Serafina
Conto in�dito de Reinaldo Moraes inspira editorial de moda
Minha m�e me enchendo o saco porque a gente n�o paga a porra do aluguel h� tr�s meses."
M�nica encaixa seu smartphone coreano entre pinc�is at�micos e crayons no estreito anteparo da prancheta inclinada onde desenha a carv�o sketches quase abstratos de modelitos pro curso de estilismo de uma faculdade com nome de santa situada num bairro com nome de ave de ca�a no plural.
S� agora ela se d� conta de que seu suposto interlocutor n�o a ouve, pranchado no sof� de bermud�o e sem camisa, ouvidos plugados por fones de ouvido, de olho num filme que passa na tela ampla do velho notebook�o assentado numa mesinha de centro, entre suas pernas peludas esticadas, em meio a uma bagun�a de trecos e livros e copos e latas de cerveja e pap�is e pelo menos dois cinzeiros abarrotados de bitucas de cigarro.
Ela sobe o tom da voz e do mau humor:
"Bi-nh�! C� t� me ouvindo?!"
Ele despluga um ouvido:
"Qu�?"
"Benvindo � realidade, mano."
"A realidade ainda n�o se mostrou a ningu�m," murmura o interpelado, ainda vestido, dando um pause no DVD, orgulhoso do timing perfeito com que repetiu a frase ouvida h� pouco no filme.
"Se mostrou, sim, pelo menos pra minha m�e. Que t� puta que a gente n�o paga os alugu�is e vai me tocar daqui, eu, voc�, n�s tr�s. E mais: n�o acho dif�cil ela aparecer por aqui, de repente, a qualquer hora do dia ou da noite, pruma a��o de despejo sum�ria. O porteiro conhece a fera, ela tem a chave, � a propriet�ria."
"Ela � doida, a sua m�e. Uma pequeno-burguesa atacada."
"M�e � uma mulher que ficou louca, como diz um amigo da Vanessa Barbara. S� que, dessa vez, a velha t� com a raz�o."
"Os piores doidos s�o os que t�m raz�o", sentencia o garot�o atr�s dos seus �culos de m�ope cin�filo. "Deus me livre da loucura razo�vel."
H� um sil�ncio. M�nica esperando uma rea��o do Binho.
"E a�?"
"E a�, o qu�?"
"Como ficam os alugu�is atrasados?"
"Calma. Vamos convocar uma plen�ria pra discutir a quest�o."
"Ent�o, j� vi que vai ficar por isso mesmo. A gente se re�ne pra discutir, acaba bebendo, fumando, trepando e esquecendo o que era mesmo que a gente ia discutir."
Binho de olho na imagem congelada da Juliette Berto -se pronuncia Berrrt�- no monitor do notebook: a bela francesinha segurando uma ma�� mordida com um p�ster do camarada Mao ao fundo. M�rbida, bela, sedutora camarada, que foi namorada do Glauber, ali�s, algo que o Binho vagamente sabe mas n�o chega a dizer.
"Quer saber, Monique? Manda a sua m�e se catar", � o que ele acaba dizendo, dando um play no filme, que ele segue ouvindo num s� fone de ouvido.
M�nica pega pesado:
"Porra, Binho, manda a sua m�e se catar."
"Mando. A minha e todas as m�es do Brasil. V�o se catar. A gente � anarquista gra�as a Deus ou n�o �?"
Assista ao v�deo em tablets e celulares
M�nica suspira, abranda o tom:
"Se pelo menos o Bakunin passasse um doc ou ted de seis paus pra conta da minha mam�ezinha pequeno-burguesa..."
M�nica adiciona uns golpes a carv�o no desenho que vinha fazendo no papel Canson:
"Esse n�o � aquele filme franc�s que voc� t� vendo sem parar h� uma semana?"
"Isso aqui n�o � simplesmente um filme. Isso aqui � o filme. � a Chinesa, do..."
"Godard, j� sei. 'A Chinesa,' j� sei. Do Godard, j� sei. 'A Chinesa,' do Godard. J� sei, j� sei. Quantas vezes voc� j� viu esse filme, s� hoje, Binho?"
"� prum trabalho da fac. 'A Chinesa' � foda. Meio que prenuncia, com um ano de anteced�ncia, o maio de 68, na Fran�a. E tamb�m a revolu��o cultural ultramaoista, dogm�tica e demencial na China, que tamb�m come�ou em meia-oito."
"E a revolu��o francesa tamb�m?"
"Essa, eu acho que foi um pouco antes. Robespierre, Brigitte Bardot, Serge Gainsbourg e grande elenco. Tremenda revolu��o."
"E a revolu��o dos alugu�is atrasados?"
"Tenho uma grana pra receber," solta Binho. Vendo a incredulidade se estampar na cara da outra, refor�a: "Um frila que eu fiz prum site de cinema".
"Nem vou perguntar quanto. Nem quando."
"N�o pergunte."
H� outra pergunta ali que n�o quer calar. Mas acaba calando. De qualquer forma, a resposta vem sob a forma sonora de descarga de privada.
M�nica n�o se segura, olhando de esguelha pro filme do Godard:
"Os atores dessa 'Chinesa' parece que t�o no primeiro ano dum curso de teatro por correspond�ncia. Olha esse a�, com cara de quem comeu escarg� e n�o gost�."
"O Jean-Pierre Leaud? � um mito do cinema franc�s. Al�m de Le� rimar com escarg� e gost�."
Uma voz diferente soa na cena real: "M� chatonildo esse filme".
M�nica e Binho se voltam pra dona da voz, uma �ber gata de mais de um metro e oitenta, cara de len�ol recente, nua do primeiro dos cabelos aloirados ao �ltimo dos pentelhos fulvos, de uma brancalvura herdada de europas nevadas, l� pros lados dos Alpes, sen�o mesmo pra al�m dos C�rpatos e al�m.
"Acordou a princesa Eneida!", M�nica sa�da.
"Mais ou menos," manda Eneida num bocejo, do alto, e tamb�m dos baixios de sua nudez, abrindo e co�ando ao mesmo tempo cabe�a e bunda.
A quem interessar possa, Eneida, Neida ou Neidinha, � ex-jogadora de v�lei, ex-modelo de passarela, atual fot�grafa com escassas esperan�as profissionalizantes e aspirante a atriz que n�o teve ainda a grande e improv�vel chance de demonstrar todo o talento que ningu�m sabe se ela tem ou n�o.
A pelada vai dar um selinho na M�nica antes de se jogar no sof�, colada no Binho. Armando as longas pernas em pin�a, vira com os p�s o notebook pro outro lado, o da porta da frente.
"C� s� pensa em cinema, n�, man�?", ela diz, descabelando o outro e desplugando seu ouvido.
"Penso em cinema antes, durante e depois do sexo", responde o cin�filo apaixonado, fazendo um carinho de leve num dos peitinhos da atual companheira de sof�.
"C�nema, cinema, cinem�! O que � o cinema?", pergunta a nereida Eneida, de chofre, mimicando um microfone que leva � boca do outro.
Binho puxa um Jean-Luc e manda:
"Cinema � 'a girl and a gun,' segundo Griffith. Uma garota e uma garrucha. Um berro e uma baby."
"Escuta, Neidinha," come�a M�nica, de punhos na cintura. "Ou c� bota uma roupa j�, ou a gente tira a nossa tamb�m."
"P� tir�!"
Num instante os tr�s se veem em pelo no sof�, enroscados e, logo em seguida, enrascados, quando uma chave gira na fechadura pelo lado de fora.
M�nica exala, em p�nico:
"N�o acredito!"
Acreditando ou n�o, logo uma mulher de seus cinquenta e poucos anos adentra o recinto, como se dizia antigamente, e topa com um notebook aberto, o monitor voltado pra ela, exibindo um filme sem som, e, mais al�m, no sof�, a filha t�o pelada quanto seus companheiros de teto, um rapaz em estado interessant�ssimo e a bela e quilom�trica ex-modelo.
"� boca...", M�nica lamenta, sem condi��es imediatas de sair da complexa posi��o que assumiu na alm�ndega humana.
"O que.... qui � isso.... M�nica?", pasma a rec�m-chegada.
Binho n�o consegue segurar:
"Isso � 'A Chinesa,' do Godard, madame. Achegue-se. Vous �tes chez vous".
Reinaldo Moraes � o autor de "Pornopopeia"
Cr�ditos: atores Sofia Boito e Gabriel Godoy (da s�rie "O Neg�cio", da HBO) | modelo Luna (Ford) | produ��o Anderson Rodriguez; styling Gi Macedo | beleza Krisna Carvalho | assistente de foto Gael Oliveira | assistente de styling Leila Pigatto. Cen�rio: tapete By Kamy, almofada e cinzeiro Peixe Bordallo Pinheiro para Poeira, Cortinas e colcha Aladim Tecidos. Agradecimentos: Estar M�veis e Casa Juisi.
Onde encontrar: Absurda 0800-6481016, Alexandre Herchcovitch (11) 3063-2888, Bottega Veneta (11) 5904-6670, Centauro (11) 6672-5431, Choix (11) 2649-4265, Christian Dior (11) 3750-4400, Colcci (47) 3247-3000, Dalai (16) 3931-5964, Democrata 0800-341500, Dopping (48) 2102-3455, Dumont para grupo Dumont Saab 0800-0554898, Ermenegildo Zegna (11) 3031 4771, Farfetch www.farfetch.com.br, Fendi (11) 4873-5592, Herm�s (11) 3552-4500, Hugo Boss (11) 3813-6390, Juisi by Licquor (11) 3063-5766, Louis Vuitton (11) 3060-5099, Lupo 0800-7078220, Mario Queiroz (11) 3062-3982, Max Mara (11) 3032-7835, Minha Av� Tinha (11) 3865-1759, Nk Store (11) 3897-2600, Prada (11) 3078-8326, Safilo 0800-7012097, Shoestok (11) 3045-1200, Vitorino Campos (71) 3234-4196
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