Inativo h� 30 anos, velho sistema Cantareira tem �guas desperdi�adas

Depois de 30 minutos de caminhada pela floresta da serra da Cantareira, um cano de alvenaria surge em meio �s folhagens. A tubula��o segue por quil�metros entre �rvores e pedras, �s vezes aparente, outras debaixo da terra. Mais � frente, em um grande reservat�rio coberto de musgo e ra�zes, escorre apenas um fio d'�gua.

Inativo h� mais de 30 anos, o antigo sistema Cantareira, que por quase um s�culo abasteceu a cidade, ainda tem suas ru�nas na serra que lhe d� nome, a cerca de 15 km do centro.

Um dos primeiros sistemas de abastecimento da ent�o pequena S�o Paulo foi inaugurado em 1882 e desativado totalmente na d�cada de 1980, com o funcionamento do atual Cantareira, capaz de fornecer �gua a quase 9 milh�es de pessoas. A dist�ncia entre ambos chega a ser de apenas 4 km.

Hoje, durante a maior crise h�drica dos �ltimos 85 anos, parte do velho sistema, assim como metade de suas �guas, est�o esquecidos na mata.

Em seus bons tempos, do alto da serra, �gua l�mpida e fresca –como descrito na �poca– descia at� o planalto pelos canos de ferro ingleses. Ap�s atravessar o rio Tiet�, chegava ao reservat�rio da Consola��o, pr�ximo ao cemit�rio municipal.

Dali, ela era bombeada para o centro e atendia cerca de 60 mil pessoas, popula��o que hoje caberia nas arquibancadas do est�dio do Morumbi. No entanto, mesmo que a �gua chegasse � cidade, n�o alcan�ava todas as casas, porque a rede de canos n�o estava inteiramente conectada.

Grande parte do fornecimento da �poca era feito por meio de bicas e chafarizes. Ao redor deles, mulheres, crian�as e escravos se reuniam munidos de baldes e vasilhas.

Havia tamb�m os que ganhavam algum trocado com a situa��o. Os chamados aguadeiros levavam suas carro�as cheias de latas at� os chafarizes, para depois vender a �gua em outros bairros. Quando essas fontes quebravam, situa��o costumeira, acontecia um alvoro�o nos largos da cidade e for�as policiais tinham que intervir para acalmar os mais exaltados.

ABASTECIMENTO DEFASADO

Inicialmente o antigo Cantareira foi planejado para atender o dobro da popula��o que a capital paulista tinha na �poca, ent�o de 30 mil habitantes. Na virada do s�culo, com o crescimento vertiginoso de S�o Paulo, os recursos da serra ficaram defasados e novas fontes tiveram que ser buscadas, como o j� polu�do rio Tiet�.

Segundo especialistas, a capta��o de �gua na cidade esteve sempre atr�s das necessidades de abastecimento. Por isso, at� a d�cada de 70 era comum ver paulistanos recorrendo a bicas e po�os artesianos.

"A �gua era limpinha, fresquinha, deliciosa", diz o cabeleireiro Ant�nio Rodrigues, 62, ao lembrar do po�o que tinha no seu quintal, na Vila Medeiros (zona norte).

Nascido, criado e ainda trabalhando no bairro, ele lembra de puxar baldes de uma profundidade de 22 metros, aquec�-los em uma fogueira no quintal e correr para tomar banho antes que esfriassem.

Todos os dez irm�os faziam isso no inverno. Assim como os vizinhos. Na cal�ada em frente, a dona de casa Leonilda Farias, 62, era outra que passava os dias em frente ao po�o, "tirando �gua para lavar, para dar para as crian�as, para tudo". A como��o no bairro, conta, foi a instala��o de uma torneira de rua, onde todos enchiam suas latas.

Em parte, esses problemas come�aram a diminuir com a inaugura��o do atual Cantareira, em 1973. Desde ent�o, o antigo sistema parou progressivamente de funcionar e o local limitou-se a ser uma �rea de preserva��o ambiental, o Parque Estadual da Cantareira. A �ltima contribui��o das represas foi abastecer um peda�o de Santana e o extinto pres�dio do Carandiru, na zona norte, na d�cada de 80.

Os moradores da serra da Cantareira, cujas fam�lias est�o ali h� pelo menos 30 anos, viram as �guas que chegavam a milhares de paulistanos passarem a ser sua exclusividade. A maioria das casas captam �gua de algum c�rrego ou nascente cercana.

"Criei meu filho e agora meu neto com essa �gua. Usamos para tudo", diz a empregada dom�stica Sandra Ferreira, 53 anos, 52 deles na regi�o.

Filha de um guarda florestal, que se mudou para l� em 1963, ela usa uma nascente que fica a 600 metros de sua casa. "Isso tinha que ser aproveitado. Como � poss�vel tanta �gua e, ao mesmo tempo, tanta falta?"

RECUPERA��O

A recupera��o das estruturas para que a �gua da serra da Cantareira chegue � capital � uma das propostas dos moradores locais, apoiada tamb�m por especialistas. Com exce��o de 150 litros de �gua por segundo que ajudam no abastecimento de Guarulhos, outros 150 litros se perdem no rio Tiet�. Em tese, essa quantidade poderia atender a 50 mil paulistanos.

Um dos defensores da causa � o arquiteto e professor em�rito da USP Candido Malta, que tem uma casa ali h� mais de 30 anos. Para ele, � poss�vel reabilitar canos e reservat�rios do antigo sistema. Isso j� � feito pela Sabesp ao reformar tubula��es que ficaram d�cadas abandonadas, como as que ligam Santo Amaro a Vila Mariana.

Segundo Malta, essa n�o seria uma tarefa t�o complexa, mas os �rg�os respons�veis ainda n�o estudaram a fundo a proposta.

O professor diz que, quando a Sabesp abriu espa�o para ideias de cidad�os para contornar a atual crise h�drica, mandou uma sugest�o formal. "N�o tive resposta", afirma.

Apesar de n�o ter feito um estudo aprofundado sobre o tema, a Sabesp diz que a contribui��o desses c�rregos � insignificante perto da demanda.

Para o diretor metropolitano da empresa, Paulo Massato, a conserva��o do velho Cantareira deve ser de car�ter memorial e de responsabilidade do Instituto Florestal do governo do Estado, que gere o parque. "Isso ajuda a contar a hist�ria da cidade."

Segundo ele, com a inaugura��o do novo Cantareira, que distribui 33 mil litros por segundo, o antigo sistema "perdeu em escala". "As estruturas s�o muito grandes e pouco eficientes."

Editoria de arte/Revista s�opaulo

O professor de engenharia h�drica do Mackenzie Antonio Eduardo Giansante discorda e diz que, mesmo menores, as velhas fontes podem ajudar a aumentar a seguran�a do fornecimento de �gua. "N�o podemos nos dar ao luxo de desconsiderar nenhuma alternativa. A diretriz sempre foi buscar mananciais mais distantes e abandonamos os pequenos, mas a soma deles pode ajudar. Deve ser feito pelo menos um estudo econ�mico."

DIFICULDADES AMBIENTAIS

A raz�o pela qual o aproveitamento da �rea n�o est� no radar dos �rg�os respons�veis, segundo o professor da Poli-USP Rubem Porto, s�o as dificuldades ambientais que a proposta implica. Afinal, ela fica em uma zona de prote��o ambiental. "A popula��o lucraria mais [com a preserva��o] do que com o aproveitamento dos mananciais que tem l�."

Sandra Ferreira, a moradora que vive h� mais de 50 anos na serra da Cantareira, pensa o contr�rio. A volta da capta��o, diz, pode ajudar a manter limpas as fontes de �gua. "Se usassem, iam cuidar mais. O pessoal joga lixo, entulho, bichos mortos nos c�rregos. Com fiscaliza��o seria melhor."

O irm�o dela, Ant�nio Correia, 57, que desde os sete anda sozinho pela mata, � da mesma opini�o. Para ele, � inconceb�vel que haja racionamento a quil�metros de onde a �gua � abundante e limpa. "Aqui n�o tem seca."

As duas realidades convivem t�o pr�ximas quanto a serra e os arranha-c�us, que aparecem ao fundo na janela de Ant�nio.

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Confira ensaio sobre a seca no cora��o do atual sistema Cantareira

Diego Padgurschi
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