamente. Eu estava a andar aqui, e perguntava: aqui é a capital de um país? Havia zero pessoas na Baixa à noite. Muito menos iluminação. Fiquei com medo, mas, ao mesmo tempo, senti o ambiente… E como somos um animal, né? Somos biológicos. Então, quando sinto alguma coisa diferente, acordou-me! E isso, eu pensei que eu queria reeducar-me em Portugal. 

DL- É verdade, ou é demasiado romanceado que os japoneses têm um interesse crescente por Portugal?

BT – Sim. 

DL – É verdade que na escola falam dos portugueses? Da nossa história quando nós chegámos ao Japão? É mesmo isso?

B – Sim, na escola primária do Japão, passamos ali na história dos primeiros ocidentais a chegar que eram portugueses. E depois o famoso São Francisco Xavier, nós chamamos de “Tzabier”… 

DL – É o português mais famoso no Japão? 

B – Sim, de facto, é. Todo o mundo, desde pequeno aprende. 

DL – É uma vez vi uma capa de telemóvel com São Francisco Xavier, comprei!

B – E depois falamos que alguns japoneses, ou meninos japoneses, pronto, orientados por jesuítas, foram para Portugal… E que vieram fazer um circuito. 

DL – Sim. Foram a Roma, foi uma loucura. Sim. Aquilo era a coisa mais exótica do mundo, não é? E foram também vestidos de forma japonesa, com os kimonos e tudo e, portanto, o Papa quis estar com eles. Sim. Recebeu-os duas vezes, acho eu.

BT – Ficaram na igreja de São Roque. Depois Sintra, Coimbra, Vila Viçosa – a casa dos Bragnça. E depois de barco para Roma. Isto tudo aprendemos. 

DL – E é por isso que senti  uma grande diferença. Nunca encontrei nenhum japonês com quem falasse sobre o meu país que não soubesse onde é que o meu país era. Nos Estados Unidos, metade das pessoas com quem fui falando não sabiam. Portanto, muitos arriscavam dizendo que era na América do Sul. Nem percebiam o que eu dizia. Muitas vezes até o Ronaldo era mais conhecido pelo meu país. Isto não é uma caricatura, é verdade. Nunca encontrei nenhum japonês com quem falasse que não soubesse onde era Portugal. Todos sabiam. Na Europa, perto de Espanha… Agora, de facto, é extraordinário porque estamos a falar de um país que está do outro lado do mundo, não é? E por isso alguma coisa tem que existir. De facto, nós chegámos lá com um projeto religioso, de evangelização e de comércio. 

Foto: Inês Leote

Mas não de conquista, não é?

DL – Mas não com soldados. E, aliás, a grande razão pela qual nós fomos expulsos, os jesuítas, teve sempre a ver com aqueles que se sentiam prejudicados no poder e nos negócios, pela força dos portugueses. Esses usaram a conquista dos espanhóis pela força, nas Filipinas, contra nós. … Porque Portugal estava sob domínio espanhol. O daymo Toyotomi Hideyoshi tinha uma bela relação com o nosso padre jesuíta mais influente, o João Rodrigues, e que falava japonês corretamente, e que lhe trazia novidades sobre o mundo de fora, sobre a Europa. Mas o japonês dizia-lhe muitas vezes: Quem é o teu rei? É espanhol ou é português? Porque eu o ouvi dizer que é espanhol. Ele dizia, é espanhol, mas a gente não gosta deles. E, ele: mas o que é que é isso? Mas ele é que é o líder e vocês não gostam deles? Que garantias tenho que ele não vai fazer o mesmo, que chegam aí com uns barcos cheios de soldados, com os canhões, que foi o que fizeram os espanhóis nas Filipinas. E depois havia política e boatos e um ambiente péssimo. Só íamos praticamente a Nagasaki, mais ou menos um navio por ano. E era tão impactante a chegada daquele navio, vinha carregado seda – a seda dos chineses que, por razões bélicas e políticas, tinham uma relação péssima com os japoneses. E os portugueses eram os intermediários. Levavam a seda muito desejada no Japão e recebiam prata. E, portanto, a economia, a sustentabilidade dos jesuítas e a importância que tinha a chegada daquele navio a abarrotar de mercadoria fazia com que a relação se mantivesse de um ano para o outro. Porque todos ansiavam que o novo barco chegasse. E aconteceu, uma ou duas vezes, se calhar aconteceu mais, mas eu não consigo ser rigoroso, que o navio não chegou porque se afundou. E isso era uma tragédia. Porque durante dois anos, quase, os que lá estavam ficavam sem apoio financeiro e viam-se muito aflitos para continuar a manter as igrejas a funcionar. Portanto, eram coisas absolutamente extraordinárias.

Foto: Inês Leote

Essa capacidade negocial está muito presente também em Tóquio, não é? Tóquio é uma cidade absolutamente comercial, por todo o lado. Isso é a âncora da cidade, não é? 

BT – Hoje em dia, sim. É isso tudo muito comercial. Qualquer coisa, até um doce português, os pastéis de nata, qualquer coisa de francês…

DL – Por exemplo, eu não sei comparar, porque não sei comparar as lojas tradicionais, antigas, históricas. Nós, aqui em Lisboa, sempre que ouvimos uma notícia de uma loja histórica a desaparecer, as pessoas que se interessam, sofrem. A pergunta é, em Tóquio também há esse desaparecimento? 

BT – Claro que sim, claro que sim. Na minha geração, já tinham desaparecido muitas coisas. Os meus pais e amigos com mais idade, falam sobre isto. Muitas lojas de comida tradicionais,mesmo supermercados. Mudança de roupa para mais ocidental. 

Mas ainda há lojas… Há lojas de kimonos, há lojas de facas, há lojas de chá… Aqueles chinelos Zori? 

BT – Mas também, como é uma cidade tão grande, tão grande, ainda conseguem sobreviver a algumas lojas históricas, não é? Sim, e também há conceitos novos, conceitos novos. Utilizando materiais de cultura tradicional, ou produtos tradicionais, ou seja, há muito artesanato. De mestres, tem que ser 10 anos de prática com mestres… E depois a herança deste mundo. Há um muito forte respeito desse trabalho…

DL – Eu encontrei uma loja só de mel. 

Eu acho que uma tendência de ser japonesa, é sempre fazer qualquer coisa. Sempre. Sempre fazer. Na geração dos meus pais, antes do computador era muito mais. Fazer, trabalhar, realizar, se não funciona, tratar. Não é a religião, mas uma coisa… ainda existe esta espiritualidade do antigo xintoísmo. O espaço tem energia. É uma coisa viva. É a energia viva. Temos que tratar. Se não, o espaço fica zangado.

Beniko Tanaka

Tóquio é uma cidade gigantesta mas é também um conjunto de pequenos bairros. Disso fala-se também neste livro. Sente-se em duas escalas. Metrópole e bairro, não é? 

DL – Eu sinto isso. Tóquio, a metrópole, há momentos em que eu sinto que estou numa metrópole gigantesca. Que não consigo sequer imaginar o quanto grande é. E ao mesmo tempo, de repente, sinto-me que estou numa pequena vila, quando estou dentro de bairros. Estou numa micro escala. É como se tivesse pequenas povoações dentro de uma grande cidade. Acho que o bairro, a figura do bairro… É mais forte. É mais forte. Não é? 

BT – Não sinto assim. Os bairros tradicionais. Bairros tradicionais, sim. Tem comunicação, são comunitários, há vizinhos. Agora, eu sempre cresci em Tóquio. E, pronto, cada vez… pronto, cada vez as pessoas se sentem mais desligadas, entre vizinhos. Há mais perigo das pessoas na rua…

Perigo em Tóquio? 

BT – Os japoneses sentem isso…

De quê?

BT – Se for uma mulher na rua e alguém a segue… Ou roubo de qualquer coisa. Mas isto é… a mídia, ou seja, televisão, programação, hoje em dia muito mais na internet. Projeta-se a ameaça. E os japoneses estão sempre a olhar para algum ecrã. Então, é isso. Eu acho… eu sinto que é muito diferente o que realmente está a acontecer e aquilo com que as pessoas se preocupam. Os meus pais não me deixaram ver televisão, desde pequena. Eu cresci no centro de Tóquio. Em Nerima, não é assim bem bem centro. 

DL – Onde é que a Beni se sentiu mais segura? Em Lisboa ou em Tóquio? 

BT – Em Lisboa. 

DL – Sério? 

BT – Sim. Isto é… É estranho, não é? É. Porquê pergunta isso? Porque é, de facto, estranho. É estranho. 

DL – Mas, quando vemos os rankings dos países mais seguros do mundo, Portugal está à frente do Japão. 

BT – Eu acho que tem a ver muito com o controlo que se sente em Tóquio. Tensões de não pode fazer isto,não pode fazer isto. Aqui é já muito perigoso. Temos muitas coisas invisíveis, mas regras. Sim, por exemplo, dentro do comboio, metro, autocarros, ninguém disse: não pode falar! Mas não se fala. Não se bebe, não come. E isto são coisas que sentimos, quase telepático, temos que ser assim para perceber as regras. Isto é interessante, mas ao mesmo tempo, há fortes tensões. Tem que ser ao nível muito dos nervos.

Beniko Tanaka
“Na escola primária do Japão, passamos ali na história dos primeiros ocidentais a chegar que eram portugueses. E depois o famoso São Francisco Xavier, nós chamamos de “Tzabier”” Foto: Inês Leote

De que coisas de Tóquio têm saudades em Lisboa?

BT – Onsen (os banhos públicos). Tratamento da natureza, com água quente, termal, é muito diferente daqui. O Japão é um país vulcânico, tem muita abundância de água, que é uma coisa super incrível. É difícil dizer, talvez eu…

DL – Eu gosto dos comboios e do metro. De poder ir de um lado para o outro rapidamente. Eu lembro-me de uma vez, ia jantar num restaurante que eu pensava que era em Tóquio. E era a 160 km de Tóquio. E eram 5 da tarde e eu estava no apartamento porque o jantar era às sete. E estava tranquilo e telefonaram-me dizendo, onde é que estás? E eu: estou em casa. Daqui a bocadinho vou para o restaurante. Em casa!? Ou seja, deram-me o nome de uma cidade e eu pensava que era um bairro. E como é que tu vens? E eu disse que ia apanhar um Uber. Não! Mas isto fica a 160 km de Tóquio!!! Era como ir para Coimbra. Um jantar em Coimbra. E eram cinco da tarde. E eles viram na internet que se eu apanhasse o metro dali a 15 minutos, com ligação na Estação Central de Tóquio, apanhava o comboio a seguir e chegava a um quarto para as sete. E foi a verdade. Com o Shinkansen para aquela cidade que eu não me lembro qual é, para ir a um dos melhores restaurantes do Japão, e cheguei a horas. E eu pensei que em Lisboa não chegaria a horas se fosse em Oeiras!

E isso eu sinto falta. Porquê? Porque nos permite usar menos o carro próprio. Dá mais saúde, mesmo que as pessoas vão caladas, num ambiente menos relaxado. Mas sabemos com o que é que contamos. O previsível, nesse aspecto, dá-nos alguma tranquilidade. 

David Lopes

Porque é que existe essa rede tão boa de transporte?

DL – O que eu sinto é que na maior área metropolitana do planeta, que é a de Tóquio, se não houvesse uma rede de transportes, seria o caos. Se calhar a cidade cresceu à conta dessa rede. Mas os comboios… não mudaram nos últimos 20 anos, não há grande inovação. Se lermos os relatos de Tóquio logo a seguir à Segunda Guerra Mundial, temos uma cidade destruída. Completamente, não é? O embaixador Franco Nogueira tem um livro, ele foi colocado no Japão, logo a seguir à Guerra. Portugal não tinha uma embaixada, mas coloca um diplomata. E ele descreve que fica a viver num hotel, e vai descrevendo as semanas seguintes e os meses seguintes ao final da Segunda Guerra Mundial. E ele dá-nos um retrato muito duro e difícil ao mesmo tempo, inclusive a da separação de transportes entre japoneses e estrangeiros, que não se misturavam, era proibido, no início. E as observações dele são: ‘Voltei a esta rua passado um mês e já há lojas abertas. Voltei a esta rua passado três meses e já há prédios construídos e habitados.’ Ou seja, dá uma imagem de que há uma mobilização da população que vem de dentro e que quer reconstruir Tóquio e a sua alma o mais depressa possível. E eu não sei até que ponto isto não encaixa na resposta. Vamos pensar e como temos um papel em branco, isso permite, se calhar, que o próprio sistema viário e ferroviário e transportes comece a ser pensado de forma a que ele não fique como um garrote. Não sei. Deve ter a ver com isso.

Isto é uma grande diferença em Lisboa, não é? A massa crítica que existe em Tóquio faz com que seja possível que um negócio pequeno seja possível. Em Lisboa, por outro lado também não sabemos aproveitar estes artesanatos, que desaparecem. Quando chegas a Lisboa, David, o que sentes? 

DL – Fico mais sensível ao lixo que vejo, fico mais sensível ao barulho, ao cheiro. Embora o cheiro tenha mais a ver, se calhar, com a vida da noite, em sítios com muitos bares. Acho que aqui, apesar de tudo, é mais fácil que o espaço fique desqualificado. Mas há uma grande diferença. Incomoda-me mais. Quando depois passo aqui muitos meses… já nem noto, porque não olho. Fico habituado e é mau. Mas de facto é uma terapia.

Foto: Inês Leote

A questão do lixo, é uma grande diferença com Tóquio.

DL – Lixo na rua não existe. Nada, nada. E tem zonas turísticas com muita pressão. Claro. Não nos fazia mal nenhum não continuarmos a perseguir aquela coisa do ah, somos latinos… Não, não. Acho que para certas coisas não podemos ser. Nada é impeditivo nem colide com sermos obsessivamente preocupados com o espaço público. Não, é que devíamos mesmo ser.

O espaço público é a coisa mais democrática que temos para oferecer. É onde ricos e pobres, felizes e infelizes, andamos todos. É algo que o Japão exibe com todo o orgulho. E eu acho que o Japão, nesse aspecto, é um exemplo extraordinário. O que nós temos lá é uma obsessão. Que é: preocupa-me o que fica… E as pessoas todas têm esse cuidado, não é?

David Lopes

BT – Sim. Isto aqui também aprende-se na escola primária, eu aprendi.E se nós fazemos alguma coisa… Limpamos. Levamos o lixo para casa para não sujar. Tipo, se fazemos alguma coisa, é lixo, suja, limpa..

DL – Educação. Educação. Educação. Educação. Cívica. Educação cívica. É sempre assim. E onde está limpo, suja-se menos. 

Tens algum episódio interessante disso na tua vida em Tóquio. 

DL –  Nós, de vez em quando, precisamos de pessoas que nos vão a casa ajudar a fazer qualquer coisa. Nem que seja por furar uns buracos na parede para pendurar uns quadros. Obviamente que há pessoas muito preocupadas e com certeza grandes profissionais. Mas é assim. Ver um homem a fazer um furo na parede com um pequeno aspirador por baixo para apanhar todos os pozinhos que caem do buraco. É uma revelação.Isto é extraordinário. Ou seja, em vez de ficar em cima do rodapé todo, que é o típico, não é? Não. É a própria pessoa que está a fazer um buraco que deixa aquilo irrepreensível. 

Beniko quando chegaste cá… Havia muita desorganização. Apitos na rua…

BT – Eu lembro de reparar nos pombos na casa. Pombos ocuparam… espaço. Os prédios. Tudo. Até escrevi uma poema, sobre os pombos de Lisboa? Sobre os pombo. Os pombos de Lisboa. Porque… Os pombos de Lisboa estavam muito lentos. E até morrerem, eu não sei. Mas o carro passando por cima deles, que eu nunca tinha visto. Em Tóquio os pombos super rápidos, como pessoas, é tipo fugia de tudo. Aqui não…. 

DL – A cidade dos pombos lentos. 

Mas é um bom título, Lisboa é a cidade dos pombos lentos.

BT – Exato, a cidade dos pombos lentos. Mas é bom, é bom. Mas isto… Era estranho para mim. Até é básico, alguns animais, não é? Em Tóquio, sempre que os carros passam, as pessoas, passam rapidamente. Sim. Tudo é rápido.

Há uma velocidade diferente em Tóquio e Lisboa

DL – Sim, as pessoas andam rápido, lá e têm cuidado quando andam mais devagar, se chegarem para o lado esquerdo, para deixar passar as pessoas. 

Mas o ritmo do trabalho não é mais rápido. É burocrático também, não é? 

DL – Sm, é uma generalização, claro. Mas até é mais pensado, ou seja, demora-se mais tempo a tomar uma decisão. Fazem-se muitas reuniões sobre a mesma coisa.

BT – Não é bom falhar. Temos um pouco de medo de falhar. É um tema politicamente também muito forte. Porque quando se falha… É responsabilidade total.

DL – Se a minha falha implicar consequências negativas nos outros, eu apresento publicamente desculpas. Exato. 

BT – Isso é haraquiri mental. Isso… Hoje em dia não se pode usar haraquiri, mas…Mas a preocupação deste tipo é tal…

DL – Eu vi várias vezes no jornal empresas que cometeram erros com um produto que estava estragado. O Conselho de Adminstração a dar a cara. Um pedido de desculpas formal, escrito, e a equipa fazer uma vénia de pedido de descupa. 

BT – Shazai. Vénia, pesadíssima. 

DL – E, portanto, eu vi essa posição de todos, da equipa, a gestão, não é, numa fotografia de jornal, uma desculpa à sociedade pelo erro que tinham cometido. Nem sequer é responsabilidade, é mesmo culpa.

BT – E há uma dificuldade de desculpa. Isto aqui sempre fica na minha mente. E de errar, assumir o erro. Em Portugal houve um enorme choque cultural para mim… No início da minha vida em Lisboa, hor��rios… Eu não sabia que podia ultrapassar a hora de encontro. Eu nunca aprendi isso. Sempre tem que ser cinco minutos antes. 

Com amigos que encontrei no início, na escola, aprendendo português, passava cinco minutos, dez minutos, trinta minutos, eu fiquei… O que aconteceu?  Liguei, então ele disse… Ah, pois é, nós… Desculpa, não posso sair… O quê!!! Partia-me o coração. Mas é verdade, para os japoneses fazer isto…tipo, desrespeito total!!! Aprendi isso. É, mas demorou. 

Baniko Tanaka
Foto: Inês Leote

DL – A empresa onde eu trabalhava… em Tóquio tinha duas grandes torres. Eu trabalhava no oitavo andar de uma das torres, mas tinha reuniões muitas vezes noutro edifício. E portanto era preciso fazer um percurso que iria a pé, vamos dizer entre a praça do comércio e o Rossio. Era agradável se não estivesse nem chuva, nem neve ou muito frio ou muito calor. E sabia-se que demorava mais ou menos 10 minutos.

E a minha assistente lembrava-me sempre de que aos 20 minutos antes da reunião eu tinha que sair. Porque é suposto eu estar um bocadinho antes da reunião começar.

David Lopes

Porque a reunião começa àquela hora e não quando chegamos. E portanto se eu chego em cima a reunião vai atrasar. E portanto ela chamava-me sempre à atenção dizendo… Tem que sair. López San, tem que sair. Ela colocava na minha agenda a hora da reunião e a hora que eu tinha que sair do meu gabinete para chegar a tempo à reunião. E a vida de rua… É algo que se fala muito no livro, do hábito da rua, de viver a cidade.

DL – Muitos desses locais onde fui ter, foi pela vida de rua. E, portanto, muitos deles encontrei-os sem os procurar. É uma lacuna porque é das coisas mais interessantes em Tóquio é a vida de rua. Principalmente quando o tempo permite, um fim de tarde ou um fim de semana, que se anda por Tóquio. Há dezenas e dezenas de galerias, restaurantes, casas… Tascas. Tascas. Lojas de design, livrarias… Ou seja, há tantas coisinhas… Supermercados também. Há tantas coisinhas… E jardins. Pequenos jardins. Eu até uma vez, não são muito visíveis, mas passei por um cemitério. Não sei o sítio onde era. Não estava à espera, não tinha noção de como era espacialmente. Também era muito compacto, porque era no meio da cidade. Assim, meio abertos. A vida de rua é muito interessante. E quando precisamos de ajuda e pedimos ajuda, temos ajuda.

Isso apesar de o contato ser bastante restrito, não é? 

DL – Sim. É possível sentires-te completamente sozinho e não falares com ninguém. Porque as pessoas não te abordam também. Primeiro porque és ocidental, não te veem.  E portanto, podemos passar um dia inteiro a andar… Sem falar com ninguém. Sem cruzar o olhar sequer, não é? Mas as pessoas olham, mas não de frente. Eu nunca olhei de frente, mas senti-me várias vezes, ligeiramente observado. Eu acho que depende do nosso estado de espírito. Isso pode ser também muito bom e redentor. E não estou a ser invadido na minha privacidade. Se o meu estado de espírito for de querer falar com alguém… não… 

Beniko, quando vieste para Lisboa, esse é um dos primeiros embates, não é?

BT – Olha, isto é que eu queria aprender. Eu queria aprender como é que posso comunicar… Por exemplo, no Japão não há beijo. E… o beijo nosso, que é o japonês, é distância. Tipo, sei… mínimo sessenta centímetros, por aí. Mais perto do que cinquenta centímetros ficamos pânico. Muito perto. Ui, um toque. Aprendi. Mas no início? No início… quando cheguei aqui, as pessoas… tocam-se! Como é que está? Tudo bem? Tudo bem? Onde quer ir? Mesmo sem saber eu o que falar. E muitas vezes deram-me a direção completamente errada, mas não faz mal. Comunicar, não é? Um toque. E como é que eu senti? Senti o humano! Bem-vindo… Sim. Assim… Esta maneira de comunicar, eu tenho que aprender. 

E quando voltas lá?

BT – Ah… eu tenho que… mudar a cabeça. Sim. Depois de sair o avião… Passo a passo… É… Tenho que meditar. Não posso beijar ninguém. Não posso abraçar ninguém. 

E essa é a razão porque nunca deixarás de sentir estranho.

DL – Sim. Acho que é uma boa definição. O facto de não haver um contacto… Direto… Visual. E não haver um toque amistoso que seja de boas-vindas, no braço. Acho que a forma de exprimir isso é: serás sempre um estranho. Ou será sempre estranho para ti. Mesmo quando estás a trabalhar com pessoas há muito tempo. Eu lembro-me de uma senhora com a qual trabalhava, foi uma das primeiras pessoas que eu conheci no Japão. E, portanto, já tinha 4, 5 anos de relação profissional com ela. E sentia-a quase como uma mãe. Nesse sentido, de facto. E foi uma grande vitória para mim, no final, poder dar-lhe um pequeno abraço. Mas foi um abraço muito ligeiro. Ou seja, inclinado. Cada um inclinou-se para o seu lado. Para o lado esquerdo e para o lado direito. E pedi autorização. Porque eu sabia que ela ia reformar-se, ia deixar de estar com ela. E tive mesmo necessidade de exprimir isso. Mas fiquei a pensar se ela não preferia que eu não tivesse. Mas foi o máximo que eu consegui. 

BT – As pessoas gostam. No final, gostam. Só que não temos essa cultura. Não sabemos como é que se comunica sem distância. Não sabemos.  

Foto: Inês Leote

Em família é normal beijar, dar abraços?

BT – Beijo nunca. Nem família. Se for casal, namorados, namoradas, sim. Amigos, não. Se beijar amigos, amigas, significa que estou…interessada. Portanto, nunca posso… 

E depois há os bares, izakayas e as bebedeiras noturnos.

BT – Ali, com álcool, outras coisas acontecem. Mas é isso. No espaço público, alguém que vê, controlamos assim. Se fecharmos tudo, ali pode acontecer qualquer coisa. 

O que é que Lisboa tinha a aprender mais com Tóquio?

DL – Eu sou muito sensível à questão do planeamento urbano e da gestão urbana. Na parte porque é um defeito de profissão. A parte dos processos da gestão urbana. Era muito interessante aprofundar as soluções de gestão urbana. E ver o que é que poderíamos utilizar com boas práticas. A gestão dos resíduos, por exemplo. A limpeza das ruas, o modelo. Onde é que acabam as responsabilidades dos municípios. As freguesias. Como é que elas se harmonizam. Nós aqui temos esse problema. Qual é que é a responsabilidade dos comerciantes, dos moradores. Os dias em que um lixo é despejado e em que não é despejado. Ter a noção de que nem todos podem ter os caixotes de lixo à porta. E que, em alguns casos, é possível ter que andar um quarteirão num determinado dia para ir pôr um lixo específico naquela esquina. Esse é um aspecto que Lisboa ou qualquer outra cidade pode aprender ou aprofundar com Tóquio. Depois a questão dos transportes públicos também. Dos horários. E depois há outra dimensão que é o conforto dos próprios transportes públicos. Mas isso é uma questão também social que é não falar, não comer, não gritar. Falar ao telefone.

Depois de ter ido ao Japão e de ter lá vivido dois anos. Eu também não consigo. Eu não tenho que ouvir aquelas pessoas que falam ao telemóvel. Com o telemóvel em voz alta. E fazem assim. E falam. E eu estou a ouvir. E na rua. Ou seja. Isto é uma questão. Isto é o que nós temos que fazer. É uma questão. Mas são os mínimos olímpicos. Não é preciso de mais nada. A questão do ruído é outra dimensão. O desrespeito total das buzinas. E a intolerância.

Em Tóquio tem a ver com menos trânsito. 

DL – Mas as pessoas não buzinam. E há muito menos carros concentrados. Mas há vias muito carregadas. Paradas. Então as horas de ponta! Sim. Quando é para entrar ou para sair. Nos principais eixos. Eu trabalhava a 40 km de Tóquio. E era em sentido contrário ao trânsito. Mas às vezes era tudo parado.

Dentro da cidade os carros não estão à vista. O que eu via ali eram muitos carros de comércio. Pessoas que estão a trabalhar. Vans. De cargas e descargas. Porque é caríssimo estacionar. É uma fortuna. E as pessoas não podem ter carro se não tiverem lugar para ele também. Essa coisa de estacionar na rua, não existe.

David Lopes

Em Lisboa aflige-me como o álcool circula na rua. Acho que é horrível. Não tem nada a ver com estar a beber um copo à porta de um bar. Se tiver uma esplanada. Se não tiver uma esplanada não tem que estar a beber na via pública.Porque isso tem a ver com outro tipo de coisa de fenómenos que se dão de sujidade, de utilização indevida de espaço público para casas de banho. Essa parte é que não é admissível. E não podemos permitir. Nem aos turistas que nos visitam. Porque em alguns casos é por sermos um destino também de cerveja barata.

Não há ninguém que faça um evento se não tiver todas as condições para garantir que as pessoas têm sanitários. Aqui é a rua. A rua não é um urinol. Mas qual é a questão? Não podemos ter um policia para cada pessoa, nem ter um senhor da limpeza para cada pessoa. Isto tem a ver com regras, não é? É isso. 

Catarina Carvalho

Jornalista desde as teclas da máquina de escrever do avô, agora com 51 anos está a fazer o projeto que melhor representa o que defende no jornalismo: histórias e pessoas. Lidera redações há 20 anos – Sábado, DN, Diário Económico, Notícias Magazine, Evasões, Volta ao Mundo… – e segue os media internacionais, fazendo parte do board do World Editors Forum. Nada lhe dá mais gozo que contar as histórias da sua rua, em Lisboa.
catarina.carvalho@amensagem.pt

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2 Comentários

  1. São Francisco Xavier não era português!!!
    Era navarro e espanhol.

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