Queijo fresco, açúcar, gemas de ovos, farinha de trigo e canela. A simplicidade da queijada de Sintra esconde a grandeza de uma tradição de Portugal, uma receita com lugar especial no património gastronómico, afetivo e até literário português. Um doce que levou mais de um século para descer a serra e agora deixa nos lisboetas a certeza de que foi tempo de mais. E, justamente por isso, de que não há tempo a perder.

A funcionar desde outubro no cruzamento entre as ruas da Prata e da Conceição, a loja das Queijadas Finas de Sintra é um convite a entrar não só pela decoração vibrante na Baixa de Lisboa, mas por desde então ser o endereço lisboeta do doce pequeno nas dimensões, mas enorme nas pretensões de rivalizar com outro gigante da pastelaria portuguesa, o pastel de nata.

Leopoldina Jesus, a quarta geração de mulheres especialistas nas queijadas de Sintra: o sonho da mãe finalmente realizado. Foto: Líbia Florentino

“Não se trata de concorrência. Cada um pode ter o seu espaço”, contemporiza Leopoldina de Jesus, a responsável por dar continuidade à tradição que começou a ser escrita em 1903 pela sua bisavó, Eugénia de Jesus, quando a queijada passou a ser presença obrigatória nas feiras populares e corridas de touros de Sintra, antes de se transformar em mais um dos pontos turísticos para quem subia a serra.

A loja na Baixa de Lisboa era um sonho da mãe de Leopoldina, que assim como a bisavó, se chamava Eugénia. Um desejo materializado graças ao grupo Valor do Tempo (sócio da empresa que detém a Mensagem), que adicionou as queijadas de Sintra a outros ícones da gastronomia portuguesa sob a sua curadoria, como as sardinhas em conservas, os pastéis de bacalhau e o café servido na mítica esplanada d’A Brasileira do Chiado.

A funcionar desde outubro de 2021, no cruzamento entre as ruas da Prata e da Conceição, a loja das Queijadas Finas de Sintra passou a ter morada na cidade, além da serra, na Baixa de Lisboa. Foto: Líbia Florentino

As queijadas de Sintra compõem a lista de sobremesas portuguesas preparadas à base de queijos. Em A História dos Paladares (Prime Books), a investigadora Deana Barroqueiro divide a produção por região e enquadra a Queijada de Sintra como o principal exemplo de um doce desta natureza feito no litoral português.

O livro traz ainda uma citação que atualmente soa politicamente incorreta, mas que serve para ilustrar o peso de uma sobremesa como a queijada na tradicional mesa portuguesa: “A sobremesa sem queijo é como a moça bonita com falta de um olho”.

Uma personagem da literatura portuguesa

O grande mérito da bisavó de Leopoldina foi ter aberto os dois olhos para o potencial da queijada, que uma década antes de começar a ser produzida pela família, já havia adocicado as páginas do que seria um dos marcos da literatura portuguesa, polvilhando com farinha, açúcar e canela as entrelinhas de Os Maias, de Eça de Queiroz.

A citação que hoje serpenteia o teto adornado pelo lustre da loja na Baixa alude a uma cena passada num dos salões do Ramalhete, quando o personagem João da Ega chega de Sintra e encontra Carlos e Maria Eduarda a conversar, com o doce a pontuar um momento de tensão da trama:

“Ega ia largar atarandamente o embrulho, para apertar a mão que Maria Eduarda lhe estendia, corada e sorrindo. Mas o papel pardo, mal atado, desfez-se; e uma provisão fresca de queijadas de Sintra rolou, esmagando-se sobre as flores do tapete. Então todo o desembaraço findou através de uma risada alegre – enquanto o Ega, desolado, abria os braços sobre a ruína do seu doce.”

A menção ao embrulho nas linhas de Eça é uma boa deixa para citar uma das diferenças que marcam a recente viagem das queijadas de Sintra a Lisboa. A ocasião pediu uma “roupa” nova e a versão lisboeta tem a embalagem em tons dourados, em vez das letras a negro da casa-mãe. “Apesar dos detalhes da nova embalagem, mantêm-se o conteúdo original, inclusive com o nome da minha bisavó em destaque”, sublinha Leopoldina.

Visitar a loja na Baixa é uma oportunidade de perceber como a embalagem – já não atada por nós e, portanto, sem o risco de rolarem, como nas páginas de Os Maias – guarda uma forma especial de armazenamento, com as queijadas empilhadas aos pares, com as faces unidas, de forma a não se colarem umas às outras ao serem transportadas.

Antes da Baixa, o estádio da Luz

A cena no Ramalhete não é, porém, a única participação especial das queijadas nas centenas de páginas de Os Maias. Vez ou outra, o doce volta a ser citado, sempre como um elemento que condiciona um desejo. No capítulo VIII, é a vez de outro personagem, o amigo de Carlos, Cruges, durante uma visita a Sintra, ser perseguido pelo feitiço do doce, quando, convidado a ver a beleza do Palácio da Pena, não hesita:

— E eu tenho de comprar as queijadas, murmurou Cruges.

— Justamente!, exclamou Carlos. Tens ainda as queijadas; é necessário não perder tempo; a caminho!

Lisboetas e turistas de todo o mundo em Lisboa passaram a ter as queijadas de Sintra mais perto. Foto: Líbia Florentino.

O caminho da primeira incursão das queijadas de Sintra por Lisboa é um pouco anterior à abertura da loja da Baixa e uniu o doce ícone da serra a um símbolo do futebol lisboeta. “Há mais de uma década, passámos a vender as queijadas no Estádio da Luz”, conta Leopoldina, uma iniciativa que se mantém, embora em versão miniatura.

Leopoldina diz que a estratégia no estádio do Benfica ilustra a vocação da marca até então, de não investir numa loja própria, mas na revenda, fazendo distribuir o produto confecionado na fábrica em Mem Martins, que substituiu a cozinha da família na Travessa das Queijadeiras, e onde seis funcionários são responsáveis pela preparação de até 2 mil queijadas por dia.

Na fábrica de Mem Martins, confeccionam-se cerca de 2 mil queijadas por dia. Foto: Líbia Florentino.

Nesta perspetiva, a loja na Baixa de Lisboa marca a intenção de conquistar novos gostos. “As Queijadas Finas de Sintra são bastante conhecidas por quem vive em Sintra e na região, e também pelos turistas que nos visitam, especialmente pelos espanhóis e brasileiros”, explica Leopoldina. A expetativa é de que agora, no epicentro turístico da capital, lisboetas e turistas de todo o mundo saboreiem as queijadas de Sintra, eternizadas nas páginas escritas por Eça de Queiroz, e estas se juntem a Os Maias como um dos grandes prazeres da cultura portuguesa.


Álvaro Filho

Jornalista e escritor brasileiro, 51 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa. É autor de sete livros, dois deles com Lisboa como personagem, Alojamento Letal e O Mau Selvagem.

alvaro@amensagem.pt

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