Livraria da Folha

 
20/01/2010 - 19h14

HQ nacional "Yeshuah" ressalta o lado humano de Jesus

GUILHERME SOLARI
colabora��o para a Livraria da Folha

Divulga��o
Maria na capa de "Yeshuah": adolescente amedrontada
Maria na capa de "Yeshuah": adolescente amedrontada

"Yeshuah" � o resultado de quase dez anos de obsess�o do quadrinista Laudo Ferreira Jr. em mostrar a sua vis�o pessoal da trajet�ria de Jesus e outras figuras b�blicas.

A HQ busca inspira��o n�o em est�tica pasteurizada e "pura" dos eventos b�blicos, como encontrada nos grandes �picos hollywoodianos, mas nas imperfei��es humanas de filmes como "O Evangelho Segundo S�o Matheus", de Pasolini. "Yeshuah" tamb�m utiliza como fonte principal diversas fontes ap�crifas, mostrando lados diferentes de personagens como Maria, Jos�, Pedro, Jo�o Batista e Maria Madalena.

O quadrinista conversou com a Livraria da Folha sobre porque criou uma vers�o pessoal de uma figura t�o forte e controversa, seu processo de pesquisa e as dificuldades de se fazer uma HQ autoral no Brasil.

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Livraria da Folha - O que lhe atraiu para criar a sua vers�o autoral sobre Jesus?

Laudo - Estudando um pouco sobre a trajet�ria da hist�ria dele � curioso vermos o rumo que aquele pregador judeu morto pelo Imp�rio Romano tomou e tudo que aconteceu desde ent�o at� os dias de hoje. A forma que os cat�licos mais fervorosos o enxergam. Essa maneira absolutista de encar�-lo impossibilitando at�, de certa forma, de pensar que um dia ele foi algu�m como n�s. Isso claro, falando para os que acreditam em sua exist�ncia. Eu acredito. Mas por outro lado temos os que negam a sua exist�ncia e mesmo a de Deus, aquele da barba branca ou qualquer outra forma de interpreta��o. No entanto ainda estamos sob formas, sob apar�ncias, para os que cr�em ou n�o. Quando voc� come�a a entrar em alguns est�gios um pouco mais profundos e, digamos assim, mais simples de f�, de ideia do que � sagrado, essas coisas caem por terra. A f� n�o precisa disso. A f� n�o precisa orar e temer uma imagem de um homem sendo executado que � o que vemos nas igrejas. Ficou aquela coisa de pensarmos no Filho de Deus, aquele que deu sua vida por n�s. Ent�o ficamos todos num estado de "�rf�os de Jesus" quando o certo seria andarmos pelas nossas pr�prias pernas e temos a� o sagrado, o nosso Deus interior. Essas quest�es sempre foram perenes para mim e com o passar dos anos, do amadurecimento, melhor eu as entendia. Durante todos esses anos que trabalho produzindo meus quadrinhos, sempre vez ou outra jogava quest�es assim mesmo que discretamente, at� que chegou o momento em que me julguei suficientemente maduro, em meu trabalho pelo menos, para contar algo mais direto. E Jesus era o cara a se falar, sem d�vida.

Divulga��o

Livraria da Folha - Jesus � um personagem complexo por sua import�ncia religiosa para grande parte da humanidade e pelo excesso de vers�es sobre sua vida, muitas delas controversas; que v�o de salvador da humanidade, a fil�sofo, a alien�gena a at� alguns que questionam a sua exist�ncia hist�rica. Como essa complexidade influenciou a sua vers�o pessoal?

Laudo - Digamos que tudo isso entrou no caldeir�o na hora de conceber a minha vers�o. Na realidade um detalhe a mais que me peguei foi Jesus como uma ideia. Muito mais que o homem que fazia milagres, h� uma ideia dentro desse homem e ele por si � uma. E essa ideia � importante que a queiramos, que a tenhamos como fonte e meta de vida. Ela � b�sica, o amor, o entendimento e � isso que est� nas palavras de Jesus e a� n�o importa sentar numa mesa de bar e discutir se ele existiu ou n�o, se ele � filho de Deus, se trepou com Madalena, essas coisas l� no final, n�o importam, importa � a ideia de humanidade que ele e tantos outros avatares deixaram e que a gente a cada dia que passa percebe o quanto � mais dif�cil de exercer. Esse � o princ�pio da concep��o do meu Jesus nessa hq. Ele plenamente humano. Essa aproxima��o sagrado-humano � a fonte central da trilogia "Yeshuah", at� mesmo para que possibilite a melhor aceita��o do leitor.

Livraria da Folha - No posf�cio voc� menciona influ�ncias do filme "O Evangelho Segundo S�o Matheus", de P�er Paolo Pasolini, no que diz respeito a dar imperfei��es humanas aos personagens como dentes quebrados, roupas encardidas e pele ruim. Qual voc� considera a import�ncia de trazer essa humaniza��o a uma figura muitas vezes retratada de forma impecavelmente pura como Jesus?

Laudo - Dentro dessa perspectiva, a influ�ncia de filmes do Pasolini � fundamental. N�o h� como pensar, conceber um visual hollywoodiano para essa hq, ou seja, roupas bonitas, alinhadas, cabelos bem feitos e penteados, como? Mesmo a pessoa que n�o se interessa pelo assunto n�o acredita que tenha sido desse jeito. A figura europ�ia que acostumamos com o passar dos s�culos a crer, ou seja, o loiro de olhos azuis, barba e cabelos penteados e finos e de roupas claras e limpas, � imposs�vel se pensarmos em termos hist�ricos. O pr�prio Jesus como o retrato na hq tem um rosto forte e duro, fei��es incisivas. Ele � um l�der, ele � uma pessoa carism�tica e ao mesmo tempo com uma profunda no��o do sagrado dentro de si. E � claro, n�o se pode esquecer que ali, ele � um judeu, andando, vivendo na Palestina de dois mil anos atr�s. N�o penso muito como ele supostamente deve ter sido, nunca passou isso pela minha cabe�a, por�m o meu Jesus, em minha hq, � assim.

Livraria da Folha - Maria � retratada, n�o como um s�mbolo perfeito de maternidade, mas como uma adolescente assustada com acontecimentos al�m de seu poder e compreens�o. Por que voc� escolheu essa caracteriza��o mais fr�gil para ela?

Laudo - Quando optei em contar a hist�ria do nascimento como primeiro volume dessa trilogia, a cl�ssica hist�ria do evangelho can�nico sobre o nascimento de Jesus estava perfeita para ser trabalhada dentro de minha perspectiva. Portanto n�o me interessou questionar se � real, veross�mil a quest�o da insemina��o divina. O que me interessou foi pensar em como aquela menina iria lidar com os fatos: o que � tudo aquilo? Deus colocou uma crian�a para eu parir? Mas por que eu? E por que n�o pude t�-lo como qualquer outra mulher? Essas quest�es que inicialmente se mostram confusas na cabe�a de menina Maria, conforme o tempo vai passando, depois de parir a crian�a, v�o se assentando e a menina do come�a termina seu caminho agora uma m�e, crescida, pronta para proteger sua cria que por si s� j� � divina. A quest�o dessa fragilidade � fundamental para a "personagem" Maria, ela, afinal de contas, � a hero�na dessa primeira hist�ria, ela mesma tem seu processo de reden��o. Alguns [evangelhos] ap�crifos que contam a hist�ria do nascimento Jesus mostram Maria como uma menina realmente. Um deles, conta que ela fora criada no templo junto com outras meninas e que logo que chegara a �poca de sua primeira menstrua��o, fora devolvida aos seus pais, pois o ato de menstruar iria macular o templo. E � desse princ�pio de texto ap�crifo que parti o roteiro dentro da hist�ria da pequena Maria.

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Livraria da Folha - A sua pesquisa foi muito al�m das fontes corriqueiras sobre Jesus, mas passou por refer�ncias como misticismo, budismo, islamismo, Cabala. De que forma essas fontes se integraram � obra?

Laudo - N�o da forma "liter�ria" digamos assim, mas o que isso pode trazer para mim, de forma mais �ntima. De mais sagrado e sem estar ligado a esse ou aquele "Deus" ou profeta. Pois, na verdade, tudo converge para um mesmo lugar e a� est� as respostas que pelo menos tento colocar um pouco na hq, mesmo, claro, ela tendo seu enredo, seu ritmo.

Livraria da Folha - Quais s�o as dificuldades em se fazer um quadrinho autoral no Brasil?

Laudo - A situa��o dos quadrinhos nacionais de uns dois anos para c� tem melhorado gradativamente. H� possibilidades acontecendo, coisas como o ProAc da Secretaria da Cultura tem possibilitado muito projeto engavetado de acontecer, por outro lado, as editoras est�o se mostrando mais interessada nos quadrinhos e nos artistas nacionais. Prova recente disso � uma editora do peso da Cia. das Letras criar um selo espec�fico de quadrinhos. Por�m, claro, nem tudo � lindo e o autor tem que labutar muito, pois produzir um trabalho autoral requer disponibilidade do tempo do artista com o tempo de outros trabalhos. E � claro, o trabalho pronto precisa sim estar na mira do que a editora quer. Com "Yeshuah" rodei muito, muito, muito. Alguns editores sacaram a id�ia do trabalho, outros n�o, e outros nem mostraram interesse, � assim. Com a Devir a coisa aconteceu, eles antes de tudo entenderam a id�ia do quadrinho e isso foi perfeito.

Livraria da Folha - O primeiro quadrinho acompanha os acontecimentos antes do nascimento de Jesus at� o momento que ele tem uma revela��o. E quanto ao segundo? Qual a previs�o de lan�amento?

Laudo - O segundo mostra, digamos assim, a vida p�blica de Jesus. Entram outros "personagens", os seus seguidores, ou ap�stolos para ficar mais entend�vel. A figura da Maria Madalena que aparece no final desse primeiro volume, � uma das figuras chaves dessa segunda parte. O roteiro mesmo seguindo alguns fatos dos evangelhos can�nicos e de alguns ap�crifos, � mais descompromissado que esse primeiro que � mais preso ao que conta o Novo Testamento. Os desenhos est�o prontos e eu e o Omar (o arte-finalista da hq) estamos trabalhando na montagem da edi��o, capa, baloniza��o, etc. At� mar�o, devo levar um boneco para editora e at� maio a edi��o em si pronta, a� � com a editora.

Livraria da Folha - Recentemente, Robert Crumb lan�ou uma vers�o em quadrinhos do livro do "G�nesis". O que voc� achou da obra?

Laudo - Gostei muito. Crumb � Crumb e ponto final. Muita gente esperava algo pol�mico, mesmo ele dizendo que iria desenhar o que o texto do Velho Testamento conta e que ele por si j� trazia pol�mica e na verdade a surpresa foi que ele foi para um outro caminho. � fundamental pensar que a rebeldia, irrever�ncia dele pode estar num outro "est�gio" e o pessoal talvez tenha esperado o "antigo" Crumb. G�nesis � uma tremenda obra. Irremedi�velmente muita gente compara a obra do Crumb com minha hq. � normal e at� entendo, embora sejam coisas diferentes. Cada uma na sua fun��o.

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