Arroz, mexilhões, amêijoas, pistácio, caju, coco, pimentos, tomate seco, lavagante e camarões-carabineiros. Os onze ingredientes fazem a Paella Viniciana, uma variação à brasileira da famosa versão Valenciana. Desta forma o Cícero Bistrot resolveu protestar contra os insultos racistas sofridos pelo avançado brasileiro Vinícius Júnior na Liga Espanhola.

Vinicius Junior. Foto: wikimedia

O triste fato ocorreu no dia 21 de maio, quando o jogador brasileiro ao serviço do Real Madrid foi agredido pelos adeptos do Valencia CF que, das bancadas da curva Kempes do estádio Mestalla, o chamavam de mono (macaco, em espanhol).

As cenas correram o mundo e foram seguidas imediatamente por manifestações de repúdio.

Uma dessas manifestações vem de Lisboa, onde o compatriota do avançado, o brasileiro Paulo Dalla Nora, proprietário do restaurante Cícero Bistrot em Campo de Ourique, resolveu usar as armas que tinha em mãos: a gastronomia e a arte.

“Quando assisti ao fato na televisão, decidi que deveríamos nos posicionar, mas com algo muito maior do que um post”, explica. 

“O primeiro pensamento foi agir dentro do nosso universo, a gastronomia e a arte”, continua Paulo, referindo-se ao pormenor de o restaurante abrigar parte da coleção particular de quadros e esculturas do empresário, trazida do Brasil para Portugal, o que transmite aos clientes a sensação de estar a comer em uma galeria de arte.

“Como um dos grandes orgulhos da cidade de Valência é a Paella Valenciana, aproveitamos a semelhança sonora com o nome do jogador para criarmos uma versão brasileira do prato. Daí surgiu a Paella Viniciana”, explica o restaurateur, que escalou o chef português do bistrô, Hugo Cortez, para realizar a missão.

Quem desejar unir-se ao time dos que repudiam as agressões raciais ao avançado brasileiro através da tabelinha gastronomia-arte pode conferir a Paella Viniciana durante o mês de junho no Cícero, numa edição limitadíssima da iguaria, preparada na hora.

E, ao contrário da receita vulgar de uma vingança, servida bem quente. 

Hugo Cortez realizou a Paella Viniciana no Cícero Bistrot. Foto: Rita Ansone

E para ampliar o debate sobre o racismo para além das quatro linhas da gastronomia, o empresário puxou a reflexão também para a brasa de Portugal. Vai oferecer, com o prato par dois, o livro O homem que via no escuro, de autoria da jornalista da Mensagem Catarina Reis, que aborda a morte do ator lisboeta Bruno Candé, vítima de crime de ódio racial em 2020.

O homem que via no escuro, o livro que vai ajudar na campanha de combate ao racismo. Foto: Inês Leote.

“A paella já seria um posicionamento maior do que um post, mas quando soube que em Lisboa houve um crime motivado por racismo, pensei que a iniciativa poderia levar a uma reflexão maior. Como o prato serve duas pessoas, quem o pedir vai receber dois exemplares do livro da jornalista Catarina Reis”, conta Paulo.

Bruno Candé também entra em campo

Publicado em março deste ano pela Fundação Francisco Manuel do Santos, O homem que via no escuro foi lançado no último dia 4 de junho na Feira do Livro de Lisboa, quando Paulo Dalla Nora se encontrou com a jornalista Catarina Reis, com a irmã de Bruno Candé, Olga, e com o cantor Matay. Todos contaram a história do assassinato do ator Bruno Candé, então com 39 anos, no bairro de Moscavide. 

Catarina Reis e Paulo Dalla Nora, na Feira do Livro de Lisboa. Foto: Arquivo Pessoal

“O caso do Candé é muito mais grave do que o de Vinícius Júnior, pois ele perdeu a vida e deixou amigos, parentes e três filhos órfãos da sua presença. Mas é preciso refletir que o racismo começa na palavra e deve ser combatido logo aí, na palavra. Pois o tiro, a bala que matou o Candé, um dia, lá atrás, foi disparada por uma palavra”, explica Paulo Dalla Nora.

O restaurante adquiriu algumas dezenas da edição de O homem que via no escuro, cujos todos os direitos de autor provenientes da venda são revertidos para a uma associação em sua homenagem que a irmã Olga acabou de criar. 

Para além da Paella Viniciana e dos exemplares de O homem que via no escuro, Paulo Dalla Nora planeia a realização de um debate no Cícero Bistrot em fins de junho, envolvendo gestores públicos e políticos do Brasil e de Portugal para falar sobre as possibilidades de políticas públicas para se combater o crime de ódio racial nos dois países.

Ação política inspirada num outro Cícero

Os eventos de reflexão política fazem parte do ADN do Cícero, que deve seu nome ao artista plástico brasileiro Cícero Dias, um pernambucano radicado em Paris e que viveu em Lisboa durante a ocupação nazista em França, de onde se uniu à resistência francesa e acabou condecorado com a Ordem Nacional do Mérito.

Para manter o espírito contestatário e reflexivo de quem o batiza, Paulo Dalla Nora usa o Cícero como palco de reuniões, debates e tertúlias de caráter, na falta de um termo melhor, político. Entre as ações está a websérie de entrevistas Gente de lá e cá, em parceria com a Associação Portugal Brasil 200 Anos.

Paulo Dalla Nora, o enérgico dono do Cícero. Foto: Rita Ansone

Com a intenção de não fugir ao tema do racismo, em junho a entrevistada do programa será a jornalista portuguesa Catarina Demony, realizadora do documentário Debaixo do Tapete, no qual a partir de uma série de entrevistas realizadas com sua avó e bisavó tentou perceber e contar como a família havia enriquecido às custas do tráfico de escravos negros. 

A atuação política nas mesas do Cícero levaram ainda que o atual presidente do Brasil, Lula da Silva, escolhesse o sítio para almoçar em sua primeira passagem por Lisboa, ainda antes de receber a faixa presidencial, em novembro de 2022, numa rápida escala pela cidade após participar da Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, no Egito.

Paula Dalla Nora, portanto, põe mais uma vez a bola para rolar no restaurante e convida a quem queira dar o drible no racismo para entrar no relvado.


Álvaro Filho

Jornalista e escritor brasileiro, 51 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa. É autor de sete livros, dois deles com Lisboa como personagem, Alojamento Letal e O Mau Selvagem.

alvaro@amensagem.pt

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