O clima mudou. Tapetes castanhos de folhas caídas das árvores estendem-se pela cidade. Dizem que é o outono a chegar mais cedo, mas é o verão que os estudos projetam para 2070 a antecipar-se. A esta antecipação chamamos por vezes de “bom tempo”. Aliviamos a roupa, refugiamo-nos em edifícios, ligamos o ar condicionado ou acorremos à água fria do Atlântico.

Escapamos porque nos movemos e manipulamos ambientes. Até certo ponto. Afinal, o nosso meio como o conhecemos depende, entre outros fatores, da vegetação, e uma árvore não pode correr para a sombra, ela é a própria sombra.

Com sombras cansadas e caídas, urge refletir e agir: o que significam as alterações climáticas para a cidade e a sua vegetação, que transformações ocorrerão na paisagem urbana, como se gere a água e como cuidamos dos que vivem, mas não se movem?

1. O clima de Lisboa já mudou

“O clima do Norte de África está a instalar-se a sul do Tejo, as alterações climáticas estão aqui; não têm nem seguem fronteiras administrativas”, explica João Tiago Carapau, engenheiro agrónomo e especialista em planeamento do território envolvido na coordenação de projetos que preparam o país para as alterações climáticas, como o Plano Metropolitano de Adaptação às Alterações Climáticas da Área Metropolitana de Lisboa (PMAAC-AML).

Tempo e clima são conceitos distintos. O primeiro dá conta do que observamos ao sair à rua, o segundo implica a análise de variáveis climáticas por um período contínuo de 30 anos.

João Tiago Carapau é engenheiro agrónomo e especialista em planeamento do território e está envolvido na coordenação de projetos que preparam o país para as alterações climáticas como o PMAAC-AML. Foto: D.R.

E já sabemos o que isso significa para Lisboa: “Entre 1971 e 2016 foi identificada uma tendência de aumento da temperatura média anual de 0,23ºC/década, o que se traduziu num aumento acumulado superior a 1ºC; mais quatro noites tropicais/década, o que significa mais 18 dias com noites tropicais; mais 0,8 onda de calor/década, o que já ascende a três ondas de calor face ao padrão”.

“As projeções dos anos 1970/80, tidas na altura como alarmistas, são hoje, afinal, conservadoras” – é o alerta dos mais recentes trabalhos, quer o PMAAC-AML, quer os liderados por instituições académicas como o Instituto de Geografia e Ordenamento do Território (IGOT) e a Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, assim como os da Câmara Municipal de Lisboa.

A temperatura subiu mais do que o esperado, a precipitação reduziu mais do que o previsto e as ondas de calor, tal como as cheias urbanas – que se devem a regimes torrenciais muito concentrados – são um verdadeiro desafio à saúde e qualidade de vida de quem habita e visita a cidade, assim como ao planeamento da mesma.

Ainda segundo o PMAAC-AML, o cenário mais otimista, designado por RCP 4.5, e em linha com o Acordo de Paris de manutenção do aumento da temperatura média até 1,5ºC, prevê um acréscimo de mais 10 dias em ondas de calor até 2070, na área metropolitana de Lisboa. No cenário mais gravoso, designado por RCP 8.5, e conhecido também como business as usual, se nada fizermos, esse acréscimo passa para 23 dias.

Infelizmente, alguns critérios previstos para 2070, como a subida da temperatura média e do número de dias quentes já são uma realidade – a validar na próxima série climática.

O “outono estival” e o “assarmos ao sol” deriva essencialmente das ondas de calor, fenómeno que se traduz da seguinte forma: “Um intervalo de pelo menos 6 dias consecutivos em que a temperatura máxima diária é superior em 5ºC em relação ao valor médio diário no período de referência.”

E atinge todos os seres.

leia aqui o segundo artigo desta série:

2. O “outono” das árvores urbanas, explicado por quem as trata

Rui Tujeira é um engenheiro florestal e cirurgião de árvores. Este termo, emprestado dos ingleses e franceses há cerca de 20 anos, designa aquele que cuida das árvores de um modo minucioso e sensível, cirúrgico até. Uma novidade na altura, pois a maioria das podas eram impiedosas. “Opera” árvores pelo país inteiro.

Em Lisboa, trabalha essencialmente as ruas de Campo de Ourique e do Parque das Nações, fazendo o que se designa de “Visual Tree Assessment”, uma metodologia estabelecida a nível internacional que consiste na inspeção visual, delimitando um acompanhamento para as mesmas a vários anos.

Rui Tujeira é engenheiro florestal e cirurgião de árvores e explica por que é que as folhas também caem no verão. Foto: D.R.

As árvores em meio urbano estão longe das condições do meio natural, onde os ataques são incipientes e suportados pelo ecossistema. Acontece o que jamais aconteceria numa floresta, desafiando exigências e capacidades: “Poluição, podas, limitação do solo disponível, calor irradiado pelo asfalto e edifícios, fachadas espelhadas que refletem para as copas e as caldeiras diminutas para poupar espaço”, enumera Rui.

Quando todos estes fatores se aliam a uma onda de calor, o funcionamento das árvores é severamente comprometido.

Rui oferece uma explicação muito simples do modus operandi de uma árvore: “Imagine-se que as folhas estão ligadas às raízes através de micro tubos, que fazem subir a seiva até às folhas. Quando a temperatura de base é alta, a água tende a evaporar-se pelas folhas. Se evapora, há que enviar mais seiva do ramo para a folha, deixando um espaço vazio. Há um momento em que a seiva do tronco migra para os ramos e a que está na raiz para o tronco. São estas trocas de pressão que fazem com que a água e nutrientes cheguem às folhas.”

Ora, o ritmo do processo acima descrito, durante uma onda de calor, é acelerado de forma alucinante, levando a um grande stress e desidratação.

As raízes não aguentam a velocidade e a árvore tem de, literalmente, fazer contas à vida, autoregulando-se: “A árvore defende-se deixando cair folhas, de modo a equilibrar o balanço daquilo que as raízes conseguirão absorver em relação ao que vai transpirar”.

Este fenómeno não é novo e, embora com menor intensidade, já se manifestava em Lisboa: “O que está a acontecer é normal, para estas condições climatéricas, e vai acontecer sempre que se verificarem picos de calor prolongados, com índices de evaporação elevados e continuados”, confirma.

Na verdade, todas as árvores estão a fazer isto, os plátanos ficam em evidência porque são “das árvores com uma taxa de evaporação superior, já que a superfície da folha é maior, portanto se perde mais água, tem de perder mais folhas do que uma árvore de folhas pequenas”, esclarece.

Mas começa a ser notório também em tílias, choupos e lódãos.

Apesar de ser uma resposta natural, deixa um alerta: “Quanto maior a quantidade de folhas uma árvore perde, sendo estas os painéis fotovoltaicos de uma árvore, menor a energia gerada, o que as deixa ainda mais fragilizadas. Uma árvore em stress é uma árvore apelativa para pragas. Muitos insetos, por exemplo, especializaram-se em detetar estas fragilidades, explorando-as”.

Uma vez que as alterações climáticas se combatem ao longo do tempo e os seres vivos respondem de forma imediata, o especialista considera que “não conseguiremos que as árvores acompanhem as alterações e, se forem expostas a isto ao longo de vários anos, a consequência é a morte”.

Deixa ainda claro que não se trata de um outono precoce: “No outono, à medida que a luz do dia diminui e a temperatura baixa, perde as folhas para entrar em dormência, deixando de precisar das folhas”.

3. A rega, solução milagrosa?

A rega ou intensificação da rega parecerá a solução evidente. Não é, porque apenas quantidades pouco razoáveis permitem hidratar árvores adultas.

Temos de retomar o funcionamento de uma árvore para compreender isto. Uma árvore, à medida que cresce em altura, tem uma atividade quase equivalente no subsolo, com um crescimento radicular profundo. As raízes penetram na terra em busca de sustentar uma estrutura maior, existindo também uma necessidade crescente de água e nutrientes. O que pouco se sabe é que apenas os capilares das raízes mais novas, logo mais profundas, têm capacidade de absorção: “à medida que uma árvore cresce, a zona de absorção afasta-se do tronco”.

Isto significa que uma rega, mesmo com grandes quantidades de água, num dia de calor pode não infiltrar o suficiente para hidratar a árvore, tendo apenas sido gasta água. A verdade é que as árvores adultas e estabelecidas, não devem carecer de rega: “A humidade dos solos em profundidade é muito superior do que a da superfície e, portanto, suficiente”.

O cenário muda totalmente quando estamos a falar de árvores recém-plantadas, que merecem a maior atenção e devem ser regadas “por inundação durante o período de transplantação, que varia entre os dois e os quatro anos”.

Desta forma, uma árvore tem mais probabilidades de se manter e vingar num horizonte de dezenas, idealmente centenas, de anos.

Há que fazê-lo a pensar a longo prazo, nas tão necessárias sombras do futuro e não só: “Investir no estabelecimento de uma jovem árvore é algo que também se vai recuperar em euros, em saúde e em termos sócio culturais e recreativos”.

Além disso, “é mais barato manter as jovens árvores do que deixar morrer e ter de fazer uma reposição, algo que custa centenas de euros ao erário público”.

A cidade de Barcelona, por exemplo, descreve a perda de folhas dos plátanos no verão há vários anos, com a agravante de estarem contaminados em grande escala pelo fungo inonotus rickii, como os nossos lódãos.

Nos últimos anos, além de diversificarem as espécies utilizadas, foram mais longe na gestão do arvoredo e da rega, tendo desenvolvido um simples sistema de cores, junto dos tutores, que é atualizado de acordo com o local, espécie e idade da árvore. Isto permite que se saibam as suas necessidades hídricas, facilmente interpretáveis e rastreáveis por quem faz a rega.

A rega, no primeiro ano, é feita semanalmente até ao primeiro verão. Depois de superada esta prova, até ao terceiro ano, é regada semanalmente durante o verão, a cada duas semanas na primavera e uma vez no outono e inverno. Estas regas são sempre abundantes, pela tal “inundação”.

4. Com que água se suprime as necessidades de rega?

Nesta fase, de acordo com João Tiago Carapau, a prioridade à utilização de águas reutilizadas para rega é total: “Há que investir rapidamente na instalação de redes separadas na cidade, mesmo com custos infraestruturais significativos iniciais, associados à construção dessas mesmas redes”.

A recuperação do investimento será breve, na medida em que aumenta as reservas de água potável, impedindo que os “consumidores urbanos, vejam aumentar o custo da água de forma não comportável socialmente”.

O lema do meio rural e o urbano fundiu-se: captar e armazenar água em condições.

No mundo rural, através de charcas e reservatórios.

No meio urbano, através de reservatórios que captam as águas das coberturas, como se faz, por exemplo em França e Itália, e a construção de lagoas, reservatórios e diques nos parques urbanos e outros espaços verdes. Em Espanha, já se criam inclusivamente bacias de retenção de águas nos nós das autoestradas.

Quanto à dessalinização e ao uso de água do mar para rega, não será algo viável, para já, pelos custos que acarreta e os elevados consumos de energia.

No entanto, não há dúvidas que num futuro não tão longínquo assim, pode ser a solução para assegurar o consumo humano: “É a forma de resolver a ausência de água doce, os israelitas já o fazem há vários anos, nas ilhas mais secas de Cabo Verde, há novas dessalinizadoras e, claro, no Porto Santo”, explica o especialista.

5. Podemos estar todos envolvidos no cuidado das árvores

A comunidade deve ser envolvida no processo de estabelecimento de uma jovem árvore, em colaboração com quem tem a responsabilidade. Rui Tujeira concorda que “é bom que os indivíduos possam fazer algo para ajudar, pois as árvores são de todos”.

Algo que se faz essencialmente com atenção às árvores que nos rodeiam, comunicação com as entidades responsáveis e água.

Apesar de ser preferível que alguém com competência possa verificar se o problema é falta de água ou alguma outra deficiência, isso não invalida que, enquanto uma resposta não chega, se tomem atitudes. Saber quando agir é fácil: “Se a forma das folhas aparenta pouco vigor, há uma elevada transparência da copa e existem ramos secos ou até fissuras na casca, merece atenção”.

Como devemos regar as árvores é que demoverá muitas boas intenções: “Do ponto de vista técnico, a rega ou se faz por inundação ou por um sistema de rega. Uma garrafa de água, por exemplo, não infiltrará no solo mais do que um centímetro. Se colocarmos pequenas quantidades muitas vezes, a água que colocámos pela primeira vez, já terá evaporado sem ter chegado à profundidade necessária. Colocar cinco, 10, 15 litros pontualmente é melhor do que um litro todos os dias”.

Na aplicação NaMinhaRuaLx é possível criar ocorrências relacionadas com árvores, com o subtema da plantação e da manutenção. Um ponto de partida para a comunicação sobre as árvores com o município, que, para os utilizadores, se tem revelado insuficiente. Mereceria a cidade um canal exclusivo para todos cuidarmos das árvores?

6. O que se fez em Tucson, no seco Arizona

Há quem diga que é o design que vai salvar o mundo. O certo é que existem formas simples e imediatas de aproveitar a água, que requerem pequenas mudanças. Um exemplo que tem inspirado está em Tucson, no seco estado do Arizona, nos EUA, onde um homem, Brad Lancaster, mudou uma realidade seca, desprovida de vegetação, sem recurso a água potável, apenas aproveitado a das chuvas.

Aos domingos, para não ser apanhado, corrigiu o design dos passeios, criando pequenos cursos de água que a guiam para caldeiras das árvores e depois por todo o jardim, irrigando a vegetação. As chuvas rápidas e abundantes, em vez de simplesmente escorrerem estrada abaixo, para os sistemas de drenagem, nutrem ruas e jardins comestíveis, com a água que o alcatrão fazia desperdiçar.

Apesar da longa espera pela chuva, percebeu que quando esta chegava, o importante era direcioná-la para os sítios certos, apenas com recurso à lei da gravidade, sem grandes sistemas hidráulicos. A teoria e técnica, aprendeu-a com Phiri Masek: “uma vez que a água infiltra no solo, o solo passa a ser o seu tanque”.

Aproveitar as formas e desenhos existentes, plantando e direcionando de acordo com o que a natureza dá, significa criar esponjas que são autênticos reservatórios. E isto é “‘plantar a chuva”. No caso de Phiri, porque devolviam ao terreno a água que usavam, tinham melhores colheitas e os poços sempre cheios – ao contrário dos vizinhos, que só extraiam sem repor.

Não é só o aproveitamento da água que mudou o paradigma, é deixarem as folhas no chão. Na sua Ted Talk brincou dizendo que “leaves”- folhas – têm este nome porque é suposto deixá-las – “leave them”. E é. Além de nutrirem os solos, protegem-nos do sol, estabilizam a temperatura e retêm humidade. Porque plantaram apenas espécies nativas, que se auto mantêm, os pássaros e insetos polinizadores da zona apareceram. As pessoas também começaram a circular mais, porque é mais fresco e agradável. E o inesperado aconteceu: o crime diminuiu com a presença nas ruas e a forte vivência em comunidade que se criou. 

Inicialmente, quando começaram a fazê-lo, este ato era considerado vandalismo. Após verificarem que funcionava realmente, dirigiram-se aos serviços municipais para partilhar a iniciativa. Agora, não só a legislação acompanha, como é obrigatório que as novas construções direcionem a água das chuvas para a vegetação.

Há muito para fazer, conjuntamente e em diálogo. Não sabemos se um dia seremos refugiados climáticos. Até lá, convém escutar o que foi o conselho dado a Brad Lancaster por Phiri: “Não podes partir, se partires vais plantar os mesmos problemas em todos os sítios para onde fores”. Em vez disso, plantou-se chuva.

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Leonardo Rodrigues

Leonardo Rodrigues

Nascido na Madeira, o seu coração ficou por Lisboa. Estudou comunicação na FCSH – UNL e fotografia no Cenjor. Depois de muitos ofícios, é a contar histórias que se sente bem. Acha que não existem histórias pequenas, anseiam é por ser bem contadas. Quando não está a escrever, é aprendiz de jardineiro. @leonismos no Twitter.

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