No número 5 da Rua Luís Piçarra, na Alta de Lisboa, aquilo que há momentos se preenchia com as vozes agudas e infantis de crianças dos bairros em redor é agora devolvido ao silêncio. Lá dentro, Eupremio Scarpa arruma peças de Lego sem par e uma escultura que ficou por concluir.

Quem olha para este homem de 52 anos, mergulhado nesta tranquilidade, não imagina que a sua vida se fez, e faz, de forma atribulada: das voltas pelo mundo aos 200 concertos de rock num só ano. E que aqui chegou, para ser também um furacão na vida de jovens desfavorecidos. Até através do futebol, de que tanto se fala por estes dias.

Tal como a seleção de futebol do país onde nasceu, que chegou à final deste campeonato europeu, Eupremio partiu daquela bota plantada no Mediterrânio para viajar Europa fora e rematar no velho continente.

Ouça aqui a conversa com Eupremio Scarpa, para conhecer mais sobre a sua vida.
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O menino nascido num bairro social que perdeu a paixão pelo seu país

Contar a história de Eupremio é viajar até Milão, onde nasceu e cresceu. Mais precisamente ao bairro de Navigli de que nos fala, onde está a célebre Porta Ticinese. Eupremio viveu paredes meias com famílias pobres de destinos precários. Muitas tinham na droga o ponto de fuga. Navigli era um bairro de habitação social – agora ocupado por comércio –, embora a casa de Eupremio não fosse dessa natureza. Nuns humildes 40 metros quadrados, vivia com a mãe (siciliana) e o irmão – o pai morrera tinha ele sete anos.

Eupremio com os pais, em Milão, onde nasceu e cresceu. A família morava numa rua cercada por habitação social.

A droga viu-a pela primeira vez na sua rua. A infância eclodiu com “os piores anos do consumo de heroína em Milão”: sempre que ia jogar à bola, lá se confrontava com a imagem de sempre, jovens e homens caducos, sentados ou deitados em cantos, corpos já confundidos com a paisagem original do bairro. Por isso, cedo as crianças destes lotes perderam o jardim e os campos de futebol, reféns do medo dos pais. Brincar na rua já só parecia permitido na província de Lecce, numa aldeia “no salto da bota”, onde morava a família paterna e onde ele passava as férias.

A imagem que tinha do seu bairro não era a mais feliz, mas aquilo em que depois se tornou roubou-lhe definitivamente a paixão pela sua cidade e pelo seu país. O bairro foi tomado pela modernização e globalização de Milão – isto depois de ter ganho laivos de contracultura, um tanto “anarquistas”.

Com a mãe, profundamente religiosa, Eupremio aprendeu a relativizar: “Há sempre alguém pior do que nós”. Por isso, fez da paciência uma arma, esperou e absorveu o que de melhor ainda poderia aprender por ali.

Com a mãe aprendeu que olhar o outro é a maior virtude e o único papel realmente importante na Terra. Em 1991, após a queda do estado da Albânia, milhares de albaneses acostaram, refugiados, a Itália e Eupremio foi obrigado a pôr o seu lugar em casa à disposição da mãe que queria dar teto a dois albaneses. Durante dois meses, viveu em casa de um amigo. E aprendeu mais uma lição de princípios e solidariedade.

Numa vida que haveria de ser feita de voluntariado pelo mundo, a primeira experiência que teve foi com a mãe, na paróquia à qual pertencia. Interrompeu apenas para se dedicar ao liceu clássico, pelo qual tanto ansiara: aos seis anos, já perguntava “o que é preciso fazer para chegar a professor”. Professor não se tornou, mas educador.

A paixão pela educação e pela História ganhou-a cedo. E foi no liceu que começou “o percurso de consciencialização de homem político, no sentido mais vasto da palavra”. Na hora de decidir o que fazer na vida, escolheu estudar Ciências Políticas – onde aprendia sobre tudo o que o fascinava.

“Sabendo já que era um curso que não me levava para nada”, confessa. “A verdade é que sabia um pouco de tudo, mas não estava especializado em nada.”

Foi ao rock-punk-metal que entregou grande parte do início da sua vida adulta. Num ano, correu 200 concertos, sobretudo “aqueles aos quais ninguém ia” – gostava de estar fora do rebanho.

Eupremio nunca foi menino de responder a estereótipos, não era de polo e gravata – que trocava facilmente por uma t-shirt dos Iron Maiden. Encontrou no rock, punk e metal a sua diferença – gostava de conhecer o que poucos pareciam esforçar-se por fazê-lo.

Assim que começou a trabalhar, dividia as despesas entre as propinas da faculdade e os concertos. Entre 1992 e 1993, diz, chegou a ir a 200.

Do sonho brasileiro a uma mesa de pingue-pongue na zona J de Chelas

Acabou por cansar-se e o grupo que formara, pela diferença, tornou-se demasiado banal. Um rebanho – e ele nunca quis pertencer a um. Mais tarde, a paixão pelo rock e o punk iria ajudá-lo a mudar a vida de jovens de bairros sociais.

Das t-shirts temáticas e dos casacos de ganga em concertos, deu o salto para o voluntariado, ao qual passou a dedicar a sua vida e investimento. Primeiro, trabalhou junto de uma casa de acolhimento temporário – onde estavam crianças retiradas aos pais pelo tribunal. Ali, teve “um clique”: “Eu quero fazer isto, quero ser educador”. Despertou-o a consciência da “fragilidade das pessoas” e “sentir que mesmo um boémio [como ele] poderia fazer a diferença na pessoa que estava à sua frente”.

Sabe que fez, mas a resposta só chegou quatro anos depois: num estágio num estabelecimento prisional para menores, em Milão, encontrou um desses rapazes com quem conviveu. “Uma criança problemática” – que o ameaçou, inclusive –, atrás das grades. Este rapaz disse-lhe “que tinha sido como um pai” para ele. O que Eupremio diz ser sintomático do que se passa nos bairros sociais: “estou sempre a trabalhar em contextos em que não há figura masculina de referência”.

E, quando existe, “não é positiva”.

Uma experiência de voluntariado numa casa de acolhimento traçaram o seu ofício: Eupremio estava certo de que tinha nascido para ser educador. Largou o curso em Ciências Políticas e seguiu o sonho. O resultado espalhou-o pelo mundo.

Com o curso em Ciências Políticas estagnado, em 1995, decide levar a vontade a sério e formar-se como educador. Enquanto isso, envolveu-se em projetos de educação social que diz terem sido pioneiros no seu país, através da aplicação da pedagogia nas ruas de diferentes bairros sociais, aquilo a que chamou mesmo de “educação de rua”. Lembra que passou seis meses a observar a vivência dos jovens num bairro, para depois poder ajudá-los, e que o tempo é subvalorizado na intervenção social.

Findo o curso, os velhos fantasmas de volta: decidiu que Itália já não era o país onde queria ter morada. “Porque tinha perdido muitos estímulos culturais, politicamente Milão estava muito fraco”, sob a alçada do governo de Silvio Berlusconi. “E eu precisava de estímulos”.

Partiu. Esteve seis semanas em voluntariado numa casa de acolhimento na Índia. Dois anos depois, alarga a viagem até ao Brasil, onde passou um mês a trabalhar com “crianças de rua”.

Foi em terras do samba que se apaixonou pela capoeira, arte que levou de volta para Itália, ao formar um grupo alternativo desta modalidade, “sem mestres”. Isto sem imaginar que, com isso, estava apenas a um passo de Lisboa. “O nosso professor era daqui, o Cláudio, dava aulas no Chapitô. E, a cada dois meses, ele ia dar-nos aulas [a Itália].” O professor sabia da sua vontade de sair do país e lançou-lhe a proposta de cobrir uma vaga como animador num bairro social da capital portuguesa. Destino: a conhecida zona J, em Chelas.

A capoeira foi o passaporte para Portugal: depois de se apaixonar pela modalidade, formou um grupo alternativo em Itália e conheceu a pessoa que lhe falaria de Lisboa – e Chelas – pela primeira vez.

Até então, Portugal era apenas “o país que falava a mesma língua que o Brasil” e um ponto de passagem para lá chegar, ao lugar que lhe deu a arte de rufar no tabaque – o instrumento de percussão utilizado na capoeira.

Eupremio seguiu caminho, por achar estar mais perto do sonho brasileiro. Arrancou de Milão de carro e chegou ao final de dois dias, a 23 de setembro de 2001 a Portugal. Lembra-se da coincidência de ter sido barrado à entrada de Lisboa – celebrava-se o dia sem carros na cidade.

Assim que aterrou em Chelas, tudo o que tinha era uma sala vazia e uma mesa de ping-pong. Mas quem disse que era preciso mais? Com pouco, Eupremio sempre fez muito. E foi com a mesa de ping-pong que decidiu começar a espicaçar os jovens da zona J, acomodados à rotina do bairro.

“Devagarinho, começaram a chegar os miúdos”. Com uma mesa, duas raquetes, uma rede e uma bola, motivou-os a ganharem mentalidade de batalhadores – ele, que era um às nesta modalidade, nunca os deixou ganhar. Objetivo: fomentar neles a vontade de, um dia, alguém o bater em jogo.

Um dia, um rapaz, que jurava a pés juntos não saber jogar, lutou até à vitória. E venceu. “Nunca vi um puto de 11 anos dar um salto tão grande”, lembra o italiano. “Bati o Eupremio! Bati o Eupremio!”, ouviu-se gritar nas ruas nesse dia.

“Acima de tudo, o que ele percebeu foi: ‘Eu bati o Eupremio, que sabe jogar; não bati o Eupremio por me ter deixado ganhar’”.

Em Chelas, na Zona J, Eupremio não reclamou a falta de recursos: com pouco, foi capaz de fazer muito.

Desde então, foi “saltitando” entre trabalhos. Esteve no bairo de Outurela-Portela e dos Navegadores – um bairro com uma estrutura “em caracol”, com um ambiente “pesado” -, na Fundação Aga Khan (em 2006, durante três anos). Atualmente, trabalha na Associação de Residentes da Alta de Lisboa (ARAL), afeto ao projeto Armazém do Saber, e foi um dos arquitetos do Centro Periférico, uma iniciativa sobre a qual a Mensagem escreveu.

Haiti e um amor na Guiné Bissau

Lisboa estava definitivamente a ganhar lugar nos seus planos. Mas Eupremio “ainda queria viajar” e sair da Europa, ir a África, como há muito sonhava. Em 2010, uma catástrofe empurra-o para mais uma viagem – vai ao Haiti, como voluntário, três meses depois do terramoto que tirou a vida a cerca de 200 mil pessoas, para implementar um projeto numa aldeia, com a criação de hortas comunitárias e distribuição de material escolar.

Este foi o desafio a que mais temeu não ser capaz de corresponder, confessa. Quando chegou, viu “um país de tendas”. O Haiti era um manto sem qualquer rasto de betão ou tijolo, um país sem uma única casa.

Quando pensa nas suas viagens pelo mundo, a Índia é até hoje o lugar que mais marcas lhe deixou. No lugar onde a pobreza atinge “todos os estereótipos”, diz ter descoberto “que mães partiam ossos aos filhos, faziam deles deficientes, para que fossem pedir dinheiro na rua. Ainda fico arrepiado quando falo disto.”

Em 2011, e durante dois anos, Guiné-Bissau. De lá, trouxe a experiência de viver sem água fresca, mas um amor que diz ser para a vida: Mariama, que largou o país para se mudar para Lisboa com ele.

Reacender a força social dos clubes de futebol lisboetas

Foi um interregno profissional que conduziu ao nascimento de novo fascínio na sua vida: os clubes e coletivos de futebol amador de Lisboa. Sem trabalho, Eupremio passava horas a folhear livros na biblioteca: “Gostava de história, gostava de futebol e, vendo um livro, achei que era giro organizar um roteiro sobre o futebol em Lisboa. Falei com outros dois cromos da bola” – e aconteceu.

Eupremio com a bandeira do Inter de Milão, o seu clube italiano de eleição.

Juntos, decidiram a sua missão: lembrar que “o futebol não é só isto” a que nos habituámos nestes últimos tempos. As coletividades tiveram, em tempos, um papel social incomparável na cidade e “isso perdeu-se”.

“O Tunelense tinha balneários e servia as pessoas da Musgueira, que não tinham água corrente. E hoje os próprios clubes não têm a noção da sua importância. E é isto que nós queremos dizer: vocês têm um papel como mais ninguém. É importante que continuem esse trabalho dentro do bairro.”

Esta vontade culminou na fundação da Associação Desportiva Recreativa Relâmpago, “o mais recente clube de Lisboa” (formalizado apenas há um mês) e uma ideia que nasceu há dois anos entre amigos amantes de coletividades: “Que seja uma [coletividade] que sirva de estímulo às outras que ainda existem para se reapropriarem dessa presença social”.

Entretanto, Eupremio e os seus amigos foram chamados para “tratar da área de Desporto” do Arquivo EPHEMERA do historiador Pacheco Pereira. E, em agosto, Eupremio Scarpa prepara-se para ver impresso o seu nome num livro dedicado à história do clube – e bairro, porque “um não existe sem o outro” – de São Domingos, em Setúbal.

O clube que Eupremio ajudou a fundar é um manifesto perante todas as coletividades de Lisboa.

O desporto é apenas uma expansão da mudança que quer fazer no mundo e em Lisboa, onde aprendeu que “os bairros não são as suas situações, são pessoas”. E é cada vez mais urgente ouvi-las.


Catarina Reis

Nascida no Porto, Valongo, em 1995, foi adotada por Lisboa para estagiar no jornal Público. Um ano depois, entrou na redação do Diário de Notícias, onde escreveu sobretudo na área da Educação, na qual encheu o papel e o site de notícias todos os dias. No DN, investigou sobre o antigo Casal Ventoso e valeu-lhe o Prémio Direitos Humanos & Integração da UNESCO, em 2020. Ajudou a fundar a Mensagem de Lisboa, onde é repórter e editora.

catarina.reis@amensagem.pt

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12 Comentários

  1. Olá. Tive o prazer de conhecer o Eupremio no bairro de Outurela Portela onde do nada ele estava a dar aulas de italiano no meio de outras atividades. Um educador de excelência que com pouco faz muito. Por onde passa muda algo na vida de alguém sobretudo dos jovens. Obrigada pela sua dedicação e determinação.

  2. O Euprémio é uma pessoa extraordinária. Conheci-o na Casa da Achada – Centro Mário Dionísio onde colabora em muitas actividades. É uma pessoa cheia de vida com quem se pode contar sempre.

  3. grande euprémio, abraço fraterno de outro ephemerense!
    luís

  4. Lindo, excelente. São histórias reais e exemplares de quem faz e que tanta vezes são invisíveis e mesmos ignorados. São casos como estes que são importantes de divulgar e valorizar.

  5. É louvável a vossa actividade de informação livre e responsável, engajada e apaixonada! A diversidade de temas abordados dão-nos outra visão da realidade. Bom trabalho!…

  6. Obrigada Ernani. É para isso que trabalhamos. A cidade é um mundo e há muito por descobrir. Já subscreve a nossa newsletter?

  7. Parabéns pelo vosso jornal! É um prazer ler estas noticias e conhecer Lisboa, habitada. Já estou a ler há quase três horas….vou para. Obrigada

  8. Um belo artigo sobre a Lisboa popular, a dos pobres, por isso meia clandestina e pouco cuidada. Parabéns.

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