Casa do Brasil de Lisboa
Foto: Rita Ansone.

Meninas e meninos, eu vi. Eu vi o Brasil feliz. E não foi alguém que me contou. Eu vi, estava lá.

Estava lá como jornalista, num jornal popular na minha primeira redação, dedicado à classe C, como tantos outros jornais que surgiram no Brasil no mesmo período e para o mesmo público, sustentados por anunciantes que pela primeira vez enxergavam os até então invisíveis milhões e milhões de brasileiros retirados da miséria como cidadãos.

Cidadãos que não compravam o carrão anunciado nos jornais para a classe média, mas uma mota de baixa cilindrada, a mota para ajudar a levar as ferramentas no vai e vem do serviço, e para uma escapadela à prainha no domingo, pois ninguém é de ferro e, pela primeira vez, assim como o patrão e a patroa, eles também eram filhos de deus.

Cidadãos que pela primeira vez compravam um eletrodoméstico, que parcelavam a televisão, o fogão, o frigorífico em infindáveis 24 meses de prestações, cada parcela registada na folhinha do carnet de papel, retirado mensalmente da gaveta da cómoda para honrar a dívida, pois gente pobre é gente honesta, que sempre paga o que deve.

Pagar a prestação não do aparelho mais moderno, mas do mais simples, da “linha branca” da loja, a televisãozinha para acompanhar a novela e o futebol com a cervejinha fresca saída do frigorífico, até então um aparelho impensável, inútil, pois não havia comida para se meter nele, muito menos para cozinhar num fogão.

Isso eu vi, ninguém me contou, estava lá.

Estava lá como professor da Universidade Católica, no Brasil como em Portugal uma instituição privada e burguesa, mas que começou a abrir as portas para os filhos das cozinheiras e dos motoristas que trabalhavam na casa dos alunos tradicionais. Gente de pele escura e o sorriso alvo, gente humilde, que só tinha de grande os sonhos.

Alunos que estudavam à noite e trabalhavam durante o dia para defender o salário mínimo, que pela primeira vez em décadas ganhava da inflação, um salário dividido na ajuda das despesas em casa, no passe dos transportes e no lazer, pois assim como os filhos dos patrões, essa juventude podia ir ao cinema e dançar no bailinho.

Um salário que só não ia para as altas mensalidades da universidade, custeadas por um governo que fez questão de reparar uma dívida histórica com milhões e milhões de brasileiros empurrados para a miséria desde que as primeiras caravelas portuguesas atracaram no Brasil abarrotadas de escravos.

Isso eu vi, ninguém me contou, estava lá. Eu vi o Brasil feliz.

Um Brasil diferente de agora, dividido pela raiva, derrotado pela tristeza e novamente consumido pela fome. Um Brasil com dezenas de milhões de brasileiros que nem pobres conseguem ser, quanto mais trabalhadores ou estudantes. Brasileiros que não abrem a boca para comer nem sorrir, privados de comida, de alegria e, mais cruel ainda, privados de sonhar.

Isso infelizmente eu também vi, ninguém me contou. Estive lá.

É por isso, meninas e meninos, que não posso me dar ao luxo de ser imparcial como jornalista. Não é justo com milhões e milhões de brasileiros que não tiveram a sorte que eu tive de vir de uma família de classe média, um privilegiado em ter escapado aos anos sombrios de um governo inclemente, protegido num acolhedor Portugal.

Mais do que não ser justo. Não seria certo, não seria digno.

O educador pernambucano Paulo Freire é o intelectual brasileiro mais citado de sempre no mundo em artigos académicos. É dele a máxima de que a imparcialidade não existe, o que há é uma base ideológica que nos orienta acima de qualquer pretensão de ser imparcial, uma base que pode ser de caráter inclusivo ou excludente.

Só cabe a cada um de nós perceber qual base está a nos guiar.

Classe média, branco, homem, hétero e cis, estaria bem posicionado na pirâmide social estimada pelo atual governo, um governo de base excludente concentrado na estratificação, na divisão, no eu estou certo e quem é igual a mim também está, e vocês, diferentes, só podem estar errados.

Mas só que calhou de ser um brasileiro, um jornalista de base inclusiva, que não pensa no que é melhor para mim, que sempre tive de tudo. Quero é que outros brasileiros tenham o mesmo que eu tenho, que voltem a abrir a boca para comer e para sorrir. Que possam sonhar, trabalhar e estudar.

Estudar uma boa educação, pois como também disse Paulo Freire, quando a educação falha, o sonho do oprimido é se transformar em opressor. E de opressores, meninos e meninas, vamos combinar, este mundo está cheio.

Por isso, não me peçam para ser um jornalista imparcial. Não, com o futuro, com o sonho dos outros. Hoje, não. Hoje, tenho lado. Hoje, voto em Lula.

Para, meninos e meninas, voltar a ver o Brasil feliz.


Álvaro Filho

Jornalista e escritor brasileiro, 51 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa. É autor de sete livros, dois deles com Lisboa como personagem, Alojamento Letal e O Mau Selvagem.

alvaro@amensagem.pt

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2 Comentários

  1. Como explicar a percentagem de imigrantes brasileiros bolsonaristas?

  2. Em breve vamos ter um texto sobre a comunidade que cobrirá isso mas pode também ler a entrevista da Daniela Pinheiro.

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