Os olhos azuis de Michel parecem refletir o céu de Lisboa, enquanto ele pensa na pergunta. “Acho que se fosse hoje, faria tudo de novo e também ficaria aqui, com certeza”, responde o francês, que em 1979 veio de Paris para passar as férias e ficou. Após quatro décadas, o amor por Lisboa mantém-se intacto, assim como a paixão pela música e pela atividade que o tornou famoso em Portugal: o sapateado.

Aos 73 anos, a passada firme, a postura elegante e o omnipresente sorriso disfarçam o passar dos anos e Michel Rebiffe – ou apenas Michel, como é conhecido – ainda conserva o espírito pueril do menino que na adolescência fez ecoar as primeiras notas do acordeão do pai pelo saguão do Hotel Rouen, gerido pela família em Montparnasse, o boémio bairro da capital francesa.

“Era um pequeno hotel, com seis, sete quartos, um café, um restaurante e uma sala de bilhar”, lembra. A hotelaria era um negócio de família, passado do bisavô para o avô e depois para o pai. Porém, nem ele nem a irmã quiseram dar-lhe continuidade. E acabou vendido, há quase cinco décadas. Além das lembranças, Michel guardou o acordeão do pai.

Michel na janela da casa onde vive, em Campo de Ourique, desde que chegou a Lisboa, em 1979. “Viver em Lisboa é um Luxo.. Foto: Inês Leote

O sessentão instrumento de família, o velho Ranco Guglielmo, hoje reformado, repousa na sala da ampla casa que o músico divide com o ator João D’Ávila, em Campo de Ourique. O segundo acordeão que acompanhou Michel nos 42 anos de vida artística em Portugal é um modelo Cavagnolo, igualmente italiano, que também ja saiu de cena. E é este o ponto que nos traz à história de Michel.

Apesar da disposição, dos anos de ioga e de manter os mesmos 72 quilos de sempre, o corpo de Michel acusou os anos de estrada e os 14 quilos do instrumento já o impediam de tocar e sapatear ao mesmo tempo, a sua “originalidade”. “Estou com algumas limitações físicas”, explica o músico, tateando a coluna.

“Não tenho vergonha de dizer que tive problemas com dinheiro na pandemia”

Michel Rebiffe

A chegada do novo acordeão de Michel guarda uma história triste com um final feliz. A pandemia fechou os palcos e impediu-o de continuar com as aulas de sapateado. “Não tenho vergonha de dizer que tive problemas com dinheiro”, reconhece. A solidariedade dos amigos, entretanto, acabou por solucionar o problema.

Um crowdfunding realizado pela Companhia Maior – um grupo performativo dedicado aos artistas seniores, do qual Michel faz parte – arrecadou 5 mil euros para a aquisição do novo acordeão, um modelo Cooperativa L’Armonica, com a metade do peso do anterior. A quantia ainda permitirá que o antigo instrumento seja reformado para reaparecer em ocasiões especiais.

Como uma criança que acabou de receber um novo brinquedo, Michel empunha o acordeão e sapateia pelo jardim da casa. “É um modelo em segunda mão. Mas veio de um bom dono, foi muito bem tratado. O que é preciso agora é conhecê-lo melhor, pois um instrumento é como uma pessoa, cada um tem o seu temperamento. E isso leva tempo.”

O processo de reconhecimento tem-se dado durante as três horas diárias que o artista dedica à prática musical. “Não só no acordeão, mas também no piano.” A disciplina é espartana, sentado numa cadeira simples, não acolchoada, em frente à partitura. O segredo para não fustigar o corpo é diluir o tempo de treino durante o dia. “Toco um pouquinho, saio para tomar um café, volto, toco um pouquinho”, conta.

O precursor do sapateado em Portugal

As incursões ao café servem também para Michel circular pelo bairro onde sempre morou. “Viver em Lisboa é um luxo. É uma cidade bela e segura. Não falo apenas da segurança urbana, mas de que em Lisboa também não há o terror”, conta, referindo-se aos atentados que vez ou outra ocorrem na sua cidade natal. “É óbvio que muita coisa mudou na cidade. Porém, o que nunca muda é este tempo, esta luz.”  

Michel também contribuiu para que algumas coisas mudassem em Lisboa. Quando aqui chegou, era inimaginável um artista ganhar a vida com o sapateado e não é exagero dizer que o francês acabou por ser o precursor da performance. “Claro que toda a gente sabia o que era sapateado, mas apenas de ver nos filmes com Fred Astaire e Ginger Rogers”, diz.

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“Os espanhóis têm o seu sapateado, o flamenco, e da Irlanda vem o estilo que influenciou o sapateado na Inglaterra. Em Portugal, há algo semelhante, o fandango do Ribatejo, que mesmo assim é diferente, um sapateado que não evoluiu, como o fado evoluiu. Até hoje, continua a ser uma manifestação restrita e demasiado macho, que ainda não permite a presença de mulheres a dançar”, conta Michel.

Na Lisboa dos fins dos anos 1970, havia apenas um sítio para se praticar o sapateado, uma escola de dança no Bairro Alto, capitaneada pelo coreógrafo Mariano Franco. “Fui aluno dele por quase um ano, até que o Mariano infelizmente morreu. Então, pediram-me para continuar a dar as aulas em seu lugar e foi assim que tudo começou”, lembra.

Em paralelo às aulas, Michel apresentava-se na fervilhante ribalta lisboeta. “Havia uma grande variedade de teatros na Baixa, onde os artistas podiam apresentar-se em números de sketches ou de revista.” Ao perceber que o sapateado seria a sua assinatura artística, o músico, que também se exibia ao piano e acordeão, decidiu que era hora de se aperfeiçoar.

“Fui beber direto da fonte do sapateado, os Estados Unidos. Passei seis meses a estudar e trabalhar em Nova Iorque, Chicago e Saint Louis. Quando me senti seguro de que já havia aprendido o suficiente, voltei para Lisboa”, recorda.

A partir daí, a carreira de Michel descolou e além das aulas e das performances nos teatros lisboetas, somaram-se as digressões por Portugal e pelo mundo, em cruzeiros.

“Este jardim é formado por plantas que trouxe das digressões”, diz o músico, apontando para a pequena floresta, espalhada nos 50 metros quadrados do quintal, formada por cerejeiras, laranjeiras, palmeiras, tamareiras, medronheiros, entre outras espécies recolhidas em cada uma das paragens. “Neste sítio, sinto-me no campo. Estás a ver aquelas ali”, aponta Michel para uma série de vasos com minúsculas flores vermelhas. “Aquelas, trouxe de Lanzarote. São de solo vulcânico, mas se assentaram bem aqui.”

Aos poucos, a rotina volta ao normal

Michel deixou a rotina dos cruzeiros, das digressões constantes e da ribalta para assentar. Mas antes da pandemia, continuava trabalhar, apresentava-se em espetáculos pontuais e dava aulas e workshops de sapateado. Durante mais de duas décadas, também organizou um festival anual em Palmela, interrompido nos últimos dois anos.

“Chegámos a contar com 250 dançarinos de sapateado de todo o país no palco do teatro São João. Era lindo”, orgulha-se Michel, que espera retomar o evento em 2022. A pandemia, entretanto, continua a atrapalhar os seus planos. “Havia dois workshops esta semana em Almada que foram cancelados. E outros dois na próxima que provavelmente também serão”, lamenta.

“Continuo a viver cada dia de vida como se fosse uma vida inteira”

Michel Rebiffe
Foto: Inês Leote

A incerteza também impede o músico de cumprir a contrapartida do crowdfunding, um espetáculo com a presença de público, entre eles, os 130 apoiantes que financiaram a compra do novo acordeão. “Será uma apresentação com orquestra e bailarinos que estamos a ensaiar na Companhia Maior. A previsão era ser em fevereiro, mas a atual situação não nos deixa definir uma data e um local”, explica.

Aos poucos, porém, a rotina dá os primeiros sinais de normalizar. Michel retomou as três aprresentações semanais ao piano na Livraria Ler Devagar, na LX Factory, e as aulas de sapateado no Instituto de Formação, Investigação e Criação Teatral (IFICT), em Santa Apolónia. “Não fico triste, faz parte do processo. Continuo a viver cada dia de vida como se fosse uma vida inteira.”

Uma disposição que para além do carpem diem reflete-se noutros pequenos detalhes. Ao pedir que lhe envie o artigo por e-mail, Michel aponta num pedaço de papel um endereço formado por uma série de letras que não formam uma palavra legível. Na verdade, descobre-se depois, trata-se de um acrónimo. “São as iniciais em francês de vinagre de cidra e levedura de cerveja”, explica, revelando parte da receita da longevidade artística e do bom humor.


Álvaro Filho

Jornalista e escritor brasileiro, 51 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa. É autor de sete livros, dois deles com Lisboa como personagem, Alojamento Letal e O Mau Selvagem.

alvaro@amensagem.pt

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