Os olhos grandes e curiosos de Gurnaaz Kaur fazem advinhar muita vontade de compreender o mundo. O sorriso fácil da menina indiana de quatro anos tem uma doçura cheia de palavras não ditas. Ainda não fala português. Passaram poucos meses desde que deixou o país dela na aventura que a família empreendeu pelo continente europeu. Arrisca alguns gestos para tentar expressar-se e cumprimenta a qualquer hora com um “bom dia”, uma das únicas expressões que aprendeu.

Nahary Conniott, de 8 anos, também procura os caminhos de interação. Com perturbação do espectro autista, vinda de Angola, colecionou situações desagradáveis e foi convidada a sair do colégio particular que frequentava. Nos outros, em que a mãe a inscreveu, a recusa era sempre justificada com a falta de vagas.

Crianças com percursos tão diferentes encontraram no mesmo lugar o apoio que mereciam. No projeto Colo100Horas, que nasceu em 2021 numa rede auto-organizada de mulheres que se uniram para enfrentar os imensos desafios quotidianos – chamada JangadaD’Emoções, para ajudar a comunidade da Tapada das Mercês, em Sintra.

A extensa lista de problemas e quem aqui mora fez com que decidissem vencer o isolamento e procurassem juntas a solução: o acumular de tarefas e a extenuante rotina no cuidado com os filhos, ainda imposta na maioria das casas como responsabilidade das mulheres, os baixos salários, a sobrelotação das creches, o trabalho excessivo e a dificuldade com os horários por turnos – comuns em áreas de restauração e limpeza. Disso falaram em muitas conversas entre as mães do grupo.

Colo100Horas: mulheres unidas pelo recomeço

Um caso trágico ocorrido há pouco tempo marcou o bairro e chamou a atenção para a necessidade de um maior apoio às famílias: um menino de seis anos morreu após cair do nono andar do prédio em que morava. Estava acompanhado apenas dos dois irmãos pequenos, enquanto a mãe saira para ir ao mercado, a poucos metros. Infelizmente, não foi um acontecimento isolado. Não eram raros os acidentes com crianças que, por algum motivo, ficavam sozinhas em casa, sem a supervisão de um adulto.

Este é o tipo de acontecimento que o projeto Colo100Horas quer, a todo custo, evitar. Durante o período de interrupção letiva, o espaço ficou aberto das 9h às 17h para uma colónia de férias com direito a passeios ao jardim zoológico, museus, parques e praias. Com o início do ano escolar, em setembro, a ideia é oferecer a preços simbólicos o serviço de babysitter todos os dias, inclusive aos fins-de-semana.

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Unidas na diferença, as crianças no Colo100Horas encontram as suas próprias formas de diálogo e interação. Foto: Inês Leote.

O valor cobrado é de 75 euros por mês e dá direito a quatro horas diárias, de segunda a sexta, mas quem não pode pagar também é atendido. Basta contribuir ao cuidar, por exemplo, de outras crianças num dia de folga, ou fazer uma atividade que o grupo esteja a precisar.

Assim é formada a teia de entreajuda que dá suporte às mulheres, que são responsáveis por 81,5% das famílias monoparentais da Tapada das Mercês, segundo dados do Conselho Local de Ação Social de Sintra. 

É o caso de Marília Conniott, que cria sozinha a pequena Nahary, e tem no Colo100Horas uma equipa que se esforça para fazer que a tarefa de ser mãe de uma menina com perturbação do espetro do autismo seja um pouco mais leve. Para ela, a maior recompensa é ver a filha aprender a socializar, sentindo-se à vontade num ambiente protetor da maldade do mundo exterior, que tantas vezes experimentou.

Antes, levava a menina para todo o lado e o excesso de estímulos deixava-a constantemente nervosa, em crise. “Participo como voluntária. É gratificante conviver como se estivéssemos em casa, em família. Eu sinto-me acolhida. Há lá três ou quatro crianças com necessidades especiais e pude partilhar a experiência que tive com a minha”, conta.

Para a coordenadora Liliana Soares, filha de uma das fundadoras da Jangada D´Emoções, o mérito do Colo100Horas está em oferecer um sítio seguro e confiável para quem não tem alternativas. “Tenho meninos aqui que entram às 7h, vão para a escola às 9h, voltam outra vez às 19h e saem daqui às 21h. O real problema é as mães não conseguirem estar com os filhos. Ou dão comida ou dão tempo”, diz.

Mas há mais: ali as mães encontram o incentivo para ir em busca de algo até então clandestino, a autonomia, tão necessária para romper os ciclos de submissão e incertezas. Liliana cita o caso de uma delas, que aproveitou o apoio para avançar com um sonho adiado e poder finalmente tirar a carta de condução.

Na batalha por um futuro diferente, o acolhimento é muito do que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.

Empatia: uma capacidade que estimula a aprendizagem

A parte pedagógica também é uma das principais preocupações. Por isso, a associação recorreu a parceiros como a Fundação Aga Khan e o Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP) para capacitar as participantes na área de educação infantil e outros setores, como primeiros socorros, saúde e bem-estar. 

Liliana diz com orgulho que o apoio mútuo não existe apenas entre as mães, mas transborda também para as crianças. Numa comunidade em que coexistem 27 nacionalidades, o respeito pelas diferenças é uma prioridade: “Mesmo não falando a mesma língua, brincam todos juntos porque os miúdos são assim. Todos já sabem que o amigo não come isto ou o outro não pode fazer aquilo por causa da cultura ou religião”.

Afonso reencontra o amigo, Wesley, que conheceu na colónia de férias do Colo100Horas, em agosto. Foto: Inês Leote

O filho de Helena Reis, Afonso, de treze anos, passou as férias com os amigos do Colo100Horas: comemorou o aniversário, andou de bicicleta, jogou bola, foi à pizzaria e terminou com um passeio às piscinas de Santarém.

“Na despedida da colónia de férias, não houve quem não chorasse. Eu mesma chorei. Isso vale mais do que mil palavras”, diz a mãe. O próprio adolescente admite que ficar em casa preso ao telemóvel ou ao computador não era tão divertido quanto a sensação de brincar livre pelas ruas do bairro.

Na opinião da coordenadora, é preciso promover um espaço de aceitação, cooperação e diálogo. “Somos todos especiais. Todos temos as nossas características, a nossa individualidade. Fazemos de tudo para estarmos todos na mesma rede. Porque é isso que estamos a construir: uma rede”, conclui.

Afonso com a mãe, Helena, no Colo100Horas. Foto: Inês Leote

Beta e a força de saber-se frágil

Elisabete Borges é presidente da Jangada D’Emoções. Para Beta, como é conhecida, o envolvimento com o Colo100Horas tem um significado que vai além do que os olhos podem ver: aborda temas particularmente difíceis da trajetória dela, que perdeu a mãe ainda muito pequena, o que fez com que tivesse que lidar com um vazio a vida toda. “Acho que não tive infância. Não consegui ser criança, não tive muitas brincadeiras”, confidencia.

Mais tarde, uma forte depress��o impediu-a de usufruir da maternidade de uma forma positiva. Já sozinha com as quatro filhas, experimentou sucessivos internamentos em hospitais psiquiátricos e lamenta não ter conseguido acompanhar o desenvolvimento das meninas, que nesses peíodos ficavam aos cuidados de uma tia.

Agora, diz que tenta compensar com o apoio aos netos e aos filhos de outras mulheres que pedem ajuda, como tantas vezes ela precisou.

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Elisabete Borges é a pesidente da assocação Jangada D’Emoções, responsável pela concretização do projeto Colo100Horas. Foto: Inês Leote.

A criação da Jangada D’Emoções aconteceu há mais de uma década. No início, como um grupo informal intitulado “Clube das Mulheres” onde eram organizados eventos comunitários com dança, teatro, artesanato, recolha de alimentos, tertúlias e debates.

Pouco a pouco, a troca de experiências foi deixando cada vez mais nítida a necessidade de mobilizar esforços em prol de objetivos em comum. Já formalizadas, inscreveram o projeto de babysitting no programa público Bairros Saudáveis, destinado a promover melhores condições de vida em territórios vulneráveis.

O projeto foi aprovado no ano passado.

Beta diz que vê no Colo100Horas a oportunidade de reescrever a própria história e, enfim, fazer as pazes com o passado: “Da minha parte, faço o que posso. Hoje as minhas filhas têm orgulho. Dizem: ‘és uma grande mulher, fizeste muita coisa'”.

Para Beta, a gratidão das crianças atendidas supera o amargo de qualquer preocupação que um dia possa ter roubado o seu sono. “Eles não querem sair daqui. Chamam-me de ‘avozita’. Isso é que às vezes me dá graça nestes miúdos. Chegar de manhã e os meninos abraçarem-me e dizerem  ‘tive saudades tuas’. Isso mexe connosco”, emociona-se.


* Nascida na Amazónia brasileira, Maíra Streit tem uma vida comprida para os seus 36 anos. Ao transgredir as próprias fronteiras, encontrou no jornalismo um território para a liberdade. Cultiva a sede de desvendar o mundo através do olhar do outro e tem um especial interesse por tudo o que acontece à margem das narrativas. Mergulha sempre que pode na cobertura dos direitos humanos porque sabe que, às vezes, é preciso partir-se para continuar inteira.

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12 Comentários

  1. Divulgar o trabalho solidário dessas mães que se entreajudam, é uma qualidade da imprensa comprometida com a boa causa. O que parabenizo o jornal!
    Mais precisamente sobre a matéria Colo100Horas: na Tapada das Mercês, as mães que “ou dão comida ou dão tempo”, parabenizo a jornalista que escreveu-a, por sua competência técnica ao descrever a realidade com profissionalismo e objetividade. Para mais além, deixar o leitor(a) esclarecido(a) da situação merecedora de bons olhos também para contribuir,
    foi de fundamental importância. Parabéns ao jornal! E parabéns à jornalista!

  2. Parabéns pela reportagem Colo100Horas: na Tapada das Mercês, as mães que “ou dão comida ou dão tempo” criaram clube para se ajudarem umas às outras.
    Solidariedade e generosidade na prática. Belo exemplo que a Jangada D´Emoções, com o Projeto Colo100Horas, oferta ao mundo. Inspirador.
    Jan Carlos

  3. Que projeto lindo! Um simples gesto de carinho e uma demonstração de afeto podem reacender a luz no coração de quem já não tem mais esperança. No mundo, há pessoas carentes não só de alimentos ou de dinheiro, mas também de atenção, afeto e tempo!
    Parabéns ao jornal e a jornalista Maíra Streit por relatar com tanta riqueza o dia a dia dessas mães e filhos numa comunidade unida no bem estar social. Que nobre!

  4. Estou muito emocionada com td o k li e o k já vivi na Jangada D’emoções/ Colo 100 hora.
    “Somos mulheres/mães/avós tb já fomos crianças mts de nós sofridas, Deus está nos dando a possibilidade/oportunidade de fazer mudar vidas. Então o k esperamos? Vamos, juntas dar as mãos e levar o amor k o ” próximo” precisa e espera de nós.

  5. Que lindo projeto, a linguagem da empatia e solidariedade é mesmo universal. Parabéns pela matéria, quanta riqueza em detalhes!!

  6. A jornalista que escreveu a matéria “Colo100Horas: na Tapada das Mercês, as mães que “ou dão comida ou dão tempo”, está de parabéns!
    Trouxe ao nosso conhecimento o lindo trabalho dessas mães que resolvem problemas do dia a
    dia por meio da solidariedade.
    Que sejam noticiados outros projetos assim. E com a mesma competência jornalistíca!

  7. Parabéns Maíra, pela bela reportagem sobre o Projeto 100Horas. O propósito de acolhimento desse projeto certamente mudará a vida de muitas crianças e das suas mães.

  8. Excelente o artigo de autoria da Jornalista, Maira Streit, sobre a organização de mulheres/mães no Coletivo Colo100Horas – na Tapada das Mercês -, que se juntam para partilhar algumas horas do seu tempo no cuidado dos filhos das outras mães, enquanto estas estão no trabalho diário para colocarem comida em casa e dar aos filhos condições de estudar e viver a sua infância com mais dignidade. Muitas delas são mães solo, que cada vez mais se tornam uma triste realidade, principalmente nas periferias das grandes cidades e nas camadas de baixa renda da pirâmide social. A leitura do artigo nos evoca a importância de se dar mais visibilidade a ações como essa, ao tempo em que provoca o Estado a criar políticas públicas que venham amenizar as dificuldades diárias que enfrenta essa parcela da população.
    Parabéns ao jornal, por dar publicidade a tais ações cotidianas – o que demonstra o seu comprometimento com situações de grande apelo social – e à jornalista, pelo artigo, que desvenda o excelente trabalho comunitário e solidário das mães do Colo100Horas.

  9. Parabéns ao jornal e à jornalista Maira Streit! São artigos como esse que fazem reacender em nossos corações a esperança e a fé na possibilidade de construirmos um mundo melhor! O belo exemploo dessas mulheres que se uniram para cuidar juntas dos filhos, permeado pela história sofrida e desafiadora de cada uma, e narrada com tanta sensibilidade e realismo pela Maíra, vale a pena ter uma ampla divulgação. Quem sabe assim poderíamos ter outros tantos projetos como o Colo100horas, a criação de outras Jangadas D’Emocões, a navegar outros mares, muito além das fronteiras da Tapada das Mercês… Afinal, “navegar é preciso…” navegar levando as sementes de sonhos que possam gerar novos sonhos… E que a colheita seja farta e bela!

  10. Achei super interessante a iniciativa e divulgação do trabalho solidário Colo100horas, bastante incentivador, inovador e atual, sendo Portugal um país acolhedor de inúmeras nacionalidades, esta interação com mães e crianças transmite confiança , a colaboração e participação coletiva, merece total reconhecimento, um projeto nacional e que pode vir a crescer e expandir de norte a sul do país, a colaboração é uma atitude fraternal é reativar o nosso melhor, o lado humano, é nutrir a alma e sentir-se bem por ter ajudado alguém, desejo continuação de progressos, sucessos ampliações que seja contínuo e acolhedor.

  11. Achei super interessante a iniciativa, a divulgação do trabalho solidário Colo100horas, bastante incentivador, inovador e atual, sendo Portugal um país receptor e acolhedor de inúmeras nacionalidades, esta interação com mães e crianças transmite confiança, segurança e tranquilidade, uma colaboração influente, participação coletiva que merece total reconhecimento, um projeto social, nacional que merece destaque com probabilidade de expansão de norte a sul do país. A colaboração é uma atitude fraternal é reativar o nosso melhor, o lado humano, é nutrir a alma, é mobilizar a capacidade que temos de agir,
    e sentir-se bem por ter ajudado alguém.
    Desejo continuação de progresso, sucesso.

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