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Ilha de Gor�e, no Senegal, � destino para conhecer hist�ria de escravid�o

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Num romance hoje meio esquecido, "A Segunda Morte de Ram�n Mercader", o escritor Jorge Sempr�n conta da obsess�o de um personagem com a luz da praia capturada pelo pintor Vermeer no quadro "Vista de Delft". Sua narrativa produziu efeito quase sobrenatural neste leitor, que passou a admirar um quadro que nunca tinha visto.

Foram ao menos duas d�cadas de espera at� reencontrar, em visita fortuita � Mauritshuis de Haia (Holanda), o objeto daquela paix�o juvenil e sinest�sica -uma imagem sublime impressa na mente por meras palavras.

Diante daquele metro quadrado de �leos luminosos sobre a tela, l�grimas de reconhecimento subiram aos olhos.

Mais duas d�cadas e essa lembran�a ressurgiu ao desembarcar noutra praia, esta sim de areia e sol, na ilha de Gor�e. Apenas 500 francos senegaleses -uns R$ 3- e 20 minutos de ferry a separam de Dacar, capital do Senegal, suficientes por�m para um mergulho vertiginoso no passado e num dos lugares mais lindos do mundo. Foi como atravessar a tela num filme de Woody Allen e descobrir-se envolto no calor de uma lembran�a querida, deixada n�o por uma obra de literatura, e sim uma can��o.

Muitos brasileiros com as costas voltadas para a �frica, como eu, s� ter�o ouvido falar de Gor�e pela voz de Gilberto Gil. Ele canta em franc�s, a l�ngua que os motoristas dos t�xis arruinados de Dacar usam para se comunicar precariamente com os brancos arredios em visita. Mas a melodia de "La Lune de Gor�e" e o parentesco pr�ximo com a l�ngua portuguesa tornam imposs�vel deixar de entender que � da cicatriz dolorida da escravid�o que trata a can��o.

A can��o diz, em portugu�s:

"A lua que se ergue
Sobre a ilha de Gor�e
� a mesma lua
Que se ergue sobre o mundo todo
Mas a lua de Gor�e
Tem uma cor profunda
Que n�o existe
Em nenhuma outra parte do mundo
� a lua dos escravos
A lua da dor"

A cor de que fala Jos� Carlos Capinam na melodia de Gil � a pele dos escravos. Gor�e carrega a duvidosa distin��o de ter sido um dos principais portos africanos para navios negreiros. Seu nome surgiu com holandeses que tomaram a ilha em 1588 e a chamaram de "Goede Reede" (bom ancoradouro). Depois viriam os franceses, os ingleses e, j� no s�culo 19, de novo os franceses, que consagraram a corruptela "Gor�e".

O ferry vindo de Dacar atraca na ilha ap�s contornar o forte de Estr�es, um basti�o circular constru�do em 1856 que abriga modesto museu hist�rico e se tornou �cone de Gor�e. A enseada que a fortaleza domina est� pontilhada de mans�es coloridas. O casario hoje abriga hot�is e restaurantes, mas um dia foi a sede das resid�ncias de senhores de escravos -"signares", uma elite de mesti�os que controlava o tr�fico e usava a ilha como cativeiro para negros capturados no continente.

Por coisa de R$ 10 se pode contratar um guia para fazer um roteiro a p� na ilha, que n�o tem carros e se estende por n�o mais que 2 km.

Mamadou Sall, com sua camiseta espalhafatosa inspirada na bandeira norte-americana e a inten��o firme de emigrar para o Brasil, nos conduz pelas ruas pasmacentas de areia e vigorosas primaveras a trepar pelas paredes.

Lalo de Almeida
Ilha de Gor�e - Senegal
Mulher em roupas t�picas nas ruas de Gor�e

Por todo lado h� barraquinhas de bugigangas e vendedores para assediar os visitantes. � com dignidade e educa��o, por�m, que habilmente exploram o constrangimento dos herdeiros de colonizadores brancos. A agressividade verbal e at� f�sica s� aflora entre as mulheres que disputam poss�veis clientes, e o turista desavisado demora a perceber que as estampas multicoloridas de suas roupas t�m a fun��o de fabricar um clima de exotismo.

Paradoxalmente, ningu�m gosta de ser fotografado, e n�o ser� surpresa se um dos 1.200 habitantes de Gor�e exigir pagamento por isso.

MUSEU DA INF�MIA

Por seu significado hist�rico e pela preserva��o, a ilha recebeu da Unesco, em 1978, o t�tulo de Patrim�nio da Humanidade. � o destino mais frequentado do Senegal, atraindo tanto visitantes locais quanto descendentes de escravos de todas as partes do mundo, interessados em pisar o solo ancestral e contemplar a �ltima paisagem africana vista por quem imaginam como antepassados. S�o muitos os negros norte-americanos compungidos, mas inconfund�veis com os locais -mais esguios, mais sorridentes e mais escuros.

O alvo da peregrina��o � a Casa dos Escravos, um sobrado de tom ocre constru�do por holandeses em 1776 e uma das poucas constru��es que sobraram com a configura��o original para abrigar escravos, nas masmorras do t�rreo. Duas escadarias em meia lua levam aos aposentos claros e arejados do piso superior, reservados aos intermedi�rios do tr�fico. Sob os degraus, celas de dois metros quadrados para castigar os "recalcitrantes", de acordo com a placa em franc�s.

Guias tur�sticos exibem solenes as ferramentas da inf�mia: grilh�es, bolas de ferro, m�scaras met�licas. Percorrem a sala de pesagem, onde gente era avaliada como gado, mostram os compartimentos separados de homens, mulheres, crian�as... Os espa�os desabitados e sem portas tolhem a imagina��o para os horrores que ali se praticavam; logo a serenidade da arquitetura emoldurada pelo sol e pelo mar engolfa a sensibilidade do visitante, que resvala sem perceber das trevas do passado para a luz onipresente em Gor�e.

O turista, ele sim recalcitrante, retorna ao piso inferior e caminha para o fundo escuro do im�vel. Ali encontra a famigerada Porta sem Volta, que se abre para o vazio -ou melhor, para as rochas e o oceano. Antigamente havia ali um molhe, de onde os cativos embarcavam nos tumbeiros para uma viagem ao inferno, em que 12% morriam j� no mar.

Mesmo essa porta acaba compondo um s�mbolo contradit�rio, ret�ngulo de luz e esplendor que evoca mais a ideia de liberdade que as de dor, indignidade e degredo. Que continue assim, escancarada, para que todos possam sempre voltar. E lembrar.

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