Vídeo: Inês Leote

Já esteve anos largado ao abandono, mas hoje o antigo quartel da GNR de Santa Bárbara, situado no Largo do Cabeço de Bola, Arroios, é casa de um pólo cultural com vida. Para o espaço, está previsto um projeto de habitação de renda acessível, mas, enquanto a obra não avança, reúnem-se ali acima de 150 pessoas de mais de uma dezena de coletivos e entidades. Também o calor que tem esquentado a cidade tem chegado a este território, mas o que faz da história deles diferente é como estão a combater o calor e a falta de sombras, que assola esta Lisboa onde as árvores ainda são poucas.

Nas cidades do sul da Europa, como Barcelona e Lisboa, o aquecimento registado em determinados locais da cidade – efeito conhecido como ilha de calor urbano – requer importantes ações de mitigação e ação climática, incluindo uma atenção especial na criação de sombras na cidade.

Em Lisboa, algumas das zonas que mais sofrem com este efeito – como a zona da baixa da cidade, a frente ribeirinha ou freguesias como a Ajuda – são também alguns dos pontos da cidade com menos árvores.

Na Baixa, quase não há árvores e isso agrava o desconforto térmico nos dias de maior calor. Também por cá, o Plano de Ação Climática, de 2021, prevê “ações e projetos piloto, para melhoria do conforto térmico ambiental, que passam, por exemplo, pela criação de ensombramento arbóreo ou utilização de toldos, incorporação de elementos de água no espaço público ou aplicação de materiais construtivos mais adaptados ao calor”.

Veja o mapa com a localização de todos os pontos de arvoredo no espaço público da freguesia de Santa Maria Maior, onde está localizada a baixa lisboeta:

Este antigo quartel da GNR está a tentar mudar o mundo através do seu pequeno quarteirão.

Todo o edifício é percorrido por uma rua principal, apelidada pelas pessoas que hoje lhe dão vida de Avenida das Artes, um extenso caminho no interior do quartel, sem sombra natural, com muito alcatrão e, por consequência, muito calor.

Desde que, no ano passado, ali se realizou o Bairro em Festa, em junho, que se nota o desconforto térmico do espaço. Praticamente sem sombra natural e muito exposta ao sol, aquela rua é um espaço quente.

Tiago Mota Saraiva, sob a sombra criada no quartel. Foto: Carlos Menezes

“Isto é uma ilha de calor brutal, por causa deste alcatrão”, constata Tiago Mota Saraiva, arquiteto na cooperativa de arquitetura e intervenção territorial, ‘Trabalhar com os 99%’.

A dificuldade de trazer para ali arvoredo capaz de oferecer sombra e refúgio e o desconforto que já sentiam há meses, levou à ação de um núcleo de pessoas provenientes daquela cooperativa e do laboratório de experimentação Colectivo Maker.

Com pedaços de pano que já tinham de outras intervenções, decidiram, em junho deste ano, criar sombra na rua que tanto precisava. E “não custou quase nada. Acho que não foi mais de 100 euros”, conta o arquiteto. Depois da instalação do primeiro conjunto de toldos, veio a segunda, confirmando o sucesso da intervenção.

Foto : Carlos Menezes

Em Lisboa, como nas outras cidades, Tiago Mota Saraiva defende as árvores como “a solução mais indicada” para construir sombra. Quando não é possível, como aqui, intervenções como esta podem fazer a diferença. E, na hora de intervir no espaço público, considera que não devem existir “soluções tipo”. Há que “testar, recuar e não ter problema em errar”.

A pequena intervenção permitiu trazer a sombra – e fazer descer a temperatura – a uma extensão importante da Avenida das Artes. Este pólo cultural, trazido para este quartel pela cooperativa Largo Residências, só aqui está desde outubro de 2022 e tem já data de saída anunciada para 30 de setembro, mas está a fazer a diferença na vida local.

No chão da Alameda das Artes, no antigo quartel da GNR, e sob a sombra criada, foram pintadas linhas azuis e vermelhas, simbolizando as variações na temperatura média registada. Foto: Carlos Menezes

Se, olhando para cima encontramos a resposta dada por quem habita este espaço da cidade – o conjunto de têxteis que se estendem de fachada a fachada a oferecer abrigo do sol -, em baixo há pinturas no chão que mostram o imperativo da ação climática. Com linhas azuis e vermelhas pintadas recentemente, está ilustrada, para todas as pessoas que ali passam, a escalada abruta da temperatura à escala global.

Ações que conjugam a um esforço pela renaturalização e por dar força às poucas árvores e arbustos que ousam penetrar o alcatrão: há figueiras e abacateiros a nascer vindos do asfalto, em pequenos buracos que o tempo e a natureza vão tratando de abrir, e quem aqui trabalha está a tentar dar força à insistência de arbustos e árvores. A água está próxima, escassos metros abaixo do pavimento – uns quatro, segundo sondagens feitas recentemente -, e isso pode estar a ajudar ao desabrochar da natureza, contra todas as expectativas.

Foto: Carlos Menezes

Como faz Barcelona, líder na ação climática?

Barcelona tem vindo a consolidar-se enquanto líder na adoção políticas de ação climática. Das superilhas à criação de uma rede de mais de 200 refúgios climáticos, são várias as ações com impacto climático a ganhar mediatismo e com possibilidade de replicação noutras cidades. Foi neste sentido que, em junho, a cidade catalã anunciou o lançamento de uma chamada para promover a inovação na criação de sombra no espaço público.

Há situações em que não há espaço ou condições para plantar árvores capazes de sombrear adequadamente o espaço público e oferecer refúgio nos meses mais quentes do ano, mas, tal como foi feito em Lisboa, isso não significa que deixe de ser possível criar sombra e garantir conforto térmico no exterior.

Para estes casos, Barcelona quer garantir que é possível criar sombra nas ruas mais estreitas e nas avenidas mais largas a partir de estruturas temporárias, “adaptáveis, escaláveis e replicáveis”, explica à Mensagem Irma Ventayol, diretora do departamento de alterações climáticas e sustentabilidade do município da Catalunha.

São semelhantes ao que, de forma mais amadora, se criou no quartel de Santa Bárbara, em Lisboa. Mas, aqui, a uma maior escala.

Irma conta que a cidade não tem ainda muita experiência na criação de sombra artificial a grande escala na cidade, mas está ciente da urgência de agir – “através de projeções climáticas, percebemos que em Barcelona a temperatura poderia aumentar de 1,7 graus até 3 graus, dependendo do cenário do IPCC”, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas das Nações Unidas. Foi a partir da constatação da ameaça que partiram para a ação.

“Uma das medidas que achámos que poderia ser interessante é a criação de um plano de sombras”. Esta intenção estava já plasmada no plano de ação climática da cidade de 2018.

Apesar da necessidade premente de criação de sombra em alguns locais, escasseia a ação nesse sentido. Em Barcelona, o concurso que agora decorre pretende responder precisamente a este desafio.

Com um montante total de 300 mil euros, o concurso de ideias lançado por Barcelona dirige-se a empresas, start-ups, centros de investigação, universidades e associações. O prazo para a submissão das ideias terminou no passado dia 14 de julho e, agora, um comité de especialistas vai escolher três soluções a implementar em três espaços urbanos distintos: em ruas convencionais, em espaços amplos, como grandes avenidas ou praças e em parques infantis.

Após a seleção, os vencedores beneficiam de um apoio de 80% do valor da estrutura, até um máximo de 100 mil euros, para desenvolver, no espaço de seis meses, um protótipo que será testado e monitorizado nas ruas de Barcelona a partir de maio de 2024 e durante o próximo verão.

A localização dos três espaços para o teste das soluções a desenvolver é conhecida pela câmara, mas não pelas entidades participantes no concurso. Os locais não são anunciados previamente, porque a cidade quer desenvolver “soluções adaptáveis a qualquer localização”, explica Isabella Longo, diretora de projeto no centro de inovação urbana da câmara municipal de Barcelona.

“O teste da solução vai permitir-nos entender qual a melhor solução e, depois, disseminar a sua implementação no futuro”, diz a responsável.

Estrutura para a criação de sombra artificial instalada num parque infantil, em Can Batlló, Barcelona. Fonte: Ajuntament de Barcelona

As soluções inovadoras a desenvolver devem ser feitas com recurso a materiais recicláveis ou reutilizáveis e devem obedecer a um conjunto de critérios base, como serem removíveis, deixando o sol passar nos meses de inverno, fáceis de instalar e compatíveis com a segurança e acessibilidade do espaço público.

“Estamos a pedir ao ecossistema que proponha algo que não existe no mercado e que depois vamos comprar através de um concurso público”, explica Isabella. Esta é, segundo a responsável, uma abordagem “que não é novidade para a câmara municipal e que normalmente fazemos na nossa agência de inovação urbana quando existe esta necessidade urgente de encontrar soluções que não existem no mercado”.

A prioridade são as árvores

Na criação de sombra e na procura de alívio e arrefecimento na cidade, as árvores e a colocação de cobertura vegetal devem assumir, sempre, o papel principal.

A construção e a densidade da cidade, bem como os materiais utilizados, propiciam a existência de ilhas de calor, mas há espaços que possibilitam o efeito oposto – ilhas de frescura. É a diferença, negativa, de temperatura entre jardins e estruturas verdes da cidade e outros pontos de medição. E, aqui, a cobertura verde é central.

Árvores em Lisboa
Na Avenida Miguel Bombarda, em Lisboa, a cobertura arbórea oferece abrigo em dias de sol. Foto: Inês Leote

Num texto publicado pela Mensagem em fevereiro do ano passado, era apresentada a conclusão a que chegou Cláudia Reis, investigadora no Zephyrus – unidade de investigação em alterações climáticas e sistemas ambientais da Universidade de Lisboa. Num estudo desenvolvido em Lisboa, concluiu que por cada 50 metros quadrados de cobertura vegetal, a temperatura desce 1ºC. Numa outra análise comparativa, constatou que ruas arborizadas são, em média, 1ºC mais frescas do que ruas sem cobertura arbórea.

No que respeita ao conforto térmico na cidade, “é o efeito sombra que eu concluí ter de facto mais peso”, dizia. A investigadora recomendava, quando não é possível alcançar sombra a partir das árvores, a implementação de “canópias de toldos, que não devem impedir o bom arejamento dos espaços”.

A importância da sombra em Lisboa já integra, também, o programa político para a cidade. Entre as Grandes Opções do Plano da Cidade de Lisboa para o período 2022-2026, está a criação do programa Arrefecer a Cidade, “concretizando projetos de regulação microclimática e de transformação de praças urbanas em praças verdes e mais frescas e aumento da presença de arvoredo nos arruamentos, para atenuar o efeito de ilha de calor urbano”, lê-se no documento orientador da governação do município.

Para Irma Ventayol, da autarquia de Barcelona, a prioridade também passa pela aposta na sombra natural da cobertura vegetal. “Um plano de sombras deve incluir o aumento da cobertura vegetal na cidade, porque sabemos que é a melhor opção para reduzir o efeito de ilha de calor urbano”. Mas nem sempre é possível seguir este caminho.

A chamada de inovação que agora está a ser promovida acontece porque, explica Oriol Giol, arquiteto na câmara municipal de Barcelona, por vezes “não existe a possibilidade de plantar mais árvores ou criar sombra natural. Quando há muita infraestrutura no solo, é impossível colocar árvores”.


Frederico Raposo

Nasceu em Lisboa, há 30 anos, mas sempre fez a sua vida à porta da cidade. Raramente lá entrava. Foi quando iniciou a faculdade que começou a viver Lisboa. É uma cidade ainda por concretizar. Mais ou menos como as outras. Sustentável, progressista, com espaço e oportunidade para todas as pessoas – são ideias que moldam o seu passo pelas ruas. A forma como se desloca – quase sempre de bicicleta –, o uso que dá aos espaços, o jornalismo que produz.

frederico.raposo@amensagem.pt


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4 Comentários

  1. Investiguem o que se passa na freguesia dos Olivais onde em vez de plantar, abatem-se árvores. Principalmente as mais frondosas, com troncos bastante largos, possivelmente para desviar a madeira. Foi o que aconteceu recentemente junto à piscina dos Olivais, na confluência da Av. de Berlim com a Av. Dr. Francisco Luís Gomes.

  2. Não entendo. Então, na praia, onde não há árvores, quando aparece um dia com nuvens, dizem que o tempo não presta…
    E também vejo as pessoas a apanharem sol no areal…
    Em que é que ficamos?

  3. Olá, José
    Obrigada por nos ler!
    As árvores e outras formas de sombra são fundamentais para o arrefecimento da cidade, combatendo a escalada abruta da temperatura à escala global. Por isso é que este tema é tão importante. E, claro: continuaremos a ter na praia o lugar para apanharmos sol 🙂

  4. Porquê ter orgulho de ser deste bairro lisboeta? Por ter sido sempre o mais acolhedor da capital, por se ter mantido excepcional, por ser diferente em aspectos sociais e tornar ideais expectáveis nestas realidades. Bem hajam pela agradavel notícia que faz a alma crescer de quem nasceu em Sta. Isabel, viveu vinculada na atracção de Campo de Ourique.

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