Nem quando as pontas dos dedos já enrugam, Ferdinando deixa a água. “Às vezes, só saio para comer. E quando tenho frio.” Já que “parecer velho” não apoquenta este nadador de 11 anos, Ferdinando passa os dias de maior calor a testar saltos para dentro da piscina de plástico plantada no passeio mesmo em frente à porta do prédio dele, no bairro da Picheleira. Comprada pela família, montada por todos.

Na arena de 4,95 metros de largura e 1,20 de altura, o maior atleta é “o amigo Tomás”. “Quando ele se manda, parece um tsunami.” Água para fora e contra as paredes do prédio, não fossem estas uma espécie de olimpíadas “da chapa na água”.

Ferdinando, 11 anos, na beira da sua piscina, na Picheleira. Foto: António Brito Guterres

Mas é a Ferdinando que todos reconhecem a paixão pela água. Quando faz anos, uma ida às piscinas de Santarém é viagem obrigatória. Um plano reservado apenas a datas especiais, porque a disponibilidade familiar é pouca e o dinheiro na carteira escasso para uma visita às piscinas mais perto. Dali até ao mar, já se sabe, também é outra olimpíada.

Por isso, as férias de verão são passadas no bairro e a treinar braçadas e saltos nesta banheira de plástico.

No verão, sabe bem quem mora nestes bairros, é de azul do mar e plástico que se faz a paisagem. Uma piscina aqui, outra ali. Mas, este ano, a paisagem habitual virou espanto para quem não paira por estes lados e descobriu a tradição em imagens que circularam nas redes sociais: no lugar dos carros e das esplanadas, lá estavam elas, as famosas piscinas.

No passado mês de julho, quando Portugal recebia a onda de calor mais intensa e extensa desde 1941 e a compra de ventoinhas disparava, nos bairros sociais de Lisboa a preocupação era outra: tirar o pó às piscinas dobradas e guardadas desde o verão passado. Separaram-se as dobras já quase coladas umas às outras, abriram-se as varas que erguem toda a estrutura, as pequenas escadas e começaram as olimpíadas de Ferdinando, dos amigos e dos vizinhos de outros bairros.

Aqui, ninguém é dono em regime totalitário. Embora haja sempre alguém que a compre e a guarde em casa, quando uma piscina nasce, nasce para todos. Há quem nade de roupa, há quem vá quase sem ela. Pequenos e graúdos, uns mais especialistas do que outros nas ditas “chapas”. Todos atletas na arte de combater o calor.

Os primeiros mergulhos

“Deve ter sido a família dos gémeos, que mora ali mais acima”. A memória falha, porque o tema nunca foi assunto de conversa. Certo é que as gerações mais novas do bairro da Picheleira não sabem definir quando viram uma piscina ocupar os passeios e ruas pela primeira vez.

Sebastião – mais conhecido por estas bandas como ‘Xaxão’ – tem 20 anos, todos eles vividos neste bairro e com memória de verões com piscina à porta de casa. Ainda mal o sol começava a raiar, já ‘Xaxão’ estava acordado para ele próprio montar a piscina, com a ajuda do irmão mais velho. Eram quatro piscinas ao todo, nessa altura, como lembra. “Cada um montava a sua”, mas todos tinham permissão para nadar na que quisessem.

O complexo mais perto do bairro da Picheleira é o das Olaias, onde as entradas têm um custo de 20 euros por pessoa.

‘Xaxão’ (à direita) ao lado do amigo António Capela, na Casa da Juventude, onde são hoje monitores. Foto: Inês Leote

“Uma coisa que acontece muito nestes bairros é: surge uma ideia de um fulano – é funcional, não incomoda ninguém, os miúdos gostam, os pais fazem tudo para agradar ao próximo -, olhamos para o lado e já estão outros a fazer também,” diz Rita Moura, 33 anos, atualmente coordenadora pedagógica da Casa da Juventude do bairro, e que vê “esta moda” como recente, “com cerca de dez anos”. Porque enquanto ela crescia no bairro a moda era outra, “as mangueiradas, os balões de água”. Sem imaginar que piscinas ou tanques são, afinal, tradição adotada dos bairros de onde os pais e avós foram realojados.

Rita Moura, coordenadora pedagógica da Casa da Juventude do bairro da Picheleira. Foto: Inês Leote

Dizem que é história antiga. Só se trocou o chão áspero de pedra pelo plástico macio e azul, porque, de resto, combater o calor com água à porta de casa sempre foi tradição nos bairros sociais. Antes, em tanques e com baldes. Mais tarde, com mangueiras. Agora, com piscinas desmontáveis.

A confirmação vem de Rita, uma outra, moradora no ‘bairro Branco’ (oficialmente designado bairro Carlos Botelho, no Beato), a uns metros de distância dos prédios de Ferdinando, Rita Moura e ‘Xaxão’.

“Ali nas barracas” – aponta para um terreno vizinho agora abandonado – “era o tanque que nós usávamos”, no bairro Casal do Pinto. “No nosso tempo, não brincávamos como eles, brincávamos com areia, baldes, terra.” Terra e água. “Brinca-se com o que se tem, no meio das dificuldades”, diz Rita, que agora leva os cinco filhos para a piscina junto à arcada que abriga a casa da irmã, no novo bairro.

“Aqui [no bairro da Picheleira], temos realmente famílias muito carenciadas, muito numerosas e para quem uma simples ida à praia não é possível”

Rita Moura, coordenadora na Casa da Juventude
Rita, mãe de 5 crianças, moradora no bairro Branco, lembra os dias de calor passados em tanques de pedra nos antigos bairros de Lisboa. Foto: Inês Leote

Com seis irmãos, não fosse a Casa da Juventude do bairro e ‘Xaxão’ também “não ia a tanto lado”. Pelas fracas possibilidades financeiras dos pais, as férias começaram na compra da piscina de rua. Sem uma piscina municipal perto nem acesso a um complexo de água de forma económica, a realidade de ‘Xaxão’ multiplica-se pela vasta maioria das famílias do bairro.

O complexo mais perto é o das Olaias, onde as entradas têm um custo de 20 euros por pessoa. “Mesmo que seja uma família de duas pessoas, estamos a falar de 40 euros. Num orçamento normal já faz um grande peso, mas aqui temos realmente famílias muito carenciadas, muito numerosas e para quem uma simples ida à praia não é possível”, lembra Rita Moura.

Repensar o lugar dos carros

As alternativas passam por integrar as atividades da Casa da Juventude, com a qual vão tendo idas à praia e às piscinas de Santarém – aquelas de que Ferdinando tanto gosta. Ou fazer do passeio ou de um lugar de estacionamento o lugar das férias de verão.

No ‘bairro Branco’, a tradição repete-se. Chegam a ser sete piscinas ao longo de todo o bairro. As mais comuns são aquelas de menor porte, para os mais pequenos. A de Iuri é a maior.

Iuri é dono da maior piscina no bairro Branco, na qual deixa entrar toda a gente. Foto: Inês Leote

Lá está ela, estendida debaixo de um para-sol de rede improvisado. Neste dia, a água estava serena. Não havia salpicos, não se ouviam as “chapas”, porque o vento era mais forte do que o sol e intimidou os banhistas. Mas Iuri Ramos, 16 anos, deixa-a estendida, para quem quiser entrar. “Podem entrar todos. Não consigo ver uma criança fora, a olhar para a piscina. Há pessoas que não têm condições e mais vale, às vezes, armar uma piscina. Já viu o que é, agora no verão, com estas temperaturas, levar estas crianças para a praia? Vai gastar muito dinheiro. Aqui, gasta-se menos e fica-se em família.”

Despejos no bairro Carlos Botelho
Amandine Bouillet, coordenadora na associação Viver Melhor no Beato. Foto: Catarina Reis

Chegam a ser 14 crianças numa só piscina, lembra Amandine Bouillet, coordenadora na associação Viver Melhor no Beato, uma das associações que mais tem prestado apoio à comunidade do bairro Carlos Botelho. “Os pais também convivem à volta da piscina, é sempre um momento simpático para as famílias.”

Os mais pequenos banham-se tanto quanto podem e molham a terra batida que um bulldozer escava cada vez mais, ali no terreno ao lado. As obras que se avizinham não lhes seguem a vontade de ter um espaço para matar o calor do verão. Eles, vedados por casas inacabadas, com azulejos já fora do sítio, e numa piscina que só pode ser de plástico e no lugar de um carro.

Por isso é que têm de ser montadas clandestinamente. Ali, nunca deu problemas, diz Amandine. Mas a tradição acabou recolhida pela polícia municipal no bairro da Portela de Carnaxide, em Oeiras, depois de os moradores terem erguido as piscinas domésticas no parque de estacionamento, na rua Dr. Alberto Pinheiro Torres.

Na rua Dr. Alberto Pinheiro Torres, no bairro da Portela de Carnaxide, Oeiras. Foto: MC Somsen

A tradição que chegou a Nova Iorque

Nem só em Lisboa se contam piscinas nas ruas. Em 2020, no primeiro verão de pandemia de covid-19, o dono de um prédio no bairro de Washington Heights, em Manhattan, Nova Iorque, decidiu fazer face à onda de calor que os EUA atravessavam com uma piscina de plástico em frente à habitação, para usufruto dos vizinhos.

A história foi contada no The Wall Street Journal, onde se dá conta de que “desde que ele abriu a piscina para os vizinhos, a festa não parou, repleta de pessoas a descansar em cadeiras dobráveis ​​ou a trazer uma panela de arroz e feijão para um jantar pós-natação”.

A longa fila para acesso ao balneário municipal, em 1901, em Rivington Street. Foto: New York City Department of Parks and Recreation

Isto numa cidade que fez dos velhos balneários piscinas públicas. O The New York Times lembra o início dos tempos, em que a Nova Iorque inaugurou o primeiro balneário municipal, em 1901, em Rivington Street. “Uma casa de banhos que se tornou tão cobiçada que durante uma onda de calor fatal alguns anos depois, um pequeno tumulto eclodiu numa longa fila lá”, lê-se.

Parte destes balneários surgidos na época estão hoje a funcionar na forma de piscinas.

Depois, vieram o que o jornal norte-americano chama de “banheiras flutuantes”, nada mais que “estruturas retangulares empoleiradas no topo de pontões nos rios Hudson ou East” – extintas depois na década de 1920 “por razões de saneamento”.

Piscina suspensa na 96th Street, Nova Iorque. Foto: New York City Department of Parks and Recreation

Até que, nos anos 1960 e 1970, surgem as piscinas portáteis, possíveis de rebocar de um lugar para outro. Estas estavam especificamente “destinadas a proporcionar alívio aos bairros que, de outra forma, não teriam acesso a instalações para vencer o calor do verão”. Só que, ao contrário do que acontece nos bairros sociais de Lisboa, estas eram de metal.

Chegaram a ser 70 em Nova Iorque, hoje há 18 e, em 2017, apenas uma piscina não era já fixa – a chamada Floating Pool Lady.

Com a vaga de calor que volta agora a assaltar Lisboa, talvez o pequeno Ferdinando esteja já a montar a sua piscina. E Iuri a receber as crianças na dele. Mas, este ano, as piscinas foram mais do que divertimento no ‘bairro Branco’: contam os moradores que as piscinas já salvaram algumas famílias que ficaram sem água devido a uma falha nas obras que acontecem lá mesmo ao lado e que os fez ficar sem água em casa.

Agarraram num balde e a tradição salvou o dia.

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Catarina Reis

Nascida no Porto, Valongo, em 1995, foi adotada por Lisboa para estagiar no jornal Público. Um ano depois, entrou na redação do Diário de Notícias, onde escreveu sobretudo na área da Educação, na qual encheu o papel e o site de notícias todos os dias. No DN, investigou sobre o antigo Casal Ventoso e valeu-lhe o Prémio Direitos Humanos & Integração da UNESCO, em 2020. Ajudou a fundar a Mensagem de Lisboa, onde é repórter e editora.

catarina.reis@amensagem.pt

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3 Comentários

  1. Muito obrigada pelas palavras, José!
    Espero vê-lo num dos nossos eventos, um dia.
    Até breve!

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