Para muitos dos alunos da EB1 Águas Livres a viver na Cova da Moura e na Buraca, a passagem superior da estação de comboios sempre foi a forma mais rápida de chegar à escola. Para quem vive naqueles dois bairros, aquele acesso é também a porta de entrada mais rápida para Lisboa. E quem desce a rua principal da Cova da Moura só precisa de atravessar a estrada para estar na estação. Mas, há três anos, o acesso foi encerrado e a rotina diária de centenas de pessoas passou a implicar um desvio também de centenas de metros.

Foi em 2009 que o acesso superior da estação conheceu as primeiras limitações. Esta é entrada mais próxima do bairro da Cova da Moura e da Buraca, na Amadora. A partir das 21 horas, todos os dias, a passagem passou a encerrar. Aconteceu, diz-nos a Câmara Municipal da Amadora e a Infraestruturas de Portugal (IP), em nome da segurança. Foi mais de uma década depois, em maio de 2020 e em pleno início da pandemia, que se deu o encerramento da passagem em permanência – até hoje.

Os bairros da Cova da Moura e Buraca e a localização do acesso principal da estação – à esquerda – e do acesso encerrado – à direita. Quando servia a população dos dois bairros, poupava centenas de metros e permitia, com recurso aos elevadores existentes, o fácil acesso a pessoas com mobilidade reduzida.

Inaugurada em 1999, a estação Santa Cruz – Damaia veio substituir os apeadeiros de Santa Cruz de Benfica e Damaia, e conta com duas entradas. A principal, que serve a Damaia nas suas zonas a norte e a sul da linha de comboio, e a secundária, situada junto ao desembocar da rua principal da Cova da Moura. Esta é também a entrada mais próxima da Buraca.

Este é um ponto fundamental para a vida e a mobilidade de quem aqui vive. Da estação de Santa Cruz – Damaia, chega-se a Sete Rios em cinco minutos e ao Rossio em 11. Não há forma mais rápida de aceder ao centro da cidade. Daqui partem dezenas de pessoas, muitas logo no primeiro comboio da manhã, às cinco e meia da madrugada, sobretudo para trabalhar na Lisboa que ainda dorme.

Segundo o último recenseamento populacional, só nos bairros da Cova da Moura e da Buraca residem mais de 8700 pessoas. São estas pessoas, aquelas que se encontram mais próximas da passagem superior da estação e que se assim se veem obrigadas a um desvio de centenas de metros – tanto para chegar ao comboio e aceder à cidade, como tão simplesmente para se deslocarem à Damaia.

De um lado da rua, o bairro da Cova da Moura. Do outro, o acesso, encerrado, à estação Santa Cruz – Damaia. O encerramento deste acesso obriga, diariamente, ao desvio de milhares de residentes e trabalhadores dos bairros da Cova da Moura e da Buraca. Foto: Carlos Menezes

Um encerramento que pesa nas pernas, sobretudo daqueles que acordam a cidade

Reginaldo Spínola, com 36 anos, é animador sociocultural na Associação Cultural Moinho da Juventude, na Cova da Moura. Vive no bairro desde que nasceu. É ator, estudou no Chapitô, e durante muitos anos apanhar o comboio fez parte da sua rotina diária. Utilizava, naturalmente, a passagem que hoje está encerrada.

O comboio sempre lhe fez mais sentido, apesar de ter carro.

“Não vejo necessidade de ir de carro, procurar estacionamento e pagar o parquímetro. Se posso apanhar ali o comboio e estar em dez minutos em Lisboa a fazer o que tenho a fazer…”
– Reginaldo Spínola

Foto: Carlos Menezes

Sem a passagem aberta, quem vem da Cova da Moura ou da Buraca, precisa de percorrer uma distância adicional superior a 400 metros para apanhar o comboio. Com a passagem, conta Reginaldo, “o caminho era muito mais fácil do que estar a dar à volta toda e a passar em muitas estradas com os miúdos”. O caminho que hoje se faz obriga ao atravessamento de mais passadeiras e expõe as crianças a mais situações de insegurança rodoviária.

Quem hoje chega ao acesso superior da estação Santa Cruz – Damaia depara-se com um gradeamento intransponível. Na placa ali afixada dá-se conta de um encerramento “provisório”, mas quem ali vive sabe que não é disso que se trata: desde maio de 2020 que dali não se passa, com custos elevados para quem vive a sul da estação. Quem sai para trabalhar, tem de sair mais cedo para cumprir horários, quem volta pesado das compras tem de subir e acrescentar centenas de metros ao caminho até casa.

Na placa afixada nesta entrada da estação, dá-se conta de um encerramento “provisório”, que já mais parece permanente. Foto: Carlos Menezes

Ao referir-se à estação, Reginaldo utiliza o tempo verbal passado. Não porque a estação tenha deixado de existir – ali está e a funcionar, com poucas alterações desde 1999 – mas talvez porque, sem a passagem que serve o bairro onde vive, a estação perde o seu apelo, a sua funcionalidade. “Tínhamos uma estação bué bonita”, diz. Muito antes do encerramento total do acesso, em 2004 e cinco anos após a abertura da estação, o estado dos três elevadores do acesso ter-se-á começado a deteriorar, dando início a um período marcado pela “falta de manutenção”.

À saída do acesso principal da estação há uma escadaria, mas quem vive na Cova da Moura e na Buraca não a usa. Para encurtar ligeiramente o desvio a que são obrigados a fazer, os residentes nos dois bairros sobem a encosta por um caminho de terra, criado informalmente por quem utiliza a estação. “Na chuva, escorregas e podes cair, porque ali faz lama”.

Pelo meio do desvio a que são sujeitos, os moradores da Buraca e da Cova da Moura desbravaram um pequeno atalho, poupando umas dezenas de metros às centenas que o encerramento do seu acesso lhes veio impor. Em dias de chuva, conta Reginaldo, a terra do caminho dá lugar à lama e ao perigo de quedas. Foto: Carlos Menezes

“O que me intriga mais são as mulheres [trabalhadoras nas limpezas] que saem às cinco da manhã daqui e vão apanhar o primeiro comboio e têm de dar aquela volta toda e quando regressam do trabalho, bem cansadas, [têm de] subir isto tudo. É um desvio descomunal, não tem lógica.”

Reginaldo Spínola

São as primeiras pessoas a levantar-se na cidade e muitas vêm dos bairros às portas de Lisboa, como são a Buraca e a Cova da Moura. Grande parte são mulheres, muitas a trabalhar na limpeza de edifícios em Lisboa, levantam-se às quatro e às cinco da manhã e, antes do sol nascer, enchem os primeiros autocarros e comboios do dia.

Há também quem faça o caminho inverso. Eunice Delgado e Joana Sissé são disso exemplo. Trabalham na cozinha da Associação Moinho da Juventude e, como grande parte das pessoas que aqui vivem e trabalham, dependem muitas vezes do comboio.

Eunice Delgado, à direita, e Joana Sissé, à esquerda, trabalham na cozinha da associação Moinho da Juventude, na Cova da Moura. Foto: Carlos Menezes

Desde que a passagem superior foi encerrada, Eunice não tem só de andar mais, tem de preocupar-se em chegar mais cedo. As centenas de metros adicionais que tem de percorrer a subir obrigam-na a chegar mais cedo para não se atrasar. “Tenho que descer lá em baixo e depois tenho de subir isto tudo, subir a Rua Principal, que não é fácil”, conta-nos.

Joana também não vive no bairro, mas há 27 anos que este é o seu local de trabalho. Usa o comboio todos os dias e conta que lhe “faz muita diferença” ter de percorrer, todos os dias, centenas de metros a mais, para cá e para lá. “Era só aquele bocadinho e agora tenho de descer lá em baixo”.

Hélio Lopes, com quem já falámos anteriormente, trabalha no Kova M Estúdio (um estúdio de música comunitário da associação Moinho da Juventude) e o desvio que tem de fazer diariamente faz-lhe “bastante diferença”. Um acidente, uma luxação na anca e duas operações trouxeram-lhe dificuldades de mobilidade que todos os dias são sublinhadas pelo acesso à estação encerrado.

“Tenho uma perna mais curta que a outra. (…) Para ir às compras, tenho de ir de comboio. Como não uso muleta nem bengala, esta volta toda custa-me. Quando venho com sacos no comboio e tenho de subir…”
– Hélio Lopes

Foto: Carlos Menezes

Para além do seu caso, lembra que há mais pessoas com dificuldades motoras, há moradores utilizadores de cadeira de rodas e há, simplesmente, “pessoas que gostariam de vir ao bairro e de entrar diretamente. É uma dificuldade, é um entrave”, diz.

Um trilho maior e mais inseguro para as crianças

Para além do impacto que tem na sua rotina, Joana Sissé lembra que o acesso não é só usado para chegar ao comboio, sublinhando o impacto que o encerramento da passagem teve nas crianças que estudam na escola do outro lado – a EB1 Águas Livres.

Esta escola do ensino básico – e também jardim de infância – recebe alunos da Buraca e da Cova da Moura e situa-se exatamente do outro lado da passagem. Para muitas crianças, a passagem sempre foi o caminho natural para a escola. “Atravessavam ali e já estavam aqui. Agora, têm de dar a volta lá em baixo e subir aquilo tudo. Se estiver a chover é uma desgraça. Não faz sentido”, diz. As crianças que vêm do Cacém e ali estudam também se veem hoje obrigadas a um desvio considerável e a ter de atravessar mais passadeiras, percorrendo assim um trilho mais inseguro do que teriam de percorrer antes de a passagem encerrar.

Em vez de fazerem uma distância inferior a 300 metros – partindo da rua principal do bairro – os alunos que vêm da Cova da Moura passaram a ter de fazer um desvio que lhes custa, pelo menos, 700 metros.

Guta Barros, trabalhadora da EB1 Águas Livres, conta-nos que são várias as crianças a ir diariamente sozinhas para a escola. Com a passagem, as crianças que vêm da Cova da Moura podiam chegar “dois minutos”. Com a volta, são muitos mais, e o desvio pesa na preocupação dos pais. “Quando os pais vão trabalhar, já vão com o coração na mão, porque não sabem se [as crianças] chegam à escola ou não. A maioria passa a vida a ligar para nós para perguntar se os miúdos já chegaram”.

“Fizeram isso por causa dos toxicodependentes. Ou mesmo por nós…”

Em 2009, foram impostas as primeiras restrições à circulação na passagem superior da estação Santa Cruz – Damaia. Tudo terá acontecido por uma questão de segurança e depois de se terem verificado “várias” situações de consumo de droga no interior dos acessos que terão conduzido à intervenção da Polícia de Segurança Pública, dizem IP e Câmara Municipal da Amadora.

No seguimento de queixas e reclamações, surgiram as restrições horárias e, anos depois, no início da pandemia, o encerramento permanente. À Mensagem, a IP – entidade responsável pela gestão das estações ferroviárias – explica que o acesso está encerrado “por razões de higiene e segurança desde o final de maio de 2020”, numa decisão que diz ter sido “tomada em articulação com a Câmara Municipal da Amadora”.

Reginaldo confirma a existência de situações de consumo no interior do acesso, bem como a utilização da passagem como abrigo durante a noite, mas não acredita que isso justifique o encerramento de uma passagem tão importante para milhares de pessoas.

O animador sociocultural da associação Moinho da Juventude critica a inexistência de diálogo com os residentes por parte do município e aquilo que considera ser a falta de colaboração próxima com a comunidade.

“Em vez de nos darem melhores condições, de [vermos] como é que podemos fazer para tirar aqueles toxicodependentes de lá… Nós podemos trabalhar em conjunto para melhorarmos a estação.”
– Reginaldo Spínola

Foto: Carlos Menezes

Para reabrir o acesso, Reginaldo sugere mais proximidade entre a população e a autarquia, sugerindo um processo participativo, tanto para a reabertura da passagem, como para melhorar outras coisas no bairro. “Participar connosco, fazer coisas connosco e a gente chegar a um consenso”. “É grave quando fazes parte de uma freguesia e de um concelho que não te apoia nada”, diz.

Entre algumas das pessoas que residem e trabalham no bairro, existe também a ideia de que o fecho não está desligado de uma política de segregação territorial do bairro da Cova da Moura, comummente associado à insegurança. Um acesso à rede de transportes públicos é um acesso à cidade e, para Reginaldo, encerrar um acesso significa “limitar um bairro de fazer coisas”. Deixa a ideia de que noutros lugares da cidade, o mesmo não aconteceria e toma a estação de comboios de Cascais como exemplo. Afirma que ali o mesmo “não acontecia, jamais acontecia”.

Vídeo: Carlos Menezes

A culpa, diz-nos, não é “da mulher que sai às cinco horas da manhã para ir para o trabalho” e, por isso, reclama pela reabertura dos acesso.

Questionada pela Mensagem, a Câmara Municipal da Amadora assume que se trata de “uma obra importante para os residentes da zona” e revela que tem vindo a “articular com a IP a reformulação [do acesso]”.

Em abril, gritou-se por Vida Justa e pela reabertura da passagem

Em 2011, e perante as restrições horárias impostas, foi lançada uma petição, dando voz às reivindicações de moradores, exigindo o fim das restrições no acesso pela passagem superior da estação. Apesar do envolvimento da população local na luta, as restrições não tiveram fim e culminaram, em 2020, no encerramento “provisório” (mas permanente) da passagem.

Este ano, a contestação ganhou novo fôlego.

O nascimento do movimento popular Vida Justa veio ajudar a renovar e amplificar os pedidos pela reabertura do acesso. O movimento, que reclama a melhoria das condições de vida e um travão ao aumento generalizado dos preços, reúne apoio entre os residentes da Buraca e da Cova da Moura e convocou uma concentração no passado dia 22 de abril junto à entrada principal da estação. Marcaram presença cerca de cinco dezenas de pessoas.

No texto do movimento Vida Justa que acompanhou o convite à participação popular, pedia-se “a reabertura imediata da porta mais próxima do bairro da Cova da Moura” e era dado eco à ideia de que o seu encerramento constituía uma medida ativa de segregação territorial, do bairro e das suas pessoas, reivindicando “tratamento igualitário”. Ainda no texto, era possível ler-se: “Em defesa dos transportes públicos, basta de segregação”.

Reginaldo Spínola tem estado envolvido em ações do movimento e esteve à porta da estação a 22 de abril. Considera que o movimento tem estado a contribuir para o aumento do sentido de comunidade e por uma maior expressão das reivindicações coletivas.

“A nossa ideia é mesmo é mesmo essa. É que as pessoas também principalmente se juntem cada vez mais para reivindicar coisas. Temos de lutar em comunidade. A Vida Justa apareceu porque simplesmente somos pobres e queremos direito a casa, ao não aumento exorbitante dos preços e a condições de trabalho e de vida”, diz Reginaldo.

A luta coletiva por melhores condições de vida no bairro é algo que há muito une as pessoas na Cova da Moura. Reginaldo lembra que a associação Moinho da Juventude, constituída em 1987, “cresceu da reivindicação de saneamento no bairro”.

Um novo projeto promete reabrir o acesso

Por altura das eleições autárquicas de 2021, o acesso encerrado entrava no debate político. Na altura, a Infraestruturas de Portugal informava que se encontrava a desenvolver um projeto de alteração e reabilitação do acesso. De acordo com a redação do Polígrafo, o início da obra estaria previsto para 2022 – nada aconteceu entretanto.

A IP confirmou à Mensagem que a obra deverá finalmente iniciar-se em breve. De acordo com a empresa pública responsável pela gestão das infraestruturas ferroviárias e rodoviárias em Portugal, foi desenvolvido um “projeto para alteração/beneficiação da passagem superior pedonal”.

No passado dia 3 de maio, foi lançado o concurso público, tendo em vista o início da intervenção que culminará na reabertura da passagem que serve os bairros da Cova da Moura e da Buraca.

No decorrer da empreitada, os trabalhos a realizar incluem a remodelação integral de toda a infraestrutura de iluminação, a substituição de pavimentos das escadas e patamares, a instalação de guardas metálicas, a execução de caleiras para recolha de águas pluviais, a pintura geral de paredes interiores e exteriores, a construção de um sistema de drenagem no acesso sul e a substituição dos vidros no acesso norte.


Atualização

A 9 de janeiro de 2024, foi adjudicada a empreitada que vai resultar na reabertura da passagem. A obra tem a duração prevista de seis meses e um custo total de 214,8 mil euros, prevendo-se que a passagem possa voltar a servir a população da Cova da Moura e da Buraca durante o presente ano.

*Atualização a 11.01.2024


Frederico Raposo

Nasceu em Lisboa, há 30 anos, mas sempre fez a sua vida à porta da cidade. Raramente lá entrava. Foi quando iniciou a faculdade que começou a viver Lisboa. É uma cidade ainda por concretizar. Mais ou menos como as outras. Sustentável, progressista, com espaço e oportunidade para todas as pessoas – são ideias que moldam o seu passo pelas ruas. A forma como se desloca – quase sempre de bicicleta –, o uso que dá aos espaços, o jornalismo que produz.

frederico.raposo@amensagem.pt


O jornalismo que a Mensagem de Lisboa faz une comunidades,
conta histórias que ninguém conta e muda vidas.
Dantes pagava-se com publicidade,
mas isso agora é terreno das grandes plataformas.
Se gosta do que fazemos e acha que é importante,
se quer fazer parte desta comunidade cada vez maior,
apoie-nos com a sua contribuição:

Entre na conversa

1 Comentário

  1. Até ao momento não há qualquer indicação no local de obras. Acesso encerrado e ao abandono, a acumular lixo. Pergunto onde é possível consultar a abertura desse concurso, perceber se o mesmo foi concluído (se de facto foi aberto será normal que esteja concluído), que empresa venceu a adjudicação e qual a data prevista para o início e conclusão da obra.

Deixe um comentário