Saltar para o conte�do principal Saltar para o menu

Cineasta Anna Muylaert vai do quarto de empregada ao tapete vermelho

Pablo Saborido
Pronta para o combate - quem � a mulher por tr�s do filme 'Que horas ela volta?', um retrato do embate de classes no pa�s que vem acirrando �nimos dentro e fora dos cinemas; a mil por hora, Anna Muylaert roda o mundo em festivais e mergulha na disputa pelo oscar 2016#serafina91

Uma hora Anna Muylaert volta. A cada dois meses, a cineasta nascida e criada na elite paulistana paga em m�dia R$ 120 numa passagem de classe econ�mica e voa at� Goi�nia. Desembolsa mais R$ 120 num transfer rumo a Abadi�nia, a 80 km da capital goiana. L� Jo�o de Deus, m�dium que opera cirurgias espirituais dentro de uma casa azul e branca, a tem de regresso.

� a este Ivo Pintaguy da alma, na agenda de pol�ticos (Dilma Rousseff e Lula) e celebridades (F�bio Assun��o e Juliana Paes), que Anna recorre desde que terminou de filmar "Que Horas Ela Volta?", em fevereiro de 2014. "Eu estava mal, sem namorar havia quatro anos, vinha de um ritmo intenso de trabalho."

Em vez de desacelerar, ela comprou outro t�quete a�reo, desta vez para Los Angeles, onde esteve neste m�s de outubro. Contratou a "lobista" de Hollywood Fredell Pogodin, que nos anos 1980 coordenou a produ��o de "Curtindo a Vida Adoidado" e hoje bola estrat�gias publicit�rias para emplacar obras como a polonesa "Ida" no Oscar. "Dos 109 filmes que ela produziu, 40 entraram na disputa", afirma a diretora.

Anna � a primeira mulher em 30 anos a representar o Brasil na pr�-sele��o para concorrer a melhor filme estrangeiro -antes veio Suzana Amaral, com "A Hora da Estrela" (1985). Ela n�o vai assumir de cara, mas � claro que est� ansiosa. Seus outros longas foram elogiados ("Durval Discos", "� Proibido Fumar" e "Chamada a Cobrar") pela cr�tica, mas n�o chegaram perto do p�blico do novo: 470 mil pessoas at� agora.

*

PEGANDO FOGO

Entre os 87 filmes nacionais que entraram em cartaz neste ano, 13 foram dirigidos por uma mulher (15%). E nenhum causou tanta como��o quanto "Que Horas...?" —pelo que � mostrado na tela e pelo que ocorreu fora dela.

Pol�mica n� 1: a produ��o, feita para ser um tratado sobre o embate de classes � brasileira, ateou por tabela uma discuss�o sobre machismo no cinema como h� tempos n�o se via no pa�s. Tudo come�ou com a ta�a de vinho que o ex-namorado Cl�udio Assis tomou antes de um evento sobre a obra no Recife.

O diretor de "Amarelo Manga" estava um pouco embriagado. Interrompeu o debate v�rias vezes, junto com L�rio Ferreira ("Sangue Azul"). Ainda chamou a protagonista Regina Cas� de "gorda". Anna viu ali o v�cio masculino por protagonismo, agravado pela ofensa a Regina. "Nunca chamaram FHC de barrigudo. Dilma � gorda, Lula n�o �."

Meses depois, Cl�udio acabou vaiado no Festival de Bras�lia. "Machistas n�o passar�o!", gritavam-lhe do p�blico.

A amizade ficou abalada, diz o diretor. "T� quase sendo apedrejado na rua."

O burburinho em torno do "Que Horas...?" ganhou corpo em janeiro, quando Regina Cas� e Camila M�rdila racharam o pr�mio de melhor atriz no festival de Sundance, pelos pap�is de Val e J�ssica, m�e e filha, dom�stica subserviente e vestibulanda engajada.

Val cria o filho de dona B�rbara (Karine Teles), a matriarca que trabalha com moda, e seu Carlos (Louren�o Mutarelli), pintor frustrado que usa camiseta dos Ramones. Deixada em Pernambuco, J�ssica vem morar com a m�e na casa dos patr�es. Vai tentar o vestibular.

Primeiro ela � recebida com d� —a filha da empregada acha que passar� na escola de arquitetura da USP? A linha dram�tica se desenrola na medida em que J�ssica atropela conven��es sociais "que todo mundo conhece sem precisar dizer", como tomar o sorvete gourmet do filho do casal.

Anna diz que quis filmar uma carapu�a que tamb�m a vestia —e, se voc� j� teve empregada, provavelmente ela tamb�m � o seu n�mero. "Quis colocar patr�es que fossem jovens e legais, n�o patr�es de uma elite velha e escrota."

Ana Luiza Machado da Silva Muylaert —ela adicionou um "n" no nome por achar mais art�stico— cresceu numa casa grande com piscina no Alto de Pinheiros e hoje mora numa casa grande com piscina no Alto da Lapa. N�o � raro ver neste bairro de S�o Paulo empregadas de uniforme e avental branco. A cineasta emprega uma por R$ 2.000, mas dispensa as formalidades na vestimenta.

A campainha fica ao lado de um picho no muro que diz: "Isto pode ser um poema". Quem abre a porta � Raimunda. Ela trabalha para a fam�lia h� nove anos no total (voltou em 2013, ap�s um tempo fora). Est� gr�vida de cinco meses —j� d� para ver as "perninhas cruzadas" no ultrassom, conta, sorrindo.

A dom�stica Raimunda, que disse ter visto tr�s vezes a hist�ria da dom�stica Val, resistiu a uma ideia da patroa. Ap�s rodar "Que Horas...?", Anna transformou o quarto de empregada num c�modo para h�spedes ("tirei essa cicatriz colonial da casa") e fez um pedido. "Cheguei e disse: 'N�o d�, voc� tem que comer com a gente'. Ela n�o aceitou."

Raimunda s� se senta � mesa quando Anna est� sozinha. Vestindo uma camisa onde se l� "World Cinema Amsterdam'", pede desculpa pelo barulho do liquidificador (est� batendo limonada).

Depois do almo�o, a diretora se estira numa "chaise longue" � beira de piscina e conta que Val tem a personalidade de Dagmar, sua bab� na inf�ncia.

A m�e de Anna, a dona de casa Celina, achava "cafona" amamentar, como tantas mulheres na �poca. "O jantar era servido � francesa, com bandejas", lembra. Aos sete, Anna foi namoradinha de Nando Reis na escola Bola de Neve. Quando a professora pedia para desenhar a fam�lia, ela sentia algo errado ali. "Desenho a empregada ou n�o? Tinha impress�o que, se sim, minha m�e ficaria brava. Com ci�me."

ASSISTA AO TRAILER DE "QUE HORAS ELA VOLTA?"

Trailer oficial de "Que horas ela volta?"

O pai, Roberto Muylaert, presidiu as funda��es Bienal e Padre Anchieta, que dirige a TV Cultura. Foi l� que a filha formada na ECA, Escola de Comunica��o e Artes da USP, roteirizou os cl�ssicos "Mundo da Lua" e "Castelo R�-Tim-Bum".

Em 2015, seu filme tem mexido com as pessoas em volta, diz. Uma amiga veio lhe dizer que tamb�m reformou o "quartinho" da empregada. Cau� Reymond contou que subiu o sal�rio da sua.

*

A DURAS PENAS

Anna inspira seguran�a. Tem cabelos revoltos como o de Gal Costa —em sua casa, o LP "�ndia" decora o escrit�rio. Usa meia arrast�o e tatuagem prateada no bra�o, daquelas que saem ap�s lavar. Conta que tem "experimentado" com mulheres. "Mas nunca transei."

Namora h� um ano e meio. Encontrou-o no set de "Que Horas...?". "Chamei o pai de santo Kabila para benzer o filme. Em vez de vir com uma vela, ele trouxe 1 kg de ervas e 20 pessoas." Uma delas era Luciano Bortoluzzi, ator e palha�o que batucava o tambor. Anna gostou do que viu. "Tenho fasc�nio por homem de �culos e cara quadrada."

Anna gosta tamb�m de budismo e medita��o. Mas um de seus mantras vem de Mick Jagger. Ela conviveu com o stone no set de "Running Out of Luck" (1987), do ingl�s Julien Temple.

Assistente de dire��o do longa rodado no Brasil, aprendeu com Mick a jamais "fazer o que voc� n�o quer".

No passado, ela relevava se colegas fitavam sua bunda no set e nem sempre tinha coragem de exigir cr�dito em roteiros que acabavam assinados s� por homens. Hoje, acha que aprendeu a se impor, "a duras penas".

"O homem me humilha, caga na minha cabe�a, e eu tento falar com respeito. Se voc� fica brava, ele diz que � louca. Mas, �s vezes, � necess�rio o berro."

*

ACERTANDO OS PONTEIROS

Em 1995 o Brasil era outro. FHC virou presidente, � o Tchan estourou com "Pau que Nasce Torto" e 19% das trabalhadoras no pa�s eram dom�sticas, segundo o IBGE. Foi tamb�m o ano da retomada do cinema nacional (14 produ��es brasileiras, duas dirigidas por uma mulher).

Tamb�m nascia o primog�nito de Anna, Jos�, com o ent�o marido, o multiartista Andr� Abujamra (ela foi m�e solteira do ca�ula, Joaquim, 15).

Eventualmente contratou uma bab�. O projeto "Porta da Cozinha", sobre uma sociedade que terceirizava o trabalho de p�r a "m�o na merda" do filho, surgiu por a�. Val era "uma l�der espiritual na favela que lia o futuro no coc� das pessoas, meio Gabriel Garc�a Marquez". J�ssica, uma aspirante a cabeleireira que virava bab�.

Em 2013, Anna leu "Casa Tomada", conto de Julio Cort�zar sobre irm�os que vivem num lar herdado e se aterrorizam quando algo toma "a parte dos fundos".

S� a� seu roteiro engatou. Decidiu que J�ssica devia tomar a casa dos patr�es da m�e. Assim nasceu "Que Horas Ela Volta?", o filme para um Brasil que acerta os ponteiros com seu passado.

Livraria da Folha

Publicidade
Publicidade
Publicidade
Publicidade

Envie sua not�cia

Siga a folha

Livraria da Folha

Publicidade
Publicidade
Voltar ao topo da página