Sophie Calle exp�e besti�rio afetivo no Museu da Ca�a de Paris
"Cortar, desmembrar, abrir, eviscerar, estripar, cercar...": a voz da artista contempor�nea francesa Sophie Calle inunda o corredor do segundo andar do Museu da Ca�a e da Natureza ("Mus�e de la Chasse et de la Nature"), em Paris, reproduzindo termos sa�dos do vocabul�rio da ca�a como num estranho pesadelo.
As paredes repletas de trof�us de antigas ca�adas, o ch�o forrado de tape�arias e, no meio da sala de armas, um gato empalhado surge sobre uma poltrona, uma corda em volta do pesco�o, como se houvesse cometido suic�dio.
O jogo de cena faz parte de "Beau Doubl� Monsieur Le Marquis! ", exposi��o de Sophie Calle e Serena Carone que estreou no dia 10 de outubro e fica em cartaz at� 11 de fevereiro na capital francesa. A mostra traz novos e antigos trabalhos de Calle, enfant terrible da arte conceitual, num di�logo art�stico com Carone, velha amiga e parceira de longa data, especialista em esculturas em faian�a.
"Pensei em Sophie Calle no primeiro momento, para ocupar o museu com suas obras. Sophie decidiu ent�o convidar Serena, artista que ela admira. S�o dois trabalhos diametralmente opostos. Sophie � uma artista conceitual, ela inventou um formato que associa a imagem ao texto, uma linguagem pura, enquanto Carone realiza um trabalho manual ultrassofisticado, sua obra parece uma incr�vel loja de curiosidades. N�s achamos interessante fazer dialogar dois trabalhos muito diferentes, mas que se parecem nesse olhar de estranheza e de auto-ironia", explica Sonia Voss, curadora da exposi��o.
"Este � o desafio: atrair um p�blico a um museu dedicado � ca�a, coisa pela qual poucas pessoas se interessam normalmente na cidade, em Paris. De um lado, descobrimos uma antiga tradi��o [a ca�a] e, de outro, os artistas ressignificam e reativam seu trabalho expondo-o aqui, nos obrigando a olhar diferentemente seu trabalho, obras que vimos anteriormente em galerias ou museus mais cl�ssicos, com muros brancos etc", detalha Voss sobre "Beau Doubl�, Monsieur Le Marquis!".
Sophie Calle dedica a exposi��o a seu pai, Bob Calle, morto em 2015, seu "primeiro espectador". A homenagem ao pai, que abre a primeira s�rie de trabalhos no primeiro andar do Museu da Ca�a e da Natureza, d� o tom da peregrina��o art�stica pelo universo da artista: uma foto em primeiro plano de um carneiro, cego pelos seus pr�prios chifres. Touch�!, diria o senhor Marqu�s.
M�rcia Bechara/RFI | ||
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As artistas Sophie Calle e Serena Carone em na exposi��o "Beau Doubl�, Monsieur Le Marquis" |
REPERT�RIO DE CA�ADORES
"Serena e eu procuramos durante muito tempo um t�tulo para essa exposi��o. Um t�tulo que mostrasse que �ramos duas a expor, que desse destaque � dupla de artistas, e que fizesse parte, ao mesmo tempo do vocabul�rio da ca�a. Serena havia pensando algo como golpe duplo ["coup double"], n�o �?", pergunta Sophie Calle � Serena Carone, durante conversa com a RFI Brasil.
"Sim, mas me lembrei de uma velha propaganda, que passava o tempo todo na televis�o, h� cerca de 30 anos atr�s, que vendia cartuchos de muni��o. Um homem sentado � mesa gritava 'Beau Doubl�, Monsieur Le Marquis'. Achei exagerado, mas Claude D'Anthenaise, diretor do museu, achou bem apropriado", diverte-se Carone.
Ambas as artistas, durante o processo de cria��o da exposi��o, fizeram uma esp�cie de resid�ncia na casa de campo do Museu da ca�a e da natureza, na regi�o de Ardennes, no norte da Fran�a, para descobrirem e se acostumarem in loco ao repert�rio da ca�a e dos ca�adores.
No fundo da sala, ainda no t�rreo, um enorme dispositivo catalisa a experi�ncia visual provocadora de Sophie Calle –seu "t�mulo", uma obra "sepulcral" revisitada por seus animais de estima��o empalhados [a "m�e", a girafa Monique; o "pai", o tigre "Bob", entre outros "bichos"], e protagonizado por uma escultura de mulher em tamanho real em faian�a, simbolizando a pr�pria artista, realizada por Serena Carone em detalhes impressionantes.
"N�s tentamos interagir dessa forma. Por exemplo, quando vou ver meu vendedor de peixes, porque fiquei sem ideias criativas, e dou de cara com um cartaz onde est� escrito 'procure ideias com seu vendedor de peixes', e que este vendedor de repente me diz 'os artistas gostam muito de trabalhar com a pele do salm�o', e Serena tinha feito uma obra retratando peles de salm�o em cera, tudo faz sentido de repente; �s vezes as coisas foram criadas com essa leveza e �s vezes tentamos investigar mais profundamente, como no meu "t�mulo", executado por Serena", explica Sophie Calle.
No primeiro andar do museu, obras famosas de Calle ganham nova dimens�o, imersas no cen�rio das ca�adas. Assim, ao lado da cole��o de fuzis, na sala de armas, o trabalho "Coeur de cible" (1990/2003) ["Cora��o de alvo", em tradu��o livre] ganha nova dimens�o.
A obra, inspirada por fotografias de jovens detentos, utilizadas como alvos de tiro durante o treinamento de policiais norte-americanos, � disposta ao lado de "Libert� surveill�e" (2014) ["Liberdade vigiada"], que mostra imagens de recenseamento de popula��es de animais noturnos, feitas por meio da t�cnica de raio X.
No meio do besti�rio de Sophie Calle, as cria��es pl�sticas de Carone: uma pele de urso polar branco em cer�mica na frente da lareira, um Octopus multicolorido em faian�a, mini cachorros feitos de mousse pl�stica e outras criaturas povoam a sala de estar do museu.
"PROCURA-SE JOVEM VI�VA MESMO DOENTE"
No segundo andar, o visitante � acolhido por "Suite v�nitienne" ["Sequ�ncia veneziana", em tradu��o livre], trabalho hist�rico de Sophie Calle de 1980, apresentado dentro das vitrines de porcelana da "se��o dos macacos" do Museu da ca�a e da natureza". O estranhamento n�o para por a�. Calle se apropria do conceito de ca�a em todas as acep��es poss�veis, estendendo-o ao dom�nio da linguagem pura. Assim, um dos roteiros da mostra apresenta ao espectador uma s�rie de an�ncios amorosos, retirados das p�ginas do jornal "Le chasseur fran�ais" ("O ca�ador franc�s").
A justaposi��o das mensagens, com textos como "procura-se jovem com gostos simples", ou "procura-se jovem vi�va mesmo doente", ao lado de imagens como a gaiola com um casal de periquitos em faian�a de Serena Carone, destacam a solid�o da busca amorosa, na sequ�ncia "Le Chasseur fran�ais" (2017).
Para finalizar a trajet�ria xam�nico-afetiva da exposi��o "Beau Doubl�, Monsieur Le Marquis!", no Museu da Ca�a e da Natureza de Paris, uma pergunta: se voc� fosse um bicho, quem voc� seria? "Um polvo!", responde de imediato Serena Carone � RFI Brasil.
"Sem d�vida muito �til para uma escultora", diverte-se. "Eu sou mais banal, eu sou um gato...", afirma Sophie Calle. "Porque � de uma banalidade total, � verdadeiramente 'o' animal de companhia, o mais �bvio, � mais f�cil ter um gato do que uma serpente. E tamb�m porque tive gatos pelos quais fui apaixonada, como o Faux Souris (Falso Ratinho, em tradu��o livre), meu �ltimo gato [morto em 2017, a quem a artista dedicou uma coluna no Le Monde]. Sim, eu gostaria muito de ser um gato! � independente, carinhoso, cuidadoso, limpinho, como eu, que sou man�aca por limpeza", finaliza Sophie Calle, explodindo numa gargalhada.
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