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Um passeio pelo ba� de Ana Cristina Cesar, a poeta homenageada da Flip

A Festa Liter�ria de Paraty, que acontece de 29/6 a 3/7, homenageia a poeta Ana Cristina Cesar -ou Ana C., como ela gostava de se assinar. � uma iniciativa ousada. Normalmente, a Flip homenageia monstros sagrados da literatura brasileira, nomes como M�rio de Andrade (2015), Graciliano Ramos (2013) e Machado de Assis (2008).

A op��o deste ano � por uma poeta que, de maneira muito pr�pria, pertenceu ao mundo da chamada gera��o marginal, contracultural. A nossa gera��o, a gera��o 70, como prefiro cham�-la, deu poetas como Chacal, Paulo Leminski, Cacaso, entre outros.

E uma poeta que morreu cedo, em 1983, ao suicidar-se com 31 anos, ap�s uma longa depress�o. Por isso n�o teve tempo de se tornar monstro sagrado, mas sua obra tem sido cultuada por sucessivas levas de aficionados de poesia. A Flip, espa�o por excel�ncia da literatura cult, tem tudo a ver com Ana C.

Ana Cristina morreu alguns meses depois de ter lan�ado, com grande sucesso de cr�tica e junto ao p�blico mais antenado, seu �nico livro publicado em vida por uma grande editora, "A Teus P�s", logo reconhecido como uma obra-prima.

Antes disso, ela j� granjeara prest�gio liter�rio com a participa��o em antologias e a publica��o de pequenos livros artesanais, no estilo gera��o marginal, embora caprichados graficamente.

Dois volumes importantes p�stumos foram lan�ados desde ent�o, "In�ditos e Dispersos" (1985), e "Antigos e Soltos" (2008). Nas livrarias, encontra-se hoje "Po�tica" (Cia das Letras, 2013), praticamente uma edi��o de sua obra completa.

SEIOS DESCOBERTOS

Estive no Instituto Moreira Sales para tomar p� do que est� sendo preparado para ser levado � Flip. Revisitar o acervo de Ana Cristina Cesar � revisitar parte do meu passado, o per�odo em que convivi com a poeta como amigo, interlocutor e colaborador, e que registrei no livro "Ana Cristina Cesar - O Sangue de uma Poeta" (1996).

A segunda metade dos anos 70 era um tempo de vida liter�ria intensa no Rio de Janeiro do agrupamento po�tico da Nuvem Cigana, do Baixo Leblon, do Black Rio, da luta pela Anistia e pela Constituinte. Fizemos juntos uma viagem a Buenos Aires. Depois ela se foi para Londres e, quando voltou, trabalhando como avaliadora no n�cleo de telenovelas da Globo e viajando com frequ�ncia a S�o Paulo, nos vimos pouco. Fui reencontr�-la no lan�amento de seu livro.

Todo esse per�odo, sua cara, suas caras, toda aquela vida saltou diante dos meus olhos quando o poeta Eucana� Ferraz me apresentou a bela fotobiografia de Ana C., "Inconfiss�es", organizada por ele. Ser� lan�ada na Flip, conjugada a uma exposi��o com fotografias, desenhos, manuscritos e textos dela. Tanto uma quanto a outra propiciar�o ao p�blico o prazer que d� a frequenta��o do arquivo de Ana C.

No legado dessa poeta, s�o t�o interessantes os documentos de vida quanto os documentos de escrita. Eles comp�em um gesto existencial e est�tico. Desenhos e poemas, manuscritos e datilografados, poesia e prosa, fotos e cart�es postais. Eucana� Ferraz diz que sempre viu nas fotos de Ana C. a vontade da fotografada construir uma persona, um alter ego pela foto. A proposta dele foi recuperar a narrativa poss�vel que estava oculta n�o apenas nas fotos em que havia a pose estudada, mas tamb�m nas improvisadas ou casuais.

"Tentei ser fiel � minha intui��o, mas tenho consci�ncia que a qualquer momento algu�m pode aparecer com aquela foto at� ent�o desconhecida ou sumida, capaz de mudar a orienta��o da narrativa aqui constru�da", diz o poeta, expressando a ang�stia de todo bi�grafo. Eucana� faz quest�o de assinalar que optou por inverter a ordem cronol�gica das fotos, come�ando pelo fim.

"Queria come�ar com uma foto da Ana que a mostrasse plena, um aut�ntico momento de come�o." E a fotobiografia � aberta com a imagem de uma Ana bel�ssima, sem �culos, os seios desnudos. N�o � um nude, porque n�o � um selfie.

� dif�cil acreditar que poucos meses depois de quando foram tiradas essa e outras fotos iniciais sobreveio a crise depressiva que a levou ao suic�dio. Eucana� prefere n�o comentar o car�ter pol�mico de suas escolhas de curador. Autoconfiante, o poeta dobra a aposta de Ana. Fotos e poemas s�o elementos de um mesmo projeto art�stico.

Ele sabe que era a s�rio o que Ana escreveu num de seus poemas mais citados: "Enquanto leio meus seios est�o a descoberto. � dif�cil concentrar-me ao ver seus bicos. [...] Enquanto leio meus textos se fazem descobertos. � dif�cil escond�-los no meio dessas letras. Ent�o me nutro das tetas dos poetas pensados em meu seio."

Talvez por ver a� a verdade �ltima, e portanto primeira de Ana Cristina, Eucana� preferiu colocar no final do livro as fotos da menina e da beb�. E � fato bem sabido que Ana Cristina fora uma crian�a excepcional.

No caso dela, literatura infantil significou literatura escrita pela pr�pria crian�a. � emocionante acompanhar no Instituto Moreira Salles a trajet�ria po�tica de Ana C. desde que ela teve seus primeiros poemas publicados, aos seis, sete anos de idade.

O mais impressionante � observar o grau de autoconsci�ncia da poeta que eu n�o chamaria de mirim, pois em algumas das fotos ela parece quase um ser mutante. Aos dez anos, j� escrevia suas mem�rias de poeta. Aos 15, dava um salto brutal de qualidade como autora, a partir da releitura autocr�tica de toda a sua extensa produ��o anterior, junto com leituras cr�ticas de Clarice Lispector e Fernando Pessoa.

Como autora de livrinhos artesanais, por�m femininamente caprichados, no seu gosto de posar para fotos fazendo g�nero, Ana C. afirmava sua diferen�a por meio de um glamour algo coquete, mas tamb�m ir�nico, que transparece tanto em seus poemas como nas fotos e filmes que ficaram. Essa frivolidade empostada contrabalan�ava a seriedade de seu empenho de vida e morte com a escrita e tamb�m com a pol�tica.

A M�E DAS POETAS

Entre a pose, o seio, o texto, Ana C. tornou-se o principal poeta para poetas de sua -nossa- gera��o e das que vieram depois, particularmente entre as jovens poetas mulheres. Na gera��o nova, podemos citar nomes como os de Ana Martins Marques, Annita Costa Malufe, Ang�lica Freitas, Mas� Lemos, Laura Erber, Laura Liuzzi, Mar�lia Garcia, entre muitas outras para quem o encontro com a obra de Ana C. foi decisivo.

Poeta e editora-assistente da revista "Serrote", do IMS, Alice Sant'Anna concorda com essa avalia��o. Ela � uma das respons�veis pela edi��o de separata da "Serrote" (a "Serrotinha"), a ser distribu�da na FLIP, que traz um artigo de sua autoria sobre um dos documentos mais interessantes do arquivo do IMS - um caderno com os bastidores do livro que viria a chamar-se "A Teus P�s", mas que nessa vers�o ainda se chama "Meios de Transporte".

"O primeiro poema que li da Ana foi aquele sem t�tulo: 'Olho muito tempo para o corpo de um poema'", diz Alice. "O que me impressionou", continua, "quando o li da primeira vez, aos 15 anos, foi que esse poema era diferente de tudo o que eu j� tinha visto: pelo tema, pela caixa baixa, pelo verso livre, pela mancha desalinhada".

Numa visita ao ba� de Ana C., � poss�vel ver que esse desalinho nasceu do esmero. L� est� o exemplar de "Legi�o Estrangeira", de Clarice Lispector, todo anotado pela jovem de 15 anos de idade, que viria a se tornar uma poeta maior brasileira. Para muitos, a maior.

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