'O Ex�rcito brasileiro n�o era de nada', diz o soci�logo Francisco de Oliveira
Quando o ent�o governador de Pernambuco Miguel Arraes recebeu a ordem de pris�o de um militar da Marinha, no dia 31 de mar�o de 1964, nas depend�ncias do pr�prio pal�cio do governo, o soci�logo Francisco de Oliveira estava presente. Ele ouviu o r�pido di�logo entre Arraes e seu algoz e presenciou o momento exato da deposi��o.
Na �poca, Oliveira tinha 31 anos e era o homem forte da Sudene (Superintend�ncia de Desenvolvimento do Nordeste) na regi�o, �rg�o federal criado pelo ent�o ministro do Planejamento do presidente Jo�o Goulart, o economista Celso Furtado.
Reconhecido como um dos nomes mais importantes da sociologia brasileira, Oliveira conta agora, aos risos, como tentou convencer Arraes a resistir ao golpe.
Fabio Braga - 24.jun.2013/Folhapress | ||
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O soci�logo Francisco de Oliveira tentou convencer Miguel Arraes, governador de PE, a resistir ao golpe |
Ele diz que, minutos antes da chegada do militar da Marinha, ofereceu ao governador as cem picapes Willys da Sudene "que estavam diretamente sob minhas ordens". Um grupo de fuzileiros navais havia sugerido apoio a Arraes. A Pol�cia Militar de Pernambuco tamb�m poderia atuar. O plano era colocar um homem armado na ca�amba de cada ve�culo e ir para o enfrentamento, lembra. Arraes nem respondeu.
Para Oliveira, a "tradi��o conciliadora brasileira pesou" e evitou a organiza��o de uma resist�ncia. Ele n�o poupa cr�ticas � esquerda. �s vezes com galhofa: "No pa�s da putaria, como � que o l�der da esquerda (Lu�s Carlos Prestes) casa virgem aos 50 anos?"
Mas o soci�logo garante que teria sido f�cil derrotar o Ex�rcito, mal treinado e munido de armas obsoletas naquele 1964. "Um peteleco acabava com aquilo", diz o autor de "O Ornitorrinco" (Boitempo) e "A economia brasileira: cr�tica � raz�o dualista" (Vozes), entre outras obras.
Nesse depoimento, colhido no fim de 2013, quando completou 80 anos, Oliveira tamb�m faz reflex�es sobre os sentidos e a heran�a do regime militar. Para ele, a ditadura serviu para complementar a abertura do pa�s para o sistema capitalista. Um capitalismo que, a exemplo do que ocorreu em v�rios outros pa�ses, precisou ser imposto pela for�a. O resultado final de todo esse processo, conclui, � hoje uma democracia "que n�o tem for�a social nem pol�tica para mudar o rumo das coisas".
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Folha - Onde o senhor estava em 31 de mar�o de 1964?
Francisco de Oliveira - No pal�cio do governo de Pernambuco.
Como � que foi?
Foi todo um movimento, as lideran�as principais reunidas no pal�cio. Eu n�o era lideran�a principal nenhuma, devo corrigir. Mas eu estava a frente da Sudene (Superintend�ncia de Desenvolvimento do Nordeste), era o sub do Celso Furtado (ministro do Planejamento naquela �poca). E quem mandava na administra��o da Sudene era eu. Mandava, n�o. Eu exercia. Porque o Celso estrava dedicado � grande pol�tica, que era importante. Ele n�o se sustentava se n�o tivesse uma liga��o direta com a Presid�ncia [da Rep�blica]. E eu n�o fazia esse papel porque n�o tinha proje��o nenhuma. Eu era o administrador e, como tal, estava no pal�cio do governo de Pernambuco no dia 31 de mar�o. Todos n�s fomos pegos pelas cal�as.
O Celso Furtado estava l�?
Foi para l� depois.
E quem mais estava? O governador...
O governador [Miguel] Arraes... Arraes sempre foi um conciliador. Ele n�o era um revolucion�rio. Nem ningu�m pediu a ele que fosse. Mas voc� �s vezes � a pessoa errada no lugar errado. Ele n�o soube reagir [ao golpe]. Embora tenha reagido com muita dignidade. Eu estava junto dele quando ele enfrentou o comandante da Marinha, que foi uma das For�as militares que deram o golpe. A Marinha sempre foi uma For�a muito reacion�ria, n�? E ele [Arraes] comportou-se com extrema dignidade. Mas nenhum de n�s tinha a dimens�o real do que estava surgindo. Carlos Duarte era um l�der comunista, que n�o mandava no partido, mas se elegia sempre vereador. N�o � um nome nacional. Carlos Duarte disse: "N�o se faz..." Como se diz? De ovos?
Omelete.
"N�o se faz omelete sem quebrar os ovos." E os Fuzileiros Navais, que eram a for�a revolucion�ria na Marinha, convidaram Arraes: "O senhor vai pro Porto do Recife" -pois a guarni��o dos fuzileiros era no porto- "que n�s garantimos o seu governo". Arraes n�o teve colh�es para ir. Passou-se assim.
Isso foi no pr�prio dia 31?
Dia 31.
Mas como chegou a not�cia [do golpe] no pal�cio?
Olhe. N�o chegava not�cia. Chegava pelas vias militares. Os jornais n�o tinham independ�ncia. Chegava pelas vias militares, com o fato consumado. Eu sa� do pal�cio do governo, tomei o carro para ir para minha casa, que era em Casa Amarela [bairro de Recife]. No caminho cruzei, quem conhece Recife vai saber, Faculdade de Direito e, ali, Largo 13 de Maio e a rua do Hosp�cio. Eu ia entrar por ali. E vi os tanques na rua. Voltei. Falei pro motorista voltar. Fui l� para o pal�cio do governo. Disse a Arraes: "Os tanques est�o na rua, governador, o senhor est� sendo preso".
Como ele reagiu?
Ele n�o se moveu. O major Hugo Trench -a tradi��o era que as pol�cias militares eram comandadas por oficiais do Ex�rcito transformados em oficiais das brigadas militares-, eu disse isso na frente do Hugo Trench. Ele era um velho quadro do Partido Comunista e era o comandante da Pol�cia Militar de Pernambuco. O Trench virou e disse ao Arraes que eu era um provocador. Eu disse a ele: "O senhor vai ver o que � um provocador daqui a poucas horas". De fato, ele foi preso (risos) porque estava a frente da Brigada Militar. Da� ningu�m podia reagir, n�o tinha for�a para lutar.
Mas e quando o fuzileiro naval fez a proposta? O que o governador disse?
Ele tamb�m n�o reagiu. Ele era a indecis�o em pessoa.
O senhor chegou a conversar com ele especificamente sobre isso? Disse "vai governador"?
Eu estava ali para isso, n�? Al�m do que, eu coloquei a Sudene � disposi��o dele. N�o era uma coisa de bravata. Porque a Sudene tinha cem picapes Willys que estavam diretamente sob minhas ordens. Eu disse a ele: "Eu tenho cem [picapes], o Trench bota um soldado com metralhadora em cada uma delas, e eu quero ver esse golpe se consumar". Ningu�m teve coragem, n�? A nossa tradi��o conciliadora nessa hora pesa.
O [ent�o governador do Rio Grande do Sul, Leonel] Brizola foi mais...
Brizola � a �nica figura que sai inteira do 31 de mar�o. Os outros todos se apequenaram. Um misto de falta de coragem e de concilia��o.
O senhor teve medo?
Eu n�o. N�o tive medo. Eu vim de uma experi�ncia de... Eu tinha sido soldado em 1952, convocado, n�? N�o consegui escapar. Eu conhecia o Ex�rcito brasileiro. O Ex�rcito n�o era de nada, gente. O Ex�rcito era armado com fuzis M�user 1914. Era um fuzil alem�o, bom para sua �poca, defasado para 1964. Isso era o Ex�rcito brasileiro. Eu conhecia porque eu servi na companhia do Quartel General.
O fuzil de 1914 poderia estar obsoleto. Mas enfrent�-lo sem nada na m�o tamb�m seria meio dif�cil, n�o?
Mas tinha. Os fuzileiros navais estavam l�.
E eles tinham equipamento moderno?
Mais moderno que os do Ex�rcito. Os fuzileiros s�o uma esp�cie de vanguarda militar brasileira. Eles s�o melhor armados. S�o poucos, mas eles s�o profissionais. Porque no sistema de recrutamento brasileiro [era assim]: no Ex�rcito voc� ficava dez meses e sa�a, porque n�o tinha dinheiro para pagar [uma perman�ncia maior]. J� os fuzileiros se profissionalizavam obrigatoriamente. Por que? Porque o per�odo deles de recrutamento era de tr�s anos.
E por que eles tinham essa caracter�stica diferente, de chegar propor uma resist�ncia ao Arraes?
N�o sei. Tinha algumas lideran�as, como o almirante [C�ndido da Costa] Arag�o, que foi sempre apequenado pela imprensa, mas ele era para valer. Os fuzileiros tinham uma tradi��o diferente. Eu n�o sei explicar. � mesmo curioso. Eles tinham uma tradi��o diferente. Eles garantiam. Se era bravata ou n�o, n�o sei. O Ex�rcito era de nada. Um peteleco acabava com aquilo. Eram mal armados, mal treinados. Eu fui do Ex�rcito, eu passei dez meses no Ex�rcito. E o que � que eu sabia de arte de guerra? Nada. � coisa que n�o se ensina no Ex�rcito. A tradi��o conciliadora brasileira � tanta, que as For�as Armadas n�o s�o ensinadas para lutar. Elas s�o ensinadas para a passeata. S�.
O que � isso (risos)? Ex�rcito de passeata?
Os fuzis que n�s t�nhamos eram fuzis de passeata. Quando voc� tinha que atirar mesmo, voc� ia para o Recife, para a regi�o chamada linha do tiro. Linha do tiro porque � l� que o Ex�rcito faz seus exerc�cios. Ent�o voc� chegava para fazer o exerc�cio de atirar, n�o era com o seu fuzil. Era com o fuzil que atirava.
O seu mesmo s� servia para o [desfile] do 7 de setembro?
�. S� servia pro 7 de setembro. Ele n�o atirava. Se atirasse, a bala poderia ir para o lugar que voc� n�o queria. Isso era o Ex�rcito brasileiro.
O senhor atirava bastante?
Nesse outro [fuzil]. No meu, n�o. Isso era o Ex�rcito brasileiro. Com um peteleco voc� resolveria aquilo. Mas ningu�m arriscava, ningu�m arriscava. Os que tinham algum poder de fogo estavam do outro lado. Eu tinha um amigo, um grande amigo meu, que infelizmente j� morreu, ele pensou que a Brigada Militar de Pernambuco iria resistir (risos). Ele era professor do curso de forma��o de oficiais na Brigada. E ele ofereceu-se para resistir. Foi preso (risos). Quando eu entrei (risos)... l� no centro da pol�cia onde fiquei preso, eu o encontrei (risos). Est�vamos n�s dois numa situa��o...
Voltando um pouco, quando o senhor foi trabalhar na Sudene. O senhor foi a convite do Celso Furtado? Foi desde o come�o?
A convite do Celso. Eu sou fundador. Honra, eu tenho. Eu era substituto do Celso.
O n�mero dois da Sudene?
�. Mas n�o por m�rito.
Confian�a?
N�o. N�o tinha confian�a nem nada. A Sudene � uma coisa extraordin�ria. Ele estava recrutando gente no Rio [de Janeiro] para formar a Sudene. E n�o era a Sudene, era Codene. Juscelino [Kubitschek], a �nica vez que eu vi o Juscelino na minha vida, foi em Garanhuns (PE), onde ele lan�ou a Opera��o Nordeste. Ele era muito cheio de bravata, tudo, mas ele era um grande presidente. A� em Garanhuns, no famoso Semin�rio de Garanhuns, ele fundou o Codene, o Conselho de Desenvolvimento do Nordeste. A mensagem estava no Congresso, e em dezembro de 1959 o Congresso cria a Sudene. O Celso recrutava pessoas. Eu estava aqui em S�o Paulo muito insatisfeito. Algu�m me deu a not�cia, "o Celso est� recrutando gente que queira ir para Recife pra fazer..." Ningu�m sabia direito o que era.
O senhor o conhecia antes?
N�o. Ele me deu aula aqui em S�o Paulo, mas n�o tinha conhecido nada. Ele deu aula a mim como deu a 50. Ent�o eu fui [para o Rio]. "Eu soube que o senhor est� recrutando profissionais"; eu levei todos os cursos que eu tinha feito, esperando que ele desse valor para aquilo. Ele n�o deu o menor valor. Ele disse: "V� l�. Voc� est� disposto a ir para Recife?" "Estou sim, senhor". "V� l� com o Medeiros". Medeiros era o bra�o dele administrativo. O Celso era muito paraibano. Todos os melhores auxiliares dele eram da Para�ba. Eu fui a exce��o, mas era de Pernambuco. Pernambuco e Para�ba s�o duas prov�ncias iguais (risos). Fui falar com Medeiros. Ele disse: "Voc� vai para Recife? Quando quer ir?". "Quando o senhor quiser." As pessoas pensam que � um grande aparato. N�o � nada. O Estado brasileiro n�o � nada. Eu fui l� falar com ele. Ele perguntou: "O que � que o senhor precisa?". Disse: "Eu preciso � de passagem, para mim e para a minha fam�lia." Ele disse: "Ent�o est� bem, volte amanh�". E foi assim.
E o Arraes nesse �poca?
O Arraes era o prefeito. Ele se elegeu governador em 1963. Ele era um prefeito arranjado, n�? Depois voc� faz as biografias. Arraes era a solu��o que a esquerda podia dar sem ser de esquerda. Ele era uma pessoa digna, era um economista –veja de onde, n�?– do Instituto do A��car e do �lcool, que era o reduto dos usineiros. O cunhado dele foi o governador Cid Sampaio. Eles eram casados com duas irm�s. O Arraes era de dentro. O pr�prio mel (risos). De repente, o sujeito vira revolucion�rio (risos). A hist�ria brasileira � quase p�ndega, n�? Era o homem errado no lugar errado. Com muita dignidade, ele nunca se entregou. Mas n�o tinha prepara��o nenhuma de revolu��o, imagina...
Como foi essa virada dele?
A virada foi das for�as sociais. Isso parece muito abstrato, mas � assim. N�o foi dele. O Recife sempre foi uma cidade de esquerda, n�? Por tradi��o e por organiza��es. Pernambuco � aquele horror das usinas, e o Recife � uma ilha. � uma cidade com certa tradi��o quase revolucion�ria. Revolu��o mesmo nunca chegou a fazer.
Ent�o foi Recife que transformou Arraes?
Foi. O Recife transformou Arraes. Transformou Cid Sampaio, que era usineiro mesmo, mas era usineiro progressista. Quer dizer, ele estava pelo desenvolvimento. N�o sabia muito o que era isso. Era um governador que a UDN fez, contra a UDN. Porque ele era do desenvolvimento econ�mico. E a UDN era legalista, moralista. Pois os dois [Cid e Arraes] eram concunhados.
Tudo em fam�lia?
Tudo em fam�lia (risos)
E agora tem o neto a� [Eduardo Campos]?
Agora o neto. O Arraes era casado com a C�lia, o Cid Sampaio era casado com a Dulce. Eram irm�s. Ele [Arraes] estava no meio do mel. E vira revolucion�rio? N�o � verdade, � preciso investigar todo o movimento social. O antecessor de Arraes, que depois voltou � prefeitura, era Pel�pidas Silveira, um tipo cl�ssico da esquerda recifense. Nunca foi do Partido Comunista porque o partido era muito h�bil. Ele n�o botava suas figuras de proa, procurava sempre... O Partido Comunista teve maioria de votos em Jaboat�o, que era uma cidade oper�ria. Conhecida como Moscouzinho.
Moscouzinho? (risos)
�. Esse era o ambiente do Recife. E esse ambiente que transformou Arraes e o governador Cid Sampaio em governadores progressistas. � abstrato dizer, mas � assim.
Mas voltando ao golpe de 64. Como foi isso? O senhor disse que demorou para perceber a dimens�o daquilo, n�?
Todos n�s demoramos. A gente pensava que iria ser um golpismo barato dos militares. Na hist�ria brasileira, isso � recorrente. Ningu�m tinha a dimens�o exata que viria 20 anos pela frente. Esses 20 anos moldaram o Brasil.
E quando o senhor percebeu que era para valer?
Demorou para cair a ficha. Para todos n�s.
Mas, olhando para tr�s agora, teria sido poss�vel perceber naquele momento?
N�o, n�o dava. Ningu�m acreditava. A hist�ria do Recife era contr�ria a isso. Era uma hist�ria progressista. Foi um dos poucos locais que 1935 teve real express�o. Foi o Rio, Recife e Natal, as tr�s capitais de esquerda. Essa tradi��o era vigorosa, n�o era fajuta. Rio Grande do Norte tamb�m elegeu um prefeito de esquerda [em Natal], Djalma Maranh�o, de uma fam�lia toda de esquerda. Os Maranh�o, no Rio Grande do Norte, s�o todos de esquerda. Em Pernambuco, s�o todos de direita. Mas � a mesma fam�lia. Demorou a cair a ficha. Seria mais um dos golpes, n�? Mais um da hist�ria republicana. N�o foi, n�?
Como afetou sua vida particular? Ali�s, como foi o desfecho daquele dia 31? O senhor voltou para o pal�cio, os fuzileiros fizeram a proposta para proteger Arraes, mas o Arraes n�o foi. E a�?
A� chegou o almirante Dias Fernandes. O c�rebro era... Era o c�rebro sem c�rebro: era o Justino Alves Bastos, um general escroto. O Ex�rcito sempre botou os seus refugos no Nordeste. Ou era refugo porque era ruim demais na carreira militar, ou era refugo porque era o c�rebro da conspira��o eterna, n�? Tanto que [Humberto] Castelo Branco foi comandante da zona militar do norte. Eram os piores, do ponto de vista de oposi��o ao regime. Ou eram os piores, do ponto de vista progressistas. Justino era desse segundo tipo. Um general escroto, que os usineiros mantinham amarrado �s d�vidas do jogo de carteado.
� mesmo?
�. Essa hist�ria eu n�o vou me dispor a contar porque tenho pouco tempo de vida. Mas � uma hist�ria sinistra. De golpes baixos. N�o tem nada grande. � uma hist�ria menor.
Mas foi Justino que chegou no pal�cio para prender Arraes?
N�o. Justino n�o apareceu. Quem apareceu foi o almirante Dias Fernandes, que era o comandante da Marinha.
Na pr�pria noite dia 31?
Na pr�pria noite. Ele chegou e, bom, falar com o governador era f�cil, naquilo ali todo mundo entrava. Ele chegou e disse... Isso [que eu vou dizer] � quase literal porque eu estava junto, n�o porque era especial, estava junto porque o Arraes me chamou. A mim e a irm� dele pelo telefone e disse: "Por favor, venha c� porque eu quero testemunhas do que vai acontecer". A irm� dele era a famosa Violeta Arraes. N�s voltamos. A� o almirante enquadrou o Arraes. Ele disse: "Governador, eu tenho a ingrata miss�o de lhe dar voz de pris�o. O senhor ser� h�spede das For�as Armadas." O Arraes respondeu. A dignidade dele mostrou-se a�. Ele disse: "Eu n�o posso ser h�spede de mim mesmo. Eu sou governador do Estado. E esta � a minha resid�ncia." Ent�o o Dias Fernandes falou: "Considere-se deposto". E levou ele para Fernando de Noronha, que era o lugar de preso pol�tico. Ele foi. N�o podia resistir. Foram ele e Seixas D�ria, que era o governador de Sergipe. Os dois �nicos presos. Os outros todos se acomodaram. Governadores de penca. F�cil. Tamb�m n�o tinham como resistir, n�? Arraes tinha.
A� ele foi para Noronha. O senhor j� esteve em Noronha?
Estive para turismo.
� bom, n�? Mas para ficar preso ali n�o deve ser bom, n�o.
Dali voc� n�o sai (risos). Tem 3 mil quil�metros de mar, cheio de tubar�o.
E o senhor, para onde foi naquela noite?
Eu voltei para casa. Voltei pensando que era mais um golpe militar farsesco. E correu tudo bem. No dia 6 de abril eles chegaram.
Mas o senhor trabalhou nesse intervalo, nos dias 2, 3, 4?
Trabalhei. Normal. Para entregar, porque a gente sabia que... Arrumar tudo para entregar a quem fosse designado. E o designado foi um coronel do Ex�rcito que trabalhava conosco. Porque o Ex�rcito tem um quadro t�cnico formid�vel. Que n�o � aproveitado em nada. Ent�o a Sudene requisitava eles. Em cartografia, por exemplo. Quem sabia cartografia no Brasil era o Ex�rcito. E cartografia mar�tima, [quem sabe] � a Marinha. Ent�o se voc� queria fazer algum trabalho de vulto em recursos naturais, tinha que ir l�. A Aeron�utica, menos. A Aeron�utica sempre se formou como uma arma reacion�ria, o que � fant�stico, n�? Porque foi uma arma criada por [Get�lio] Vargas. Mas eram muito reacion�rios. Mas voltei para casa, no dia 6 chegaram. A� me levaram para a Delegacia de Ordem Pol�tica e Social (Dops), que era chefiada pelo fac�nora �lvaro da Costa Lima, famoso no Recife por arrancar unha de comunista. Eu estava l�, ele me fez passar a noite em claro, sentado numa cadeira defronte dele. Era a primeira forma de tortura: ficar olhando para o seu torturador. Eu fiquei l�. S� que para azar dele, sorte minha, eu tinha um irm�o que era da Pol�cia Militar. Ele veio, me tirou e me levou para o quartel da pol�cia. E ele [�lvaro] ficou l� se mordendo. Ele estava louco para saltar em cima de mim.
O senhor conhecia ele antes?
Ele era famoso no Recife. Ele era o delegado que tratava os comunistas. Nesse rol ele inclu�a quem ele queria. A� [meu irm�o] me levou para a Pol�cia Militar e eu fui bem tratado, ningu�m tocou em mim. E eu encontrei o Jo�o Guerra, que era o secret�rio da Fazenda do Arraes. Ele era uma figura muito visada porque ele fazia a ponte entre a esquerda e a direita empresarial. Ficamos juntos durante 50 dias.
E diziam o qu�? O senhor foi preso exatamente pelo qu�?
E diziam?
N�o diziam nada?
Nada.
Nenhuma [informa��o]? "O senhor est� simplesmente preso e pronto", era isso?
N�o tinha acusa��o nenhuma. Est� preso e ponto. Ponto final.
E o senhor questionava, perguntava?
N�o. N�o tinha nem a quem perguntar...
Bom, o senhor sabia porque estava sendo preso [risos]?
Eu sabia [risos]. Jo�o Guerra e eu ficamos nas depend�ncias do quartel-general da Pol�cia Militar. Cinquenta dias. Tinha um coronel boa pra�a que chegava l� todos os dias, conversava com a gente [risos].
Conversava sobre o qu�?
Qualquer coisa. Menos o que interessava.
Ele sabia o que n�o podia conversar.
[O golpe] N�o era para ser conversado. Ficamos l� eu e o Jo�o. O Jo�o bebia como um nababo.
Mas como bebia? Dentro da cadeia?
Sim. Uai, ele era secret�rio da Fazenda. Ele tinha ganho uma tonelada de u�sque, o que � comum, d�o presentes. E a mulher dele ia levando uma garrafa atr�s da outra. Ele bebia no gog� [risos].
O senhor tinha que idade?
Tinha 31 anos.
Tinha filhos j�?
Tinha, tinha. Eu sou um conservador que caiu no lugar errado.
Eram quantos?
J� eram cinco.
Cinco?
�. A minha mulher levava os meninos l�, levava almo�o todos os dias. Eu engordei na cadeia, era uma coisa. Era, era terra em transe. Jo�o Guerra bebia na frente do coronel Prazeres. O coronel aconselhava ele. O doutor Jo�o chamava ele [o coronel] de doutor. Ele n�o era doutor, mas no Nordeste � assim: todo mundo que tem algum cargo importante � doutor. Ele dizia: "faz mal beber assim". O Jo�o Guerra nem ligava.
E o senhor engordou na cadeia? Hoje o senhor ri disso, mas n�o deve ter sido f�cil.
Hoje eu dou risada. � o hero�smo poss�vel, n� [risos]? Jo�o Guerra fica bebendo. Eu n�o bebia porque n�o era meu estilo. Mas chegava l� todo dia as nossas mulheres, elas levavam a xepa.
A comida da cadeia o senhor recusava?
A da cadeia a gente recusava olimpicamente.
Era uma cela, o senhor e ele numa cela?
N�o, voc� n�o acreditar�, mas era na sala do comando do estado-maior do quartel-general. Era na chefia. S� n�o podia ir para a rua. O resto podia. Ficava ali conversando com os policiais.
E esse coronel prende, deixa beber na cadeia e fica dando conselho de sa�de?
Prende e, na cadeia, ele [Jo�o Guerra] bebe na frente do coronel, que � o que est� prendendo ele. E o coronel fica dando conselho pra ele. Essa � a terra em transe. Aqui n�o � fantasia. � assim mesmo. A� ficamos l�, sem interrogat�rio nenhum, sem nada. At� que o general, agora escapou o nome dele, esse general, Castelo Branco o encarregou de verificar a situa��o in loco. Porque a arbitrariedade ocorria o Brasil todo. Ele [o general] foi, voc� veja que � terra em transe, esse general foi meu colega no curso da Cepal (Comiss�o Econ�mica para a Am�rica Larina), no Rio. Ele foi, evidentemente os presos mais ilustres ele n�o visitou [risos]. Quer dizer: isso existe em algum outro lugar do mundo? Ele foi l�. Eu relembrei a ele que hav�amos sido colegas no Cepal. Ele ficou assustado, n�? E pronto. A� mandou liberar todo mundo. Libera!
Do mesmo jeito que prendeu, libera?
�. Do mesmo jeito que prendeu, libera. Foi por isso que eu vim bater em S�o Paulo. Eu dizia: "Eu n�o vou voltar para casa agora e a cada bochicho eu sou chamado novamente, vou l�, passo algumas horas de vexame e depois volto". Voc� ficava no vai e volta, n�? Diziam at� que as pessoas mais not�veis do ponto de vista da repress�o j� tinham at� pijama e cueca separadas. J� ia para cadeia com aquilo. N�o, eu n�o ia ficar naquela situa��o.
Bom, mas a� ent�o o senhor j� tinha dimens�o que o neg�cio iria ser duradouro, certo?
A� eu j� tinha. O nosso engano n�o pode ir muito a frente. Veio pra valer. A� em vim para S�o Paulo, tinha um amigo meu que estava dirigindo uma empresa de consultoria, me convidou, eu vim pra c�. Fiquei.
O senhor disse l� no come�o que foi um regime que moldou o pa�s. Como o senhor define esse per�odo de 20 anos?
Esse per�odo � muito parecido com a hist�ria mundial. A hist�ria mundial do capitalismo. O capitalismo –salvo na Inglaterra, que � a matriz original- em todos os pa�ses e sociedades, ele se imp�s pela for�a. Os Estados Unidos parecem ser um caso � parte, mas n�o tanto. Nos EUA, a conquista do oeste, mudou os EUA. E a conquista do oeste � uma fa�anha da cavalaria. Uma ocupa��o militar, portanto, antes da ocupa��o civil. O Brasil portanto se insere na hist�ria mundial como um "caso belli". Quer dizer: o desenvolvimento brasileiro � marcado pela a��o do Ex�rcito como for�a civilizadora. E como for�a do capitalismo. Ele toma essa fei��o. Ele n�o se endere�a a regi�es em nome disso, mas termina sendo.
� consequ�ncia?
Sim, consequ�ncia. Porque voc� n�o muda sociedade conservadora escravista pelos bons modos. N�o h� caso no mundo, mesmo nos EUA. Tem de ser na porrada para destruir as for�as que sustentam o outro sistema.
No caso brasileiro, foi a ditadura?
No caso brasileiro j� tinha sido Vargas. Sobre Vargas � preciso despojar-se dos preconceitos. Os nossos preconceitos, da esquerda, � que Vargas foi um ditador. S� que ele tinha a clareza de saber que essa sociedade s� se reforma pela for�a. Leia este livro do Lira Neto, que � a biografia do Get�lio, est� tudo ali. Ele tinha total consci�ncia. Porque a gente caricaturou o Vargas. A esquerda n�o entendeu, n�o podia admiti-lo como seu e o caricaturou. Na verdade Vargas � o oposto do que a esquerda o caricaturou. Era um tipo cultivado, e cultivado com a melhor da tradi��o filos�fica ocidental. N�o era um Jo�o-ningu�m. E fez uma obra de estadista, que ningu�m repetiu. N�s temos enorme dificuldade [para lidar com ele] porque este era o papel da esquerda. Ele fez. E n�o se pode dizer que foi a direita. [Vargas] � um tipo politicamente dif�cil de classificar, de definir de forma muito esquem�tica. � preciso um trabalho, que o Lira Neto faz muito bem. Enfim, a grande transforma��o veio por a�, n�o veio pelas for�as progressistas. Ele criou o Estado moderno no Brasil. S� h� uma institui��o brasileira que n�o � obra de Vargas, que � o Banco Central. Todas as outras s�o cria��es do per�odo Vargas. � fant�stico, isso. Quando o Fernando Henrique disse que ia ser presidente para encerrar a era Vargas, ele n�o sabia o que estava dizendo. S� o Banco Central, assim mesmo o Vargas criou a Superintend�ncia da Moeda e do Cr�dito, que � o antecessor. Ent�o, o que ficou para completamento daquela abertura para o sistema capitalista, a� a ditadura fez.
Ela encerrou o servi�o?
Ela encerrou o servi�o usando, similarmente a Vargas, a for�a do Estado, o poder de coer��o. Para uma burguesia que n�o tinha projeto nacional. Que era uma grande merda. E para uma esquerda que j� tinha sido superada. Se voc� ler a hist�ria de [Lu�s Carlos] Prestes, tem um livro a� interessante, que n�o achei na livraria, mas eu sei que existe, � de uma tese, acho que na USP. O livro � "Prestes, o mito e a lenda". Essa pessoa que fez a tese, acho que � uma mulher, ela faz um esfor�o de revirar, como quem diz "Prestes n�o � essa coisa toda". Eu n�o li o livro. Talvez ela esteja equivocada. Prestes, de fato, pessoalmente � uma enorme decep��o. Mas � o prestismo: a forma pela qual o Partido Comunista influenciou na pol�tica brasileira que � interessante. Prestes talvez n�o. Prestes, afinal de contas, casou-se virgem, aos 50 anos. Quer dizer: ningu�m acredita numa coisa dessa, n�? (risos) No pa�s da putaria, como � que o l�der da esquerda, o l�der progressista casa virgem aos 50 anos (risos)?
Casa, n�?
Casa. Ainda casa! Ele n�o se juntou, ele casou. Mais essa. A grande heran�a do prestismo � essa. E ent�o os militares completaram. Completaram com o qu�? Usando, de forma abusada, e sem dar satisfa��o a ningu�m, o poder do Estado para, a� sim, para alavancar o capitalismo brasileiro. Sem conversa fiada. A obra de Vargas foi criar o aparato social. E a parte deles [da ditadura] foi completar com a parte econ�mica, coisa que o Vargas tocou s� com a [Companhia] Sider�rgica Nacional. Essa � a obra que ficou, de 1964 a 1984. Eles usaram as empresas estatais com uma desfa�atez que nem o esquerdista mais rancoroso teria. E completaram a obra. N�o sobrou nada. Essa � a obra deles. E � o legado porque, a partir da�, eles conformaram o tipo de crescimento capitalista no Brasil de uma maneira que voc� n�o tem como mudar. A n�o ser com uma grande revolu��o social, para qual n�o tem demanda. N�o tem o que fazer. Ningu�m est� pedindo isso.
De 1985 para c� j� s�o mais de 30 anos. � o per�odo democr�tico mais longo desde a Rep�blica. O que tem a dizer sobre isso?
Isso, infelizmente, s� confirma o legado dos militares.
Por qu�?
Porque a democracia, como existe no Brasil, n�o tem for�a social nem pol�tica para mudar o rumo das coisas. Ela n�o... Se voc�... A grande for�a pol�tica que moldou as institui��es brasileiras [no per�odo recente] foi o PMDB. O programa econ�mico do PMDB n�o � nada. Ele n�o tem um programa econ�mico. Devo dizer isso at� porque o programa social do PMDB foi o Cebrap (Centro Brasileiro de An�lise e Planejamento) que fez. N�o deve ser dito assim, porque, de fato, foi um grupo de pessoas, comandado pelo Fernando Henrique [Cardoso], que fez o programa do MDB. Entre os quais eu estava, ele pr�prio, o Chico Weffort, o Luiz Werneck Viana, do Rio, a Maria Herm�nia Tavares de Almeida, de S�o Paulo. Foi esse grupo que fez o programa e que entregou ao Ulysses Guimar�es. N�o era o grupo inteiro do Cebrap. Teve gente do Cebrap que at� surpreendentemente n�o participou. Paul Singer decidiu: "n�o entro, esse n�o � o programa dos meus sonhos, n�o vai". O programa econ�mico era isso.
E o PT?
O programa do PT... O PT tem uma interpreta��o do Brasil? N�o tem. O programa do PT � o de qualquer ONG. � melhorar a distribui��o da renda, � n�o sei o qu�. Tudo palavreado. N�o tem for�a para fazer nada. Porque os militares j� tinham feito.
O (fil�sofo) Marcos Nobre, do Cebrap, diz que o que o PT e o PSDB fizeram no per�odo recente foi s� disputar quem iria dirigir o pemedebismo.
Foi. Foi s� isso. Marcos est� certo.
Ela fala como esse pemedebismo vai se moldando ao longo do tempo, mas para deixar tudo igual. Sempre para adiar qualquer chance de transforma��o.
Est� certo ele, mas est� errado no seguinte: isto � a transforma��o. Porque � a possibilidade que as for�as pol�ticas, tal como elas existem no Brasil, t�m de tocar esse capitalismo. Outro [caminho] requereria uma articula��o revolucion�ria que n�o est� na sociedade. N�o est�. Nenhuma das grandes for�as sociais � revolucion�ria. Como � que voc� faz revolu��o sem for�a revolucion�ria? N�o faz. Ent�o � o que � poss�vel. � a teoria do possibilismo, � o que est� ao alcance dessas for�as.
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