Depoimento
Depoimento: Realidade virtual de I��rritu est� mais para game do que cinema
Quando participei do experimento de realidade virtual que o mexicano Alejandro Gonz�lez I��rritu, diretor de "Birdman", montou em Cannes, me senti quase como devem ter se sentido os primeiros espectadores do cinema: aqueles que quiseram fugir da sala com a proximidade da locomotiva de "Chegada de um Trem � Esta��o de La Ciotat", primeiro filme da hist�ria.
N�o que a coisa seja pavorosa a ponto de se querer sair correndo. Mas como � nova, d� vontade de sair por ali, tateando para compreender o que � real diante dos olhos.
"Carne y Arena", primeiro projeto de v�deo imersivo a integrar a mostra francesa, permite ao espectador entrar e interagir com a hist�ria que est� sendo contada: no caso, quase sete minutos que recriam uma viagem de imigrantes ilegais pelo deserto da fronteira entre Estados Unidos e M�xico.
A instala��o ficar� exposta ao longo dos 10 dias do festival, aberta apenas a jornalistas convidados. A Folha foi um dos ve�culos chamados a testar o experimento.
Na noite desta quinta (18), um carro que me esperava nas imedia��es do Palais du Festival, onde ocorrem as exibi��es me levou at� um hangar a meia hora do centro da cidade de Cannes. Tudo era guardado em segredo. Faltava s� imaginar o motorista vendando os meus olhos...
Na entrada do hangar, um painel disp�e o manifesto escrito por I��rritu, em que ele descreve como passou quatro anos criando o projeto e que seu desejo � que o tema -a imigra��o ilegal– seja apreendido pelo espectador al�m da mera estat�stica.
Depois da leitura, uma guia me levou at� uma pequena antessala gelada que recria os compartimentos em que os imigrantes ilegais s�o detidos ao cruzarem a fronteira. Espalhados por ali h� objetos de pessoas reais que empreenderam a viagem: mochilas, sapatos, figuras religiosas.
Tamb�m sou levado a tirar meus t�nis e minhas meias e deix�-los ali. A guia avisa que s� posso cruzar a segunda porta quando soar o alarme.
Ele soa. Puxo o trinco e me deparo no meio de um enorme galp�o com o ch�o recoberto de areia. H� tr�s pessoas ali no fundo. Uma delas coloca uma mochila nas costas, um fone de ouvido e um capacete com visor que ir� reproduzir a experi�ncia de realidade virtual. "Pode come�ar?", perguntam. Pode.
Surgem as imagens imediatamente e eu me vejo como se teletransportado para o meio de um deserto iluminado parcamente pelo que parecem ser os primeiros raios da manh�. O horizonte � de 360�: areia, arbustos, cactos por toda a parte, mas ningu�m � vista. Ent�o ouvem-se vozes.
S�o de um grupo de umas dez pessoas que correm tr�pegas em minha dire��o: uma mulher mais velha est� mancando, ajudada por quem parece ser a sua filha. H� dois sujeitos que n�o falam espanhol; s�o ind�genas. Est�o todos exaustos e abatidos.
Apressei o passo para me aproximar deles: os rostos s�o bem-feitos, mas as fei��es parecem mais as de personagens de videogame do que a de pessoas capturadas em v�deo. Ali�s, toda experi�ncia parece mais videogame do que cinema em si.
A areia machuca os p�s. O vento, reproduzido sabe se l� como, sacode a roupa.
Eis que surge um clar�o e um barulho de helic�ptero. � a pol�cia da fronteira. Abaixem-se, recomenda um dos imigrantes. Fui impedido de obedecer ao conselho pelo meu pr�prio senso de rid�culo diante dos tr�s guias de carne e osso que deveriam estar me vigiando na sala enquanto eu passava pela experi�ncia.
Sirenes �s minhas costas. Empunhando metralhadoras surgem tr�s policiais americanos que d�o ordens de pris�o aos imigrantes. Eles n�o d�o mostras de que me enxergam. Os pastores alem�es que os acompanham latem alucinadamente.
Chego mais perto e resolvo encostar num dos guardas. Sou "absorvido" pelo personagem e me vejo como se estivesse dentro de seu corpo, olhando o cora��o bater. Fora do corpo do personagem continua a recria��o da deten��o dos imigrantes.
S� no fim, ao cabo de seis minutos e meio, � que um dos policiais percebe a minha presen�a e empunha a arma em minha dire��o. Ele mira e me manda deitar no ch�o. Mais uma vez sou impedido pelo sendo de vergonha extra-virtual. Nem a metralhadora inibe meu superego.
Acaba a experi�ncia. Tiro os �culos, a mochila, o fone e sou levado a um corredor que enfileira as hist�rias reais das pessoas que inspiraram a cria��o dos personagens que eu vi na realidade imersiva. Uma guatemalteca conta que teve medo de ser estuprada, o hondurenho diz que abandonou seu pa�s para escapar �s gangues, um terceiro fala que teve de fazer a travessia ainda crian�a, com o irm�o ca�ula.
O principal m�rito do experimento de I��rritu � que a cria��o de empatia com a hist�ria daquelas pessoas depois de passar pela imers�o � maior do que a que haveria se ele houvesse produzido um document�rio tradicional. Tudo porque o projeto permite experimentar um pouco da sensa��o de estar sozinho no deserto e ser encurralado por um bando de policiais truculentos ao lado de gente sofrida.
Ainda assim, seja pelo aspecto visual mais pobre ou pela narrativa fren�tica, tudo tem mais cara de videogame do que de cinema em si.
Passar pela experi�ncia, contudo, n�o deixa de ser interessante numa edi��o em que o principal debate � o racha entre salas tradicionais de exibi��o e os servi�os de v�deo sob demanda e o que reveste um filme de seu car�ter cinematogr�fico.
Imers�o � parte, � ir�nico participar dessa experi�ncia de priva��o e logo depois voltar � luxuosa sede do festival a bordo de uma das confort�veis Mercedes � disposi��o dos inscritos.
O jornalista GUILHERME GENESTRETI se hospeda a convite do Festival de Cannes
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