Avanço do agronegócio ameaça igarapés e ribeirinhos no Pará

Reportagem: Letícia Klein

Ricos em biodiversidade, esses riachos fazem parte do modo de vida de comunidades tradicionais. O Índice de Impacto nas Águas da Amazônia (IIAA), desenvolvido pela Ambiental Media, apontou que 40% das microbacias do Tapajós estão altamente impactadas por ações humanas.

Depois de 13 anos, cientistas retornam a seus pontos de pesquisa no planalto santareno, no Pará, para avaliar a extensão dos impactos das ações humanas em igarapés, riachos considerados os berços dos grandes rios da Amazônia. O trabalho faz parte de uma pesquisa inédita.

“Não existem muitos estudos temporais na Amazônia, essa é uma lacuna de informação científica. Por isso, decidimos voltar para ver as trajetórias de mudança na paisagem e seus efeitos nos mesmos igarapés ”, diz a coordenadora do estudo, Cecília Gontijo Leal. 

Métodos modernos vão ajudar a entender os recentes fatores de estresse em 100 igarapés, entre Santarém e Paragominas, no projeto “Understanding and conserving tropical freshwater ecosystems” (Entendendo e conservando sistemas aquáticos tropicais). 

A previsão é que o trabalho seja finalizado em 2029, mas a ecóloga da Universidade de Lancaster, na Inglaterra, já percebe uma série de alterações no ambiente entre as duas visitas, como a conversão de pastos para a agricultura mecanizada. “Os igarapés são impactados por essas mudanças, que pioram a qualidade da água e alteram a fauna e a flora”, diz. 

As consequências ecoam nos rios maiores, já afetados por grandes obras, refletindo como um todo nas bacias hidrográficas, que, em alguns pontos da Amazônia, podem ter até 90% de seus corpos d’água compostos por igarapés. “Temos muito mais extensão de riachos de cabeceira do que rios maiores”, avalia a pesquisadora. Leal foi consultora científica da reportagem especial Aquazônia, da Ambiental, e é a principal autora do Índice de Impacto nas Águas da Amazônia (IIAA). Enquanto 20% das microbacias da bacia Amazônica no Brasil estão altamente impactadas, na bacia do Tapajós o percentual é de 40% (veja no mapa abaixo).

Lucro primeiro, estudos de impacto depois

A arqueóloga Anne Rapp Py-Daniel, professora da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), trabalha com a identificação da formação das comunidades quilombolas e indígenas na região de Santarém. A pesquisadora parte de relatos, memórias e vestígios de ocupação para reconstruir esse passado e para entender a identidade e a realidade atual.

“Ao longo das últimas três décadas, Santarém e outros municípios do Pará têm facilitado a vinda de empreendimentos relacionados ao plantio da soja”, afirma. “Esse incentivo tem se manifestado de várias maneiras: através de propostas de criação de portos (para soja e combustível) no lago do Maicá; pela alteração do plano diretor da cidade, que aumentou o tamanho das áreas propensas à agricultura; pela liberação de áreas para desmatamento no Planalto Santareno. Essas ações, focadas principalmente no setor econômico, têm sido realizadas sem avaliações prévias do impacto que é e será causado ao ambiente e às comunidades tradicionais”, conta a pesquisadora, que nos levou para ver alguns desses impactos de perto, na aldeia indígena Açaizal, em Santarém.

O cacique Josenildo dos Santos Cruz lembra que, desde a virada do século, diminuiu a vazão do igarapé que banha e nomeia a aldeia, além disso, a cor das águas mudou e lagoas secaram. “Tinha uma riqueza de peixes e muito jacaré. O igarapé não presta mais. Os espaços de lazer sumiram; castanheiras, pequizeiros e outras árvores foram derrubadas”.

As quatro aldeias Munduruku localizadas no Planalto Santareno – Açaizal, Amparador, Ipaupixuna e São Francisco da Cavada – estão cercadas por grandes lavouras. “A soja já está no quintal das pessoas”, diz Py-Daniel.

Agrotóxicos na água e no ar

Os campos de soja não afetam somente os povos indígenas, mas também as comunidades de agricultores familiares do planalto, nas comunidades de Portelinha da Terra Preta, Terra Preta dos Lúcios e Mojuí dos Pereiras. 

Maria Emília dos Reis Pinto, agricultora e artesã, nos guia por uma estrada de terra que passa sobre alguns trechos de igarapés; em nenhum deles a água é transparente, característica comum a igarapés preservados. Em um ponto, o córrego está verde opaco e tomado por plantas aquáticas bioindicadoras de poluição. O cenário é ainda pior em outro trecho, onde a água está marrom. Emília deixou de recorrer ao riacho que cruza seu terreno há seis anos. “As pessoas aqui estão com medo de usar seus poços por causa do agrotóxico.” 

O temor tem fundamento. Para avaliar o impacto do agronegócio na zona rural de Santarém, a geóloga Moema Morgado, pesquisadora associada na Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), analisou amostras de água subterrânea de poços, água superficial de rios, igarapés e de sedimentos de fundo dos córregos. Os resultados indicam a presença de herbicidas, como a atrazina, o glifosato e o metolacloro, além de metais diversos, tanto na água quanto nos sedimentos – onde também foram detectados inseticidas proibidos no Brasil, como DDT e endossulfam. 

Assim como o mercúrio, alguns pesticidas têm a característica de se acumular ao longo da cadeia alimentar porque são capazes de formar complexos insolúveis: em vez de volatilizar, se fixam nos sedimentos. O glifosato, um dos agrotóxicos mais utilizados no Brasil, se encaixa nessas duas situações. A legislação brasileira permite uma concentração de resíduos de glifosato na água potável 5 mil vezes maior do que na Europa e a substância forma complexos insolúveis em águas ricas em óxidos de alumínio e ferro. “A composição dos sedimentos e do solo da Amazônia é um prato cheio para isso”, ressalta Morgado, que encontrou glifosato em todas as amostras de sedimento analisadas, em comparação com 40% das amostras de água, onde o pesticida se dilui por ser hidrossolúvel.

As mudanças no uso do solo alteram o modo de vida das populações tradicionais no interior e, também, dos habitantes de zonas urbanas. Igarapés situados fora de unidades de conservação estão entre os mais impactados pela expansão desenfreada da monocultura. Foto: André Dib / Ambiental Media

Para além das pesquisas, sintomas

Um caso chamou a atenção no município de Belterra, vizinho a Santarém. No dia 6 de fevereiro deste ano, 30 pessoas, entre alunos e funcionários da escola Vitalina Motta, foram ao posto de saúde com sintomas como coceira, irritação nos olhos, dor de garganta, náusea, vômito e desmaio. A médica que fez os atendimentos afirmou à equipe de fiscalização do Ibama, dias depois, que os sinais eram de intoxicação por agrotóxico, já que todos tinham sintomas parecidos e coletivos, com descrição de cheiro forte e sensação de sufocamento.

Um campo de soja, cultivado com milho na entressafra, é vizinho da escola. “Os sojeiros sempre fizeram isso, mas nunca foi tão agressivo. Não sabemos dizer se trocaram o veneno ou aumentaram a quantidade”, relata a professora Heloise Rocha, que está na região há oito anos. 

Antes de subirem um muro, a plantação de grãos quase se misturava à horta escolar. “Quem mora aqui tem contato com o veneno de domingo a domingo. A gente não tem certeza se a água está ou não contaminada, mas o agrotóxico é jogado diretamente no solo, e a maioria aqui tem poço, inclusive a escola”, teme.

Os professores fizeram uma denúncia ao Ministério Público Federal. O Ibama multou o produtor Renato Zambra, proprietário do terreno, em mais de 1 milhão de reais. Cem metros da plantação também precisaram ser retirados a partir do limite da escola, e ali deveria ter sido plantada vegetação nativa. Em agosto, contudo, havia somente uma única fileira de capim crescendo rente ao muro. 

O caminho para minimizar os impactos do agronegócio e de outras atividades humanas predatórias passa por melhorar as leis de proteção das águas, considerar aspectos específicos de cada ambiente, investir em divulgação científica e inserir as comunidades tradicionais nas tomadas de decisão.

“São várias Amazônias dentro de uma grande Amazônia. É preciso trabalhar um pouquinho em cada região para chegar ao todo”, avalia Luciano Montag, professor da Universidade Federal do Pará (UFPA) e também pesquisador do estudo temporal dos igarapés.

Ao voltar aos mesmos pontos do início do estudo, em 2010, o grupo de cientistas busca analisar a série temporal para compreender a evolução dos impactos humanos sobre os ecossistemas aquáticos e suas comunidades de peixes. Foto: André Dib / Ambiental Media

Esta edição da newsletter Capivara Post e a reportagem publicada no site da Ambiental Media foram produzidas com o apoio do Instituto Serrapilheira como parte do projeto Aquazônia, vencedor de seis prêmios nacionais e internacionais de jornalismo. Visite: https://aquazonia.ambiental.media/

*A jornalista Letícia Klein é repórter e editora-assistente na Ambiental Media.

**Colaboraram nesta edição:
Mapas: Laura Kurtzberg
Checagem: Marina Martinez
Design editorial: Sofia Beiras
Edição: Fernanda Lourenço e Thiago Medaglia

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