A gera��o que pode viver menos que os pais porque n�o sabe comer �e como reverter a tend�ncia
"Olha s�, a arvorezinha! � o br�colis! Cheira, sente o gosto!"
Sentadas em roda a pedido da nutricionista Mariana Ravagnolli, as oito crian�as de menos de dois anos pegam o br�colis, amassam, p�em na boca. A "arvorezinha", assim como outras verduras e legumes, n�o era parte da rotina alimentar de muitas delas.
As crian�as est�o no Centro de Recupera��o e Educa��o Nutricional (Cren) da Vila Jacu�, extremo leste de S�o Paulo, para tratamento de desnutri��o –elas simplesmente n�o vinham ingerindo nutrientes o bastante para se desenvolverem at� de chegarem ali, seja por comerem pouco ou por comerem mal.
Karina, de um ano e oito meses, frequenta o local diariamente h� um ano. Era um dos casos mais agudos. "Quando chegou aqui, ela mal se mexia no beb� conforto", conta Ravagnolli � BBC Brasil.
Hoje, com apenas seis quilos, a menina ainda � pequenina para sua idade –nessa mesma faixa et�ria, a maior parte das meninas pesa pelo menos 10,5 quilos, de acordo com a tabela de refer�ncia da Organiza��o Mundial da Sa�de. Mas agora Karina tem energia. Ela experimenta o br�colis e passeia pela sala, oferecendo-o aos amigos.
"Ela evoluiu muito em desenvolvimento. At� aparece de vez em quando com aqueles arranh�es de quem cai enquanto brinca", conta Ravagnolli.
A "aula" de br�colis � uma das estrat�gias do Cren para educar o paladar dos cerca de 80 beb�s, crian�as e adolescentes atendidos no local, que � conveniado � Prefeitura de S�o Paulo. Trata-se da oficina semanal de texturas e sabores, em que os menorzinhos podem cheirar, tatear e provar alimentos in natura que n�o costumavam estar no seu card�pio.
A ideia � justamente reduzir a resist�ncia deles a comidas que, embora nutritivas, podem causar estranheza ao paladar.
Pelos corredores do Cren passeiam desde crian�as muito franzinas, como Karina, at� outras que est�o claramente acima do peso, como Beatriz, que aos quatro anos j� sofre com bullying na escola por conta da obesidade. Tanto Karina quanto Beatriz est�o, segundo par�metros m�dicos, desnutridas.
� o desafio do Brasil do s�culo 21: a desnutri��o � um mal causado tanto pela falta de comida na mesa quanto pela m� alimenta��o, em uma �poca em que crian�as est�o desde cedo expostas a salgadinhos, produtos l�cteos artificiais e a�ucarados, bolachas recheadas e outras guloseimas ultraprocessadas que s�o usadas como substitutas de alimentos –mas que n�o suprem necessidades nutricionais.
"� o que chamamos de furac�o da desnutri��o: um problema com muitas causas", explica Ravagnolli.
"Temos desde fam�lias desestruturadas, que n�o d�o conta de cuidar das crian�as como elas precisam ou n�o t�m dinheiro para alimentos saud�veis, at� fam�lias bem organizadas, mas sem informa��es, ou que moram ao lado de um mercadinho onde se vendem v�rias 'besteiras', mas precisam pegar um �nibus para chegar � feira para comprar verduras."
O resultado � que o Cren chega a atender casos em que as crian�as sofrem, ao mesmo tempo, de anemia (car�ncia de nutrientes essenciais como ferro e zinco) e de colesterol alto (causado, muitas vezes, pela ingest�o excessiva de alimentos gordurosos).
VULNERABILIDADE
Dados de 2016 do Minist�rio da Sa�de indicam que 7% da popula��o brasileira est� desnutrida e 20% sofre de obesidade.
O esfor�o de d�cadas contra a desnutri��o infantil fez com que o Brasil fosse elogiado pela Organiza��o das Na��es Unidas (ONU) em 2010, quando foram apresentados dados compilados do per�odo entre 1989 e 2006 (e que ser�o atualizados em pesquisa a ser publicada no ano que vem). Nesse per�odo, caiu de 7,1% para 1,8% o percentual de crian�as de at� 5 anos com baixo peso para idade; e com baixa altura, de 19,6% para 6,8%.
� nessa idade, por�m, que, se necess�rias, as interven��es s�o cruciais.
A desnutri��o na inf�ncia causa, al�m do aumento da mortalidade e da recorr�ncia de doen�as infecciosas, preju�zos que podem ter impacto na vida toda, como atrasos no desenvolvimento psicomotor, mau desempenho escolar e menor produtividade ao chegar � idade adulta.
A obesidade tamb�m tem efeitos duradouros: crian�as acima do peso t�m mais risco de desenvolver diabetes, hipertens�o e doen�as cardiovasculares, entre outros males.
No ritmo atual, calcula-se que o Brasil ter� 11,3 milh�es de crian�as obesas at� 2025 –� quase o tamanho da popula��o da cidade de S�o Paulo.
"Pela primeira vez na hist�ria, as crian�as t�m uma expectativa de vida menor que a de seus pais por conta de uma alimenta��o inadequada", afirma Ravagnolli, referindo-se a estudos internacionais que preveem que a obesidade infantil possa criar uma gera��o de jovens adultos doentes.
Uma das formas de prevenir isso �, segundo especialistas, educar o paladar das crian�as desde cedo.
"A alfabetiza��o do paladar � uma das coisas mais importantes a se ensinar �s crian�as em seus primeiros tr�s anos", diz � BBC Brasil Maria Paula de Albuquerque, gerente m�dica do Cren.
"A introdu��o alimentar, quando os beb�s completam seis meses, � uma janela de oportunidades e dificuldades."
CARETAS E CUSPES: COMO LIDAR?
� nessa fase que muitos pais se descabelam tentando oferecer alimentos saud�veis em meio a caretas e cuspes –rea��es, ali�s, que s�o normais, uma vez que os beb�s est�o se adaptando aos novos sabores e texturas.
"� um per�odo dif�cil mesmo, em que n�s, pais, sentimos ang�stia quando as crian�as n�o comem", admite Ravagnolli. "Mas � importante n�o for�ar a comida, justamente para n�o fazer com que o momento da refei��o seja algo ruim."
O principal, nessa fase, � ofertar o m�ximo poss�vel de alimentos saud�veis, de diferentes grupos –carboidrato, prote�na animal, frutas, legumes, verduras e feij�es– e tamb�m diferentes texturas.
Recomenda-se n�o transformar tudo em uma sopa de liquidificador, justamente para n�o perder essa diversidade de sabores.
Acima de tudo, � preciso armar-se de paci�ncia: n�o � porque a crian�a pequena recusou ou cuspiu uma vez que ela n�o vai gostar daquele alimento em particular.
"Para a crian�a aceitar um alimento, ela pode precisar prov�-lo at� 15 vezes", explica Albuquerque. "� bom repetir esse alimento em formas diversificadas –por exemplo, o espinafre cru, depois refogado, depois em creme ou em uma torta."
Um erro comum �, diante da recusa da crian�a ao alimento saud�vel, os pais substitu�rem por produtos processados de mais f�cil aceita��o –ou "engrossarem" o leite dos pequenos com a��car ou farinhas l�cteas.
"� aquele al�vio de 'pelo menos a crian�a comeu algo', mas � melhor que ela n�o coma nada do que vicie seu paladar ao sal e ao a��car dos alimentos processados", diz Ravagnolli.
"E precisamos deixar de lado aquele h�bito de que 'a crian�a precisa limpar o prato ou n�o vai ter sobremesa'. Isso s� refor�a que a comida saud�vel � ruim e a sobremesa � legal. N�o podemos querer que todas as crian�as comam em igual quantidade –elas precisam aprender (as sensa��es) da fome e da saciedade."
'NEOFOBIA ALIMENTAR'
As crian�as e adolescentes atendidos nas duas unidades do Cren (nos bairros paulistanos da Vila Jacu� e da Vila Mariana) n�o passaram, em geral, por esse processo de alfabetiza��o do paladar e muitas vezes sofrem do que a m�dica Maria Paula de Albuquerque chama de "neofobia alimentar": uma dificuldade com novos alimentos, uma vez que foram pouco expostas a eles.
"S�o crian�as com uma dieta mon�tona e pobre", explica ela. "Por isso, fazemos oficinas l�dicas, para aumentar esse repert�rio, fazer uma aproxima��o afetiva com o alimento."
Para as crian�as mais velhas, o processo inclui, al�m do manuseio dos alimentos, a prepara��o. Durante a visita da BBC Brasil, um grupo de cerca de dez adolescentes estava reunido em volta ao fog�o para preparar um empad�o de legumes.
As crian�as chegam ao Cren com quadro de desnutri��o identificado em consultas nas Unidades B�sicas de Sa�de ou pelo pr�prio centro em visitas a comunidades carentes. A m�dia de espera para atendimento � de um m�s e meio na unidade da Vila Mariana e de dois meses e meio na Vila Jacu�.
O diagn�stico principal se d� n�o pelo peso, mas sim pela baixa estatura –detalhe que pode fazer a doen�a passar despercebida, uma vez que os pais �s vezes acham que a crian�a � apenas baixinha, e n�o desnutrida.
"� uma doen�a invis�vel, com um diagn�stico muitas vezes tardio", explica Albuquerque. "Temos fam�lias em que a desnutri��o est� indo para a terceira gera��o. E n�o � aquela desnutri��o africana (de crian�as esqu�lidas), ent�o n�o � t�o impactante aos olhos. Mas tem consequ�ncias grav�ssimas para a vida da crian�a. Compromete todo o seu desenvolvimento."
Mas, segundo Albuquerque, mesmo em fam�lias em situa��o de pobreza e vulnerabilidade � poss�vel promover mudan�as de longo prazo na alimenta��o.
"Fizemos um acompanhamento (de alguns pacientes) depois de sete anos e muitos continuaram com os bons h�bitos alimentares ap�s a alta, mesmo sem terem sa�do da favela", explica ela.
"O crucial � mudar a rela��o com a comida. Isso passa pelo que a gente come, e como a gente come –a quantidade de comida, a qualidade e o h�bito de comer em fam�lia, em um ambiente tranquilo."
*Colaborou Rafael Barifouse, da BBC Brasil em S�o Paulo
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