A Rua da Prata vai ser pedonal. Foi na passada quarta-feira que, surpreendendo a cidade em plena Semana Europeia da Mobilidade, Filipe Anacoreta Correia, vice-presidente da Câmara Municipal de Lisboa (CML) e responsável pela pasta da mobilidade, anunciou o futuro de uma rua que há nove meses não vê trânsito passar devido a obras urgentes de reparação de um coletor de águas pluviais.

Antes disso, já tinha estado fechada em outubro, pela mesma razão – o coletor pombalino, obra do século XVIII, ruía perante episódios de chuva intensa. E a calma de uma rua habituada ao trânsito começou a permitir, desde então, o sonho: e se esta rua fosse dos peões?

Para já, o anúncio feito pelo vice-presidente da CML permitiu saber que é intenção do município tornar a Rua da Prata pedonal, permitindo contudo o trânsito de elétricos e bicicletas.

Mas, na vizinha Rua Augusta, o sonho virou há muitos anos um debate sobre direito ao espaço público, onde só se senta quem consumir nas várias esplanadas. E, agora, a Rua da Prata deve aprender com os seus erros.

Como pode ser a Rua da Prata: uma ideia com esboço desde 2020

A 11 de janeiro deste ano, o Livre fazia a sugestão pouco depois de a rua ser encerrada para obras de reparação do coletor: quando terminassem as obras, a Rua da Prata poderia passar a receber apenas elétricos e bicicletas, permitindo assim a expansão do espaço pedonal.

Foi uma primeira proposta “para picar”, explica Isabel Mendes Lopes, deputada pelo partido na Assembleia Municipal de Lisboa (AML). O objetivo era o de motivar o debate. Uma “oportunidade para repensar: como é que pode ser a Rua da Prata?”.

No início, o partido apresentou um ensaio gráfico perspetivando aquele que poderia vir a ser o seu desenho: uma ciclovia e os carris de elétrico, deixando espaço para o aumento dos passeios e a colocação de bancos públicos.

Este ensaio foi concretizado a partir de um outro, produzido pela própria Câmara Municipal de Lisboa em 2020, por altura da apresentação da Zona de Emissões Reduzidas (ZER), prevista para as zonas da Baixa, Chiado e Avenida de Liberdade. No âmbito da ZER já se previa o fim dos carros nesta rua e, naquele que foi o primeiro ensaio gráfico a prever o fim do trânsito na rua, viam-se carris do elétrico, passeios largos e bancos.

Estes eram os primeiros esboços do que poderia vir a ser a Rua da Prata. Deslize a linha central para comparar o desenvolvimento dos esboços, duas ideias para uma rua mais pedonal:

À esquerda, ensaio gráfico da Rua da Prata produzido pela CML em 2020. À direita, ensaio gráfico produzido pelo Livre, em janeiro de 2023. Fonte: CML e Livre

A visão para a rua foi tomando forma, primeiro pela mão da própria Câmara e, mais tarde, pelo Livre, que em maio apresentou novo desenho: agora, aos carris, aos bancos e à ciclovia, juntavam-se árvores nos passeios e até relva na via de circulação do elétrico.

Esta última proposta apareceu no âmbito da apresentação do programa Veredas de Lisboa, apresentado pelo partido com o objetivo de aumentar a cobertura vegetal nas ruas da cidade e cuja recomendação foi aprovada na AML com o voto favorável de todas as forças políticas, exceto CDS-PP e Chega, que se abstiveram.

Veja como chegaram ao mais recente esboço:

Ensaio gráfico produzido pelo Livre, propondo ciclovia, canal de circulação de elétrico e passeios alargados, com bancos e árvores. Fonte: Livre

Em maio deste ano, esta proposta clamava pelo repensar da Rua da Prata e procurava responder ao grande desafio ambiental desta zona da cidade, já que a Baixa é uma das zonas da cidade com menos árvores e onde mais se sente o efeito ilha de calor urbano – isto é, o aumento da temperatura provocado pela densidade da construção e pela escassez de vegetação e ventilação.

Mapa da intensidade da ilha de calor urbano de Lisboa em contexto de onda de calor, ao entardecer. É no Parque das Nações que se regista o pico de intensidade máxima da ilha de calor urbano, na ordem dos 5ºC. É também aqui que o pico se regista mais cedo, pelas 17 horas. Fonte: Plano de Ação Climática (PAC) 2030
Mapa das orientações climáticas do concelho de Lisboa. Fonte: Plano de Ação Climática (PAC) 2030

Mas, ao lado da mais emblemática rua pedonal da cidade, o desafio para a Rua da Prata torna-se ainda mais ambicioso: como pedonalizar a rua sem repetir os erros da Rua Augusta?

Conter o ímpeto das esplanadas para garantir o espaço público

“A Baixa não tem espaços de reunião e de estar que não sejam para consumo”, diz Tiago Mota Saraiva, arquiteto na cooperativa de arquitetura e intervenção territorial ‘Trabalhar com os 99%’.

Palácio Marquês de Abrantes Prémio Mies van der Rohe 2022 ateliermob Trabalhar com os 99% Tiago Mota Saraiva
Tiago Mota saraiva, arquiteto e urbanista, alerta para o perigo de se cometer o mesmo erro cometido na Rua Augusta. Foto: Rita Ansone

Apesar de a Rua Augusta se tratar muito provavelmente da rua pedonal mais reconhecida da cidade, o arquiteto assume um comportamento que pode ser comum ao de muitos outros lisboetas:

“Quando chegamos à Praça da Figueira e ao Rossio e queremos ir para baixo, para o Tejo, temos um conjunto de ruas que podemos seguir. Nunca escolho a Rua Augusta”. Ultimamente, é pela Rua da Prata que segue, agora que está fechada ao trânsito.

A rua está cheia de cadeiras, mas nenhuma delas é pública.

O mesmo acontece com as sombras: nas muitas que ali existem, debaixo de dezenas de largos chapéus de esplanada, só encontra refúgio do sol quem paga para consumir.

Esta “é a grande rua de esplanadas, não é a grande rua pedonal” de Lisboa, diz Tiago Mota Saraiva. E esse é, tanto para o arquiteto como para Isabel Mendes Lopes, do Livre, um erro a não repetir na Rua da Prata.

Apesar de repleta de esplanadas, na Rua Augusta não há bancos públicos. Foto: Inês Leote

Anunciar o encerramento de uma rua ao trânsito tem um efeito muito particular no comércio, sobretudo na cidade que está “ao nível térreo”, explica o arquiteto. “Valoriza tremendamente toda aquela propriedade privada à volta.”

É precisamente na “cidade ao nível dos olhos” – nos rés-do-chão e nos primeiros andares – que considera ser necessário aplicar um “forte condicionamento” para impedir que as esplanadas de cafés e restaurantes tomem conta da rua.

Para este condicionamento “a montante”, há vários instrumentos de planeamento urbanístico de que Lisboa se pode servir, diz: da revisão do Plano Diretor Municipal (PDM), à elaboração de Planos de Urbanização (PU) ou de Áreas de Reabilitação Urbana (ARU) que determinem os usos dos pisos térreos e condicionem a proliferação de determinado tipo de negócios, por um lado, e promovam a instalação de outros, por outro.

Sem a imposição de regras urbanísticas que condicionem o aparecimento de determinados estabelecimentos comerciais, “vai imediatamente acontecer nos pisos térreos o inflacionamento da vontade de haver restaurantes e cafés”. Vai ser o negócio que se vai impor no espaço público da rua, alerta.

Devido à rutura de um coletor de saneamento pombalino, há nove meses que não há circulação rodoviária na Rua da Prata. No futuro, apenas a linha circulação do elétrico está assegurada nesta rua. Foto: Frederico Raposo

Para o arquiteto, é necessário “perceber o que é previso e o que faz falta na Baixa – o que desapareceu ou o que está prestes a desaparecer”. No início de setembro, a Mensagem dava conta da realidade da Rua da Conceição, que chegou a ter mais de 15 retrosarias e onde, hoje, apenas quatro resistem.

“Diz-se que o carro privatiza o espaço público, mas as esplanadas também o fazem”, considera Tiago Mota Saraiva. Se, à semelhança da realidade da Rua Augusta, a pedonalização da Rua da Prata resultar na sua ocupação por esplanadas, “isso é outra privatização”.

Árvores, bancos e sombra: a rua como lugar para se estar

Para criar sombra, mas também para conter a expansão das esplanadas, “era bom ter árvores” na Rua da Prata, diz o arquiteto, denunciando também a inexistência de locais destinados à brincadeira de crianças. “A Baixa não tem um único sítio para os miúdos estarem.”

Isabel Mendes Lopes, deputada municipal pelo Livre. Foto: site Livre

Isabel Mendes Lopes propõe, igualmente, a criação de “espaços de estar, brincar e conviver”. Num futuro projeto de requalificação da rua, “tem de ser assumido e têm de estar no plano espaços que não podem ser ocupados por esplanadas ou quiosques. Tem de haver um projeto que enquadre e dê a prioridade certa a cada um destes usos que são tão importantes”, diz.

A deputada municipal defende a necessidade de dar-se início a um processo de participação pública para o desenho da futura Rua da Prata, mas tendo como pressuposto a necessidade de assegurar mais espaços para as pessoas na rua. Porque, diz, “é fácil olharmos para a Rua Augusta e pensar que queremos replicá-la na Rua da Prata, mas a Rua da Prata pode ser uma coisa completamente diferente daquilo a que estamos habituados na Baixa” – é isso mesmo que propõe.

A deputada reivindica agora “uma discussão aberta à comunidade”, com a participação de moradores, comerciantes e comunidade escolar das zonas em volta.

É com a noção de que a Baixa é uma das zonas da cidade com menos cobertura arbórea que Isabel Mendes Lopes propõe pensar a Rua da Prata como uma vereda, um espaço de circulação com árvores e sombras, “mas também [com] zonas em que as pessoas possam estar”.

Na Rua da Prata não há atualmente qualquer banco ou árvore. Foto: Frederico Raposo

Tendo por base a ideia de que é necessário assegurar a colocação de árvores e a criação de espaço público que convide à permanência na rua, deixa várias questões: “Zonas de brincar na Rua da Prata – é uma coisa que devemos perguntar às pessoas. Que tipo de espaços de brincar? Um parque infantil ou o brincar na rua? [Se] Queremos ter zonas de esplanada, então qual é o comércio que existe na Rua da Prata e que necessitaria de esplanada? Que lojas queremos preservar? Que tipo de plantas queremos e como é que isso se articula com o espaço? Tudo isto tem de ser pensado.”

Comerciantes já pediam a pedonalização da rua. É “valorizar o elétrico”

Cansados, os comerciantes têm como prioridade o fim das obras. Ainda que favorável à ideia de pedonalizar a rua, o gerente da loja Teevolution, na Rua da Prata, partilhava estar mais preocupado com o término da empreitada que ali acontece há meses. “Queremos é saber quando isto acaba”, dizia Fernando Silva. E o vice-presidente da CML aponta o fim para próximo mês de novembro.

Quanto à pedonalização, eram já vários os comerciantes a sugerir que essa fosse a solução, ainda antes do anúncio. Uma posição que não reuniu consenso, como disse o vice-presidente da Associação Dinamização da Baixa Pombalina, Vasco de Mello. Apesar de afirmar que as “opiniões são diversas” em relação à Rua da Prata, o dirigente diz ser favorável à pedonalização do “miolo da Baixa”, desde que se assegure a circulação rodoviária à volta da mesma.

Na loja de brunch e gelados artesanais Mil Sabores, Sandra Gouveia não tem tido vida fácil. Desde que o negócio abriu, há quatro anos, mal conheceu a normalidade.

“Tem sido a luta da abertura, a luta da pandemia, a luta da retoma” e, agora, chegou a luta pela reparação do coletor. Nestes últimos meses, o barulho das obras e, por vezes, o cheiro, têm sido obstáculos desafiantes para uma atividade que vive dos sentidos da clientela.

Desde dezembro do ano passado, que a Mil Sabores vive os seus dias virada para o estaleiro da obra do coletor da Rua da Prata. Foto: Frederico Raposo

Para a gerente do restaurante, a pedonalização da rua, com a garantia da passagem do elétrico, é um desejo que garante ser partilhado por outros comerciantes da rua e inspirado também pelo que vê acontecer em outras cidades europeias. Com mais espaço para as pessoas, mas sem o ruído e a poluição do tráfego automóvel, a gerente vê a a decisão de tornar a rua pedonal como o cenário ideal.

“Fechar isto [ao trânsito] não é anular-nos, é valorizar o elétrico, é permitir que haja passeios de famílias na Baixa e é trazer vida caminhante.”


Frederico Raposo

Nasceu em Lisboa, há 30 anos, mas sempre fez a sua vida à porta da cidade. Raramente lá entrava. Foi quando iniciou a faculdade que começou a viver Lisboa. É uma cidade ainda por concretizar. Mais ou menos como as outras. Sustentável, progressista, com espaço e oportunidade para todas as pessoas – são ideias que moldam o seu passo pelas ruas. A forma como se desloca – quase sempre de bicicleta –, o uso que dá aos espaços, o jornalismo que produz.

frederico.raposo@amensagem.pt


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2 Comentários

  1. Há bastante tempo que não ia à baixa lisboeta. No princípio deste mês passei pela rua Augusta, só via esplanadas e turistas. Entrei numa pastelaria e paguei por um café 1,50 € e por um bolo 3,50€. Na rua da Prata fiquei triste porque quase não existem lojas abertas.
    Por favor façam qualquer coisa para que a nossa capital volte a ser o que era, ou seja onde poderíamos e às compras ou simplesmente apreciar as lojas. Saí de lá com um mágoa muito grande. Tanto tempo para recuperar um colector, se fosse noutro tempo provavelmente num mês.

  2. Generalidades: concordo com a R. Augusta só para eléctricos, com arvores em passeios largos laterais providos de bancos e pequenas esplanadas de pequena área se requisitadas e nada de relva que necessitade muita água…porque não plantas rasteiras? nada de estacionamento automovel que, aliás, é caríssimo. Moro em Lisboa e raras vezes vou à Baixa com o meu carro. Há o metro, autocarros e eléctricos.
    E a rua dos Fanqeiros que está uma tristeza: não poderia sofrer semelhante melhoria? é que…dizer-se que Lisboa é “verde” comparando com muitas outras cidades, incluindo várias portuguesas, para mim não é uma realidade; isto é factual, a começar pelo velho bairro onde resido.

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