“Se o dr. Frankenstein fosse arquiteto já teria feito, sem dúvida, muito trabalho em Lisboa”. Assim escreviam Alberto Castro Nunes e António Maria Braga no jornal O Independente de 24 de fevereiro de 1989. “A vaga de patchwork de fachadas antigas com interiores em betão não pára – é um novo movimento, o da arquitetura desmiolada.”

Cerca de trinta anos mais tarde, o “fachadismo”, nome um pouco crítico que se dá à técnica através da qual se reabilitam prédios antigos, mantendo-se apenas a fachada, continua a acontecer em Lisboa.

A mais recente onda são as mansardas de zinco – as antigas águas furtadas que eram feitas com telhas ou paredes e que agora se cobrem daquele material cinzento e que se espalham pela cidade. 

Muitos podem não ter reparado. Mas quem é habitualmente crítico destas inovações, reparou. Paulo Ferrero, do Fórum Cidadania Lx, cujas críticas às alterações arquitetónicas se tornaram uma constante, chamou a atenção para o assunto. E há uma maneira, segundo ele, de o problema não passar despercebido: “Estando no Cais do Sodré, olha-se para a colina e vê-se uma série de prédios cinzentos a adulterar a panorâmica da cidade”.

O surgimento do fachadismo

As mansardas surgem no seguimento do tal fachadismo, a técnica dos anos 60 para “reabilitação urbana com vista a manter as fachadas antigas”, como explicava a arquiteta francesa Nassima Iles no seu trabalho académico para a Universidade de Toulouse Le Façadisme: Conservation ou Destruction d’un Patrimoine Architectural et Urbain?, La Situation Portugaise. A ideia seria “preservar a imagem histórica [de um edifício] de forma a conservar a identidade urbana”.

O Fontana Park Design Hotel, em Picoas, é um exemplo das mansardas cizentas deste novo estilo de fachadismo. Foto: Orlando Almeida

O fachadismo começou por ser arma de agentes e promotores imobiliários cujo principal objetivo era satisfazer “a necessidade de espaço e as exigências contemporâneas de conforto” dos clientes, aumentando-se o volume dos edifícios, ao mesmo tempo que se mantinham as suas velhas fachadas. Foi incentivado pela própria Câmara Municipal, nos anos de 1990, no sentido de ajudar a revitalizar uma cidade parada no tempo e nas rendas antigas. Não escapou a críticas que se prolongam até hoje: tal como Iles questionava, poderia o fachadismo ser considerado uma prática de “salvaguarda e reabilitação do património” ou antes uma forma de destruição?

Se, durante anos, o material utilizado para estas reabilitação era sobretudo o vidro, mais recentemente temos visto Lisboa ser invadida pelas mansardas de zinco. “Mudou-se para um material que se considerou mais adequado a acrescentos volumétricos, como o zinco ou a ardósia”, explica o arquiteto Carlos Machado e Moura, investigador da Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto. Mas isso tem uma consequência: a criação, ou simulação, de mansardas, tradição “nada portuguesa”, frisa o arquiteto, que as remete para um universo parisiense mais luxuoso. Em Portugal e em Lisboa, sobretudo, eram as velhas águas furtadas.

As mansardas tradicionais de Paris. Foto: DR

Popularizadas em Paris por François Mansart e Jules Hardoin-Mansart no século XVII, as mansardas tornaram-se ainda mais proeminentes em 1859, com os regulamentos do presidente da Câmara mais revolucionário da cidade, Georges-Eugène Haussmann. As Exposições Universais, em 1855 e 1867, permitiram a sua disseminação pelo mundo, promovendo a mansarda como um símbolo da modernidade – mesmo em Lisboa.

Em Lisboa, já em 1758, nos desenhos para as fachadas da Baixa Pombalina depois do terramoto, feitos por Eugénio dos Santos, previam-se algumas soluções de mansarda, e vêem-se algumas ainda na cidade, embora o revestimento não fosse zinco mas outro metal, pintado, ou telha de canudo, tradicional, pregadas às ripas e fasquias devido à elevada inclinação. Há destas alterações de sótãos, substituídos por mansardas, nos edifícios lisboetas do centro da cidade, nos séculos XIX e XX. Só nos edifícios burgueses de influência francesa, nota Carlos Machado e Moura, se encontram mansardas à la Mansard.

O fachadismo é uma técnica de reabilitação urbana através da qual se mantêm as fachadas antigas dos edifícios. Para muitos especialistas, a sua disseminação levou à construção dos chamados “Frankenstein”. Hotel Vincci Liberdade, na Avenida da Liberdade. Foto: Orlando Almeida

Porquê então a construção recente das fachadas amansardadas, em zinco, quando de português estas têm tão pouco?

O arquiteto Machado e Moura escreveu sobre a moda das “mansardas”, já em 2017 no Jornal Arquitectos. Explica que este é “um tipo de cobertura que permite o aproveitamento do vão do telhado para um ou mais pisos habitáveis e que se encontra revestida na sua estrutura mais ligeira por ardósia ou zinco, o que a destaca formal e cromaticamente da fachada do edifício”.

Ou seja, de tão prática, a mansarda é hoje a solução mais utilizada para a reabilitação dos prédios históricos da cidade de Lisboa, e isso vê-se a olho nu.

Nos últimos anos, as intervenções de reabilitação na cidade de Lisboa têm transformado a mansarda em zinco camarinha numa verdadeira moda arquitectónica. Uma das chaves para o seu sucesso reside na escassa regulamentação. The Vintage Hotel & Spa. Foto: Orlando Almeida

Mas, como explica Carlos Machado e Moura, o que encontramos em muitos casos, em Lisboa, não são verdadeiras coberturas em mansarda, enquanto “aproveitamentos do vão do telhado”, mas antes novos pisos, equivalentes aos restantes, aos quais é dada uma imagem de acrescento, através do desenho dos vãos e do material de revestimento. É uma “solução falsa, a que podemos chamar fachadas amansardadas” – e entramos noutro nível de complexidade.

Modernidade ou economia?

Ou seja, a fachada mansardada é um outro desenvolvimento do já falado fachadismo: permite distinguir a parte nova da intervenção, e, até, segundo o arquiteto Machado e Moura, dar-lhe uma “linguagem de uma certa contemporaneidade que lhe permite fugir ao vernacular e ao ‘pastiche.’” Por outro lado, ao legislador, ou seja, à Câmara, “oferece a segurança de uma escolha aparentemente radicada na História, o que, à luz dos exemplos anteriores, permite a ilusão de uma intervenção ‘cuidadosa’ ou ‘suave’. E, para o público em geral, correspondem a um imaginário de luxo que lhes granjeia um notável sucesso”, explica o especialista.

Um sinal de modernidade ou uma enorme confusão?

Paulo Ferrero, do Cidadania LX, defende uma regulamentação mais exigente e restritiva na reabilitação de casas e edifícios.

Pontualmente algumas destas soluções poderão funcionar, defende o arquiteto do Porto. Já Paulo Ferrero, do Fórum Cidadania Lx, abomina a solução. Chama-lhe “moda maluca”. “É uma alteração da imagem da cidade, é uma nova moda de Paris”, diz. E cita Eduardo Souto de Moura, que se referiu às fachadas amansardadas como “autênticas cabeleiras”. “Há arquitetos que se recusam a fazer e que perdem clientes, e há arquitetos que se estão nas tintas para isso”, diz Paulo Ferrero, que defende que se travem estas ampliações através de regulamentação.

O que não acontece, segundo ele, porque embora muitas vezes, o interior dos edifícios a reabilitar seja aproveitável, é mais barato “deitar tudo abaixo do que preservar”. Então, abrem-se os telhados dos edifícios e espera-se que a chuva danifique o seu interior. E quanto a isto, Paulo não tem dúvidas: “Não há preocupação pela cidade. Por causa da pressão imobiliária, chegámos a um ponto descomunal. É um ataque aos edifícios que restam”.

Carlos Machado e Moura, arquiteto, não se revela tão radical quanto ao fachadismo.

Todo o fachadismo deve-se, segundo o arquiteto Machado e Moura, à sobreposição de uma questão económica – “querer aproveitar a capacidade construtiva de um edifício” – à patrimonial – “percebendo que há um determinado valor na pré-existência ou uma obrigatoriedade da sua manutenção” – e, até, à arquitetónica – “convencionou-se que tem de haver uma certa verdade construtiva, isto é, se faço uma intervenção nova, devo distinguir o que é novo do que é antigo”. Este último princípio, porém, pode facilmente ser mal interpretado, uma vez que, destruindo-se o interior do edifício e mantendo-se a fachada, estamos perante a redução a uma “máscara”, diz.

Ou um “Frankenstein”, como os autores do artigo crítico do jornal O Independente escreviam. “Um edifício composto com o corpo de um novo”, corrobora o arquiteto.

“Não pensem que isto é feito de qualquer maneira”, advertia-se no citado artigo, dos anos 80 .“Não é, não senhor. Há o respeito pelo património, que é muito bonito. Mantêm-se as fachadas – a do teatro todo novecentista, a da casa transmontana pombalina q.b. Mas giro, giro, é o que colocam logo atrás, aí um metro e tal recuado: uma nova fachada em vidro toda moderna. Entre elas (no buraco) plantas trepadeiras, flores, um luxo exótico a puxar ao tropical”, lê-se, numa referência à reabilitação de prédios no Chiado (o Teatro Ginásio e a Casa de Trás-os-Montes).

Carlos Machado e Moura não se revela tão radical. “Claro que tudo depende do sítio, do caso.” E reconhece que há exemplos felizes de duplicação, como é o caso do Palazzo Farnese, em Roma, iniciado por Antonio da Sangallo e depois acrescentado por Michelangelo.

Como era o Edifício Heron Castilho e como ficou depois da renovação. Fotos: DR

De facto, no seu trabalho académico, Nassima Iles estudou dois casos da cidade de Lisboa, chegando a diferentes conclusões em relação aos mesmos. São eles o edifício Heron Castilho, na rua Braamcamp, reabilitado pelos arquitetos Henrique Tavares Chicó, João Pedro Conceição Silva e Francisco Manuel Conceição Silva, e o Chiado, cuja recuperação urbana foi encabeçada por Álvaro Siza Vieira. Na sua ótica, enquanto as obras no Chiado respeitaram o lugar e os seus habitantes, o edifício “Heron Castilho” não se adaptou “ao ambiente e ao contexto urbano” em que está inserido.


Ana da Cunha

Nasceu no Porto, há 27 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.

ana.cunha@amensagem.pt

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5 Comentários

  1. Numa vaga ainda mais recente, algumas destas mansardas são cobertas com chapa de zinco de cor preta! Com o sol a bater nessa superfície imagino o calor que deve fazer.

  2. Os padrões arquitectónicos da CML são somente fachada. Perderam-se importantes interiores pombalinos em Lisboa esventrados pelo fachadismo.
    O edificio Heron é de um mau americano que me envergonha.

  3. Óptimo artigo. Só queria acrescentar que o mau gosto, a ganância e falta do mais elementar bom senso é de Norte a Sul.
    Há subúrbios de Lisboa “caríssimos” totalmente desfigurados com marquises, PVC, estores medíocres, portas medonhas. A 10 minutos de Lisboa há prédios de 12 pisos onde ver o exterior de um apartamento como foi originalmente projectado e construído chega a “destoar” por ser o único que manteve tudo original. Pronto eu digo: estou a falar de Carnaxide.

  4. São tão “lindas” as trapeiras!!!
    O problema é que se esquecem dos problemas das infiltrações que elas originam.
    Bendito Mansard que começou por modernizar Paris já no séc XVIII!
    As fotos que este artigo mostra não são mansardas, mas aumentos de pisos em edifícios, sem o mínimo respeito pela arquitetura anterior dos mesmos.
    O que eu peço aos arquiteto cá da terrinha é que inventem uma maneira esteticamemte barata e criativa de acabarem de vez com as trapeiras – tão “very typical” – que mais parecem guaritas nos nossos velhos telhados nacionais.

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