Sérgio Barroso coordenou o Plano Metropolitano de Adaptação às Alterações Climáticas da Área Metropolitana de Lisboa. Um documento importante na gestão e coordenação de medidas que, por um lado, mitiguem os danos, e por outro lado, protejam dos riscos estas cidades que gravitam à volta do estuário do Tejo e dos seus afluentes. Por estes dias de chuva intensa e inundações, muitas têm sido as críticas veladas dos presidentes das várias câmaras, com acusações mútuas. Nem tudo é verdade, nem tudo é falso.

Sergio Barroso
Sérgio Barroso, o coordenaor do Plano de Acção Climática para a Área Metropolitana de Lisboa. Foto: DR

Há muitas interependências, mas também há algo que une todos estes políticos, na opinião do geógrafo e urbanista diretor do Centro de Estudos e Desenvolvimento Regional e Urbano e coordenador da iniciativa ClimAdaPT.Local: todos se guiam mais pelos interesses e preocupações do momento do que pelo longo prazo. E é por isso que apesar de já haver algumas ações que permitem minimizar os riscos de eventos como os destas semanas, muito há por fazer na adaptação do território ao que aí vem. Nomeadamente nas zonas ribeirinhas e na construção em leitos de cheia. E aí, a zona de Lisboa dá um péssimo exemplo.

Afinal, a chuva elevada e as recentes inundações que estamos a viver são ou não efeito das alterações climáticas?

As alterações climáticas não se medem por um dia. Medem-se em séries de 30 anos. E é assim que se consegue perceber. O que tivemos agora são eventos de chuva muito elevada, mas que não estão fora do padrão da época na Área Metropolitana de Lisboa. O que estes eventos nos dizem é o que vão ser as alterações climáticas no futuro.

Em que termos?

Teremos eventos destes com intervalo de tempo menor. O que dantes havia de cem em cem anos passa a haver de 50, ou 30. E isso tem implicações muito grandes. Um exemplo: o comércio da Baixa de Algés. Uma coisa é lidar com uma cheia de 20 em 20 anos. Outra coisa é de 5 em 5… Isso tem custos diretos, e outros. As seguradoras, por exemplo, e outros que podem tornar incomportável ter comércio naqueles locais.

E chamo a atenção para uma coisa: em cenário de alterações climáticas, em resultado da subida do nível médio das águas do mar, as inundações nestes pontos baixos vão ser ainda piores. Onde hoje nos queixamos que apanhamos a maré alta, ela vai ser ainda mais alta. E todos estes lugares vão ser ainda mais afetados. A subida das águas maximiza os resultados das cheias. Por isso, o melhor caminho para nos prepararmos para as alterações climáticas é lidar com o que vimos nos últimos dias. 

São uma boa lição.

É uma oportunidade extraordinária para vermos no que temos de nos tornar mais resilientes. 

E o que diria que é essencial? 

A mais urgente e mais barata medida é ter sistemas de prevenção e uma estrutura de precaução superior. Temos de ter protocolos de resposta que não sejam: os miúdos de manhã vão para a escola e ficam em casa à tarde. Ou nem saber. Temos de estar muito mais preparados. Não é admissível que haja carros estacionados nas zonas baixas quando há um alerta destes. Temos de ter protocolos claros que protejam pessoas, vidas. Mesmo que depois se torne desnecessário. E isto implica uma cultura e auto-proteção muito grande. E isso tem de ser dado nas escolas.    

Algés sofreu inundações em várias ruas, no túnel da estação e causou o pânico. Se a chuva for frequente, pode acabar por aumentar de tal maneira os custos, que os comerciantes não aguentam, defende Sérgio Barroso. Foto: Inês Leote

Imagine que eu moro numa cave em Alcântara ou Algés. 

Significa que vai ter de haver uma resposta de realojamento de intervenção e prevenção.  

Isso implica uma mudança de mentalidade. E quando não é possível prever – é verdade que o sistema está tão alterado que às vezes não é possível prever?

Isso não é porque o sistema está tão alterado – é porque é assim. Porque as nossas bacias são muito pequenas. As cheias no Tejo ou no Douro gerem-se. São grandes bacias, as barragens gerem-se. No caso da parte norte da AML não há possibilidade de ter mecanismos de alerta fiáveis. São bacias pequenas que enchem muito rápido. Isso significa que a cultura de prevenção tem de ser mais zelosa. 

As câmaras municipais têm sido incautas? 

Acho que globalmente nós todos somos. Não há uma cultura de preocupação em Portugal. Mas é um caminho que se está a fazer. Está a ser feito um trabalho. E em Lisboa admito que a máquina talvez não estivesse tão bem preparada pela transição política. Eu, por exemplo, esta semana recebi um alerta da proteção civil – significa que já estamos a aprender.

Sim, mas a forma como está escrito… “Fique atento”! 

Não dá! Tem de ser muito claro. Tem de ser: saia de casa, não saia! As coisas têm de estar definidas com antecipação e de forma muito clara.   

Cruz quebrada praia jamor oeiras poluição verão turistas
O rio Jamor onde vai nascer o empreendimento novo em Oeiras. Foto: Inês Leote

Certo. E as outras medidas?

São mais caras. Reduzir a afluência de caudais a pontos baixos. Isso passa por barreiras, bacias de retenção, os túneis do Plano de Drenagem, desimpermeabilização – tudo o que reduz a afluência de água a estes sítios.

Terceira questão: é preciso equacionar que em alguns destes sítios eventualmente os pisos térreos têm de ser desocupados. Também é preciso separar os sistemas de drenagem, o pluvial e o esgoto, para que a água não entre pelos canos dentro. Isto implica grandes investimentos. 

Repetindo a pergunta: tendo em conta que tudo isto não é novo, chuva intensa e inundações, que sabemos ser um risco habitual na cidade, que haverá mais… sente que os municípios da zona de Lisboa têm sido muito incautos a lidar com a questão?

Há duas dimensões disso de ser incauto. Uma é o urbanismo permitir o alastramento da área artificializada, e nos leitos de cheia. Isso é um facto – até mais na envolvente da cidade de Lisboa. No que diz respeito à intervenção nas linhas de água, não diria que não fazem nada. É insuficiente, como ficou à vista… Agora, há pontos críticos. Isso ficou evidente. Por exemplo, no Trancão, em Loures, na Baixa de Loures. Não há drenagem que valha – apesar de ter sido feito trabalho nesse sentido. É uma área fortemente edificada na zona de cheia. Pode-se talvez fazer diques, ou construções que acautelem… mas aí manifestamente é difícil.      

Loures é uma zona hoje extremamente urbanizada – impossível conter as águas deste baixio, diz Sérgio Barroso. Foto: DR

É verdade que muitos dos riscos são intermunicipais…

Os riscos hidrológicos da parte norte de Lisboa, sim. As bacias hidrográficas são praticamente todas intermunicipais. Abrangem mais que um município, o que significa que a resposta ao problema onde as cheias ocorrem é obrigatoriamente um intervenção intermunicipal. A Ribeira de Algés começa na Amadora, O Jamor, em Sintra. O Trancão começa em Mafra. Onde se concentra a água são bacias pequenas e por isso se concentra tão rápido, e é difícil ter sistemas de previsão.

O que se pode fazer? 

Tudo o que faz atrasar, reduzir a velocidade da água que chegue à zona baixa.

O que acelera a velocidade da água? Tudo o que impermeabiliza – estradas, prédios – aumenta a quantidade da água que existe e a velocidade que ela atinge. O que atrasa? Bacias de retenção, muros, barragem, charcas, aliviam as inundações. 

Os autarcas das zonas costeiras têm razão ao dizer que estão a levar com questões que começam nos concelhos limítrofes? 

Em teoria, sim. Mas quais são as situações? Baixa de Cascais – o ponto crítico está dentro do concelho e é o resultado de um processo de artificialização muito grande desde os anos 50, em torno da vila, e que originou cheias grandes. Oeiras, grande parte da freguesia de Algés, Miraflores, foi brutalmente artificializada e criadas todas as condições para isto. Mesmo do lado da Amadora e do Estado Central. A própria Agência Portuguesa do Ambiente está neste canal, em cima do leito de cheia. Em Alcântara, a bacia vem da Amadora e Sintra, e é o caso de uma ocupação indevida de um canal. Loures, idem. Mesmo a Baixa de Lisboa. Grande parte da envolvente foi edificada e ocupada. Ninguém pode ficar livre de responsabilidades.

As autarquias têm vontade de resolver isto em conjunto – notou isso quando fez o Plano de Ação Climática da AML?

Na elaboração do plano, houve apoio. Foi um processo gigantesco de capacitação de técnicos de todas as câmaras com workshops nos municípios, um processo mobilizador. Senti vontade de conhecer as dimensões do problema. Mas há muitas incoerências nestes processos.

Esta preocupação é evidenciada nas decisões das autarquias? Não! Quando estávamos a discutir o plano estavam a ser aprovados vários projetos em cima da margem do Tejo e promovidos: em Lisboa, em Algés, no Barreiro, Almada. Temos vários projetos previstos para zonas altamente afetadas pela subida das águas do mar. 

O empreendimento Porto Cruz está a ser desenvolvido junto à foz do Rio Jamor, que agora encheu. Foto: DR

Porquê? Porque ainda não vivemos consequências tão catastróficas que nos assustem?

O poder político reflete as incoerências na sociedade como um todo. Interesses contraditórios: desenvolvimento e sustentabilidade, construção e necessidades de habitação e de libertar solo. Temos aqui forças contraditórias.

Consoante o tema que está em discussão, os políticos tomam posição. Dependendo das circunstâncias os políticos reagem a problemas concretos. Uns dias, têm de defender o comércio local, outros dias acham que não pode haver por causa do leito de cheia. Mas por exemplo nos incêndios… 

Sim, lá está, aí já vivemos essa catástrofe. 

Certo, mas mesmo assim viu-se a reação negativa dos autarcas quando o ICNF propôs fazer uma cartografia de risco! Globalmente nós não temos uma cultura de precaução. Viu pessoas que perante a cheia avançaram com os carros. E ficaram lá. O ordenamento do território até evoluiu bastante bem. Veja-se que não tivemos perdas humanas por causa das cheias. 

Isso porque a população evoluiu, já não há tantos bairros de barracas…

Claro! E a vulnerabilidade climática é desde logo uma vulnerabilidade socioeconómica. Uma das coisas que mais me preocupa na AML é o Bairro do Torrão e Cova do Vapor. O realojamento é prioritário, porque aquele lugar é crítico e aí vive uma comunidade com menos recursos. 

Qual é a sua avaliação, depois de ter feito o plano a AML, em que ponto estamos no enfrentar os problemas das alterações climáticas?

A resposta ao problema das alterações climáticas tem dois braços: um chama-se mitigação. Emitirmos menos gases efeitos de estufa, porque isso causa o problema. O outro é que mesmo mitigando muito vamos viver com um clima em mudança e portanto, temos de saber lidar com ele.

Como estamos em ambos?

Na questão da mitigação somos os mais ambiciosos nessa matéria porque temos muitas energias renováveis e também Portugal não é um país particularmente poluidor, por via da nossa industrialização que não é tão forte.

O problema está na mobilidade – nomeadamente nas zonas metropolitanas, onde é um fator chave. Acho difícil que o investimento que se tem feito na área seja muito bem sucedido porque as pessoas estão muito dispersas na AML e é muito difícil oferecer um transporte público com a qualidade e eficiência que estão habituadas ao seu carro.

Nas questões das alterações o que me preocupa mais são as ondas de calor. É o que mata mais – é mais invisível, não é mediático… temos uma vulnerabilidade grande na nossa demografia, um edificado com péssimo desempenho térmico e temos cidades ma planeadas em termos de edificação e com uma estrutura arbórea frágil que não permite reduzir os efeitos das ilhas de calor.         

Preocupa mais que as cheias?

Sim, porque eventos destes podemos ter de anos a anos mas ondas e calor temos todos os anos. E as cheias têm uma localização mais específica. É naquele sítio. E as ondas de calor são mais difusas. Não se podem tirar as pessoas de um sítio. Talvez os idosos. Ou seja, é um problema mais abrangente. Veja-se as unidades de saúde que não estão preparadas para sistemas de arrefecimento. Nestas cheias morreu uma pessoa. Numa onda de calor morrem centenas. Estes são os problemas do presente. 

E as do futuro… os lisboetas sentem que não há um olhar de frente para isto e há muita politização. Há aqui coisas que deviam ser emergências nacionais… Por exemplo, não construir nas zonas ribeirinhas… devia ser uma legislação nacional. 

E há uma coisa que quem como eu trabalha no país todo nota: Lisboa é um péssimo exemplo nisso. É muito difícil eu impor uma restrição no resto do país numa frente ribeirinha de risco, e as pessoas verem que em Lisboa se constrói o MAAT, a Fundação Champalimaud, um enorme empreendimento em Algés… As pessoas não compreendem que em lisboa se pode fazer e na Régua, por exemplo, não. 

E qual é a explicação?

É que não conseguimos levar avante o plano de ordenamento do estuário do Tejo. Tudo é situação de exceção e tudo é permtido – a gestão é da APL. E isso gera um sentimento de descrédito… E de injustiça. Lisboa tinha aqui um obrigação acrescida porque é muito emblemática. O que se faz em Lisboa é seguido. E é assim em toda a parte. Vejo isto em muitas reuniões com muits autarcas. 

Mas isso vai cair em cima de Lisboa também.

No futuro cairá. Seguramente que sim. Por exemplo, algo que ainda não é muito evidente mas no futuro vai ser um desafio gigantesco é a subida do nível das águas do mar no estuário do Tejo.

Na frente costeira é desde a Cova do Vapor até à Fonte da Telha. Porque afunda-se – junta-se a subida das águas, com um mar energético, e menos sedimentos que já temos. No caso do estuário, não tem esta dinâmica, mas podemos ter por exemplo situações em que a linha de Cascais esteja interrompida.    

Qual é a previsão?

Até ao final do século são 80 cm. Agora num temporal, é ver o que isso dá, além da erosão costeira. E depois isto potencia os problemas das cheias. 

Talvez seja essa a questão, ainda não sentirmos isso na pele…

Londres não sente isso mas já está a preparar-se a fazer diques no Tamisa. Mas isso não é possível no Tejo.

O que é fundamental fazer é não permitir que se construa em sítios que podem ficar debaixo de água. Coordenei o Programa de Ordenamento da Orla Costeira da AML e Oeste. E estabelecemos interdições na construção. 

E são cumpridas?

São. Foram transportadas para os PDM. 

Belem Trafaria Barco Transtejo TST Margem Ferry Eletrico Carro Amolador Bicicleta Mobilidade Plataforma intermodal praia
O cacilheiro que faz o trajeto Belém – Porto Brandão – Trafaria – uma das zonas mais em risco. Foto: Inês Leote

Exemplos?

Havia um lote previsto na Costa da Caparica onde dantes era o restaurante Barbas no Polis, era um hotel. Interditámos. Nos parques de campismo previram-se três lotes grandes para hotéis. Também foram chumbados. Conseguem estabelecer regras.

Em Lisboa, não. 

Não porque o POOC termina no Concelho de Oeiras. E não há nenhum instrumento de gestão.  

E Lisboa quer viver mais junto ao rio, reconciliou-se… 

Mas essa reconciliação é um pouco estranha porque o que se previa era que houvesse espaço aberto, jardins e agora cada vez mais é a privatização da frente ribeirinha. Que não encontram nas autarquias qualquer tipo de resistência.


Catarina Carvalho

Jornalista desde as teclas da máquina de escrever do avô, agora com 51 anos está a fazer o projeto que melhor representa o que defende no jornalismo: histórias e pessoas. Lidera redações há 20 anos – Sábado, DN, Diário Económico, Notícias Magazine, Evasões, Volta ao Mundo… – e segue os media internacionais, fazendo parte do board do World Editors Forum. Nada lhe dá mais gozo que contar as histórias da sua rua, em Lisboa.
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5 Comentários

  1. Em relação à construção ribeirinha em Lisboa, vejam o que se está a passar na Expo, junto à Ponte Vasco da Gama, com o condomínio
    Pines Urban Resort – https://pines.pt . Vejam a distância a que está do Tejo. E alerto também para um comunicado do Forum Cidadania LX sobre a construção de caves na rua de São José, tradicionalmente afetada por cheias e construção nova em logradouro na calçada do Lavra.

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